Esperei quinze dias para me recompor da estupefação provocada pelas declarações de António Costa ao dizer que Rui Rio devia «uma explicação ao país» por ter feito um acordo com o Chega para viabilizar o Governo dos Açores.
Confesso que nunca esperei que Costa tivesse ‘lata’ – perdoem-me o plebeísmo, mas é a palavra certa – para comentar e muito menos criticar a ‘geringonça’ açoriana.
É que ele era a última pessoa em Portugal a poder fazê-lo.
Recorde-se que o PS ganhou as eleições nos Açores, onde governava há 24 anos, mas o PSD local fez um acordo com os partidos da direita, Chega incluído, para viabilizar um Executivo social-democrata.
Foi exatamente o que Costa fez há cinco anos, quando juntou a esquerda toda para afastar o Governo de Passos Coelho.
Com a agravante de, nessa altura, ter quebrado uma regra informal da democracia pós-25 de Abril, segundo a qual quem formava Governo era sempre o partido mais votado.
Claro que Costa não criticou o ‘modelo’ – também era o que faltava… – mas sim o facto de «o PSD ter pisado uma linha vermelha», normalizando «um partido xenófobo».
Mas o Chega não estaria já normalizado pelo facto de existir legalmente em Portugal?
De ter concorrido às eleições nacionais, elegendo um deputado, e às eleições nos Açores, elegendo dois?
Os eleitores do Chega devem ser considerados proscritos ou maus cidadãos? Devem ser discriminados em relação aos outros? Devem ser marginalizados, postos à parte?
Disse ainda António Costa que outros partidos europeus isolaram os partidos xenófobos, como a Frente Nacional de Marine Le Pen.
Mas será este um bom exemplo?
Essa política deu algum resultado?
Marine Le Pen foi travada – ou pelo contrário, tem vindo sempre a crescer (e os partidos de extrema-direita na Europa também)?
António Costa deseja isso para Portugal?
Não vê que, sempre que o Chega é excluído de um debate, ou ostensivamente marginalizado, André Ventura ganha mais uns votos?
Basta consultar as sondagens…
Mas voltemos um pouco atrás. Que diferença verdadeiramente existe entre o Chega e os partidos de extrema-esquerda com os quais António Costa fez há cinco anos a ‘geringonça’ nacional?
Admitamos que o Chega é ‘xenófobo’, como diz Costa.
Mas o PCP e o BE não serão intrinsecamente totalitários?
O PCP e o BE não professam um modelo de sociedade objetivamente inimigo da liberdade?
Vou ainda mais longe.
Até hoje, nenhuma das bandeiras do Chega consideradas como de ‘rotura civilizacional’ – como a pena de morte ou a castração dos pedófilos – foi avante.
Mas várias propostas do BE de rotura civilizacional foram aprovadas e estão em vigor, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a legalização de certas drogas, as operações de mudança de sexo (feitas no SNS) ou a eutanásia.
Portanto, do ponto de vista de pôr em causa o modelo civilizacional, o BE tem-se mostrado um partido muitíssimo mais perigoso.
Eu percebo que para António Costa – bem como para o presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina, que o tem defendido acaloradamente nesta questão – é difícil admitir que se metam no mesmo saco o PCP, o BE e o Chega.
Os pais de Costa e Medina eram ambos comunistas, não apenas simpatizantes mas militantes, e por isso, para eles, o PCP terá sempre um lugar à parte.
É compreensível e respeitável.
Mas a política não pode ser vista por um prisma familiar.
Outra coisa intrigante foi a preocupação de António Costa com o PSD.
Segundo ele, o passo que o PSD deu foi perigosíssimo.
Mas desde quando o PSD o preocupa?
Não foi ele quem disse recentemente que preferia demitir-se a fazer um acordo com Rui Rio?
Faz algum sentido que, depois de ter dito que jamais fará um acordo com o PSD, Costa venha queixar-se por Rui Rio ter feito um acordo com outro partido?
Valha-nos Deus!
Peço desculpa, mas nada na declaração de António Costa fazia sentido.
E essa falta de sentido tem uma razão simples de explicar: ele não podia dizer o que verdadeiramente o preocupava.
É óbvio que Costa não está preocupado com o PSD, nem podia estar; Costa está preocupado com ele próprio.
Até aqui, o PS governou tranquilamente, sem alternativa, fazendo o que queria e não tendo de se preocupar com a oposição.
O PSD não o ameaçava, o CDS afundou-se, o Chega arranhava-o mas não o feria.
Ora, caso a direita se una, o PS fica ameaçado.
Se todos os partidos de direita se unirem, cria-se uma dinâmica nova – passando a existir uma alternativa.
E aí o poder da esquerda fica em risco.
Até porque a pandemia vai ter fortes consequências na votação do Partido Socialista.
É isto que explica a preocupação de António Costa.
Mesmo assim, devia ter-se mantido calado.
Até para não dar a Rui Rio um pretexto para o atacar como há muito não se via.
P.S. – Os democratas, com a ajuda da maioria dos comentadores, acusam Trump de um ‘crime grave’ ao pôr em causa o resultado das eleições, pois isso provoca «desconfiança nas instituições». Mas não foram os democratas que durante quatro anos, com a ajuda da maioria dos comentadores, puseram em causa o resultado das eleições de 2016, falando incessantemente numa «ingerência russa»? Aí não estava em causa a ‘confiança nas instituições’? Será que de repente se perdeu a memória… ou a vergonha?