A bússola perdida

O nivelamento por baixo de governantes e deputados têm vindo a degradar o funcionamento da República e a comprometer o apego a valores democráticos.

Num exercício retrospetivo, se quisermos comparar os governos constitucionais pós 25 de Abril com o atual executivo, o que avulta é a flagrante diminuição da qualidade média de ministros e de secretários de Estado. 

Se repetirmos o exercício aplicado ao Parlamento, a comparação será ainda mais chocante. A qualidade média dos deputados desceu a níveis impensáveis e parece improvável que melhore tão cedo, tendo em conta a natureza do campo de recrutamento preferencial dos candidatos. 

Enquanto os governos têm vindo a ser paulatinamente capturados por carreiristas, com o emblema ao peito, formados nos clubes de juventudes partidárias ou em capelas corporativas, as bancadas parlamentares enchem-se de gente menor, eleita em listas geridas por caciques, cujo objetivo final é exibirem o título no cartão de visita.

Só isso explica que depois de Barbosa de Melo, Almeida Santos, Mota Amaral ou Jaime Gama, tenhamos hoje Ferro Rodrigues a presidir ao Parlamento.

Com o 25 de Novembro – ‘data maldita’ para os comunistas do PCP e do Bloco de Esquerda, que deveria celebrar-se anualmente ao lado do 25 de Abril –, o país recuperou a liberdade e a democracia. Infelizmente, o nivelamento por baixo de governantes e deputados têm vindo a degradar o funcionamento da República e a comprometer o apego a valores democráticos. 

Decorrido quase meio século sobre o movimento que travou o descalabro, em Novembro de 1975, impedindo a instalação de uma nova ditadura, de sinal comunista, a oligarquia dominante conseguiu restaurar uma linguagem que se supunha banida, recheada de adjetivos que foram bandeiras revolucionárias.

A crise sanitária trouxe um inesperado contributo para restringir as liberdades, ao abrigo dos estados de contingência, calamidade ou de emergência, ressalvadas as exceções como a Festa do Avante! ou o Congresso do PCP, como se o vírus entrasse de folga nesses dias e estivesse garantida a imunidade dos militantes comunistas. 

Dir-se-á que não somos caso único. De facto, aqui mesmo ao lado, há um Governo desorientado e trapalhão em Espanha, inspirado na ‘geringonça’ portuguesa, com base numa coligação de socialistas com a extrema-esquerda, que só não foi mais longe na domesticação dos media, porque estes se revoltaram e os jornalistas fizeram-se ouvir com um vigor que falta por cá.

Sánchez e Iglesias foram obrigados a recuar, quando supunham ter encontrado na pandemia um excelente álibi para aprisionar a liberdade de imprensa.

Em Espanha as esquerdas radicais já contestam abertamente a Coroa e tentam humilhar o Rei. Por cá, sem monarquia, não faltam, contudo, as ‘dinastias’ familiares, no governo e na sua órbita. 

Entretanto, escamoteia-se a realidade vivida nos hospitais públicos, saturados e caóticos, sem mais camas para doentes covid e não covid. Recomenda-se a vacinação geral para a gripe sazonal, apregoa-se que há vacinas para todos, e depois verifica-se que o contingente adquirido não chega para as encomendas. 

Falha a Justiça, por ser tardia e uma das mais caras da Europa, com direito a Portugal figurar no topo dos piores da União no gráfico comparativo dos tribunais administrativos e fiscais (só superado por Malta), e a meio da tabela no andamento dos processos nos tribunais judiciais.

Em contrapartida, a atual PGR insiste em repetir diretivas que subordinam magistrados do MP à hierarquia, que, segundo o sindicato do setor, «muda por completo o paradigma do Processo Penal» e «abre a porta à interferência política». Um retrocesso. 

E nas Forças Armadas? Também não escapam a diretivas surreais. Se os militares estão insatisfeitos, mantidos em quartéis degradados, como se viu em Tancos – e humilhados diante de um assalto grotesco agora em julgamento –, inventa-se uma diretiva para a promoção da igualdade de género e uso de linguagem ‘não discriminatória’, sentida como um enxovalho, que o ministro João Gomes Cravinho relativizou, ‘apertado’ pela polémica, anulando depois o oficio como se tivesse sido distribuído à sua revelia. 

Enquanto se avolumam estes e outros sintomas negativos, com a economia do país a adornar perigosamente e a bazuca bloqueada, improvisam-se remendos e desbaratam-se recursos na renacionalização da TAP ou para alimentar o ‘poço sem fundo’ que é a CP.

Ao mesmo tempo, o Governo não tem a coragem política de voltar atrás na lei das 35 horas na função pública – uma decisão populista e demagógica que está a penalizar seriamente o erário público –, enquanto patrocina o delírio do hidrogénio verde, cujo custo «ainda está no vermelho», para citar o Expresso, preparando-se para dar outro passo em falso, apesar dos avisos de especialistas. 

Com a dívida pública a aumentar, o Governo parece ter perdido a bússola e estar sem rumo, à deriva. A incerteza veio para ficar…