António Afonso. O homem que conduzia prémios Nobel

Chegou a Estocolmo em 1965. Depois de ter feito tudo e mais alguma coisa tornou-se chofer de limusinas e serviu a Academia Sueca. Entre 1997 e 2015 esteve ao serviço de 10 laureados com o Prémio Nobel da Literatura, de Dario Fo a Svetlana Alexievitch. E Saramago, claro, mas esse era um velho amigo.

Estocolmo – António Afonso é de Coimbra, conterrâneo do meu amigo-irmão José Vidal que aqui chegou na véspera do Natal de 1967, ainda com o cheiro nauseabundo dos pides que lhe rondavam os calcanhares. António chegou dois anos antes, em 1965. Não vinha fugido. A mulher, Maria, que trabalhara num hospital, tornara-se au pair de uma senhora sueca bem posta na vida que habitava no Estoril. Talvez se tenha fartado do sol da baía de Cascais. Ou talvez se tenha fartado do cinzentismo deste país que vivia mergulhado na opressão salazarenta, mazomba e bacoca, que o ministro da Educação, António Carneiro Pacheco, desenvolvia filosoficamente numa tirada que poderia fazer parte da Enciclopédia das Grandes Canalhices: «Um lugar para cada um e cada um no seu lugar».

António Mendes Vaz Afonso não se sentia confortável com a ideia tão melodiosa como hipócrita de achar que devia à providência a graça de ser pobre. Estava-se um bocado nas tintas para aquele juramento que ia assim: «Declaro por minha honra que estou integrado na ordem social estabelecida pela Constituição Política de 1933 com ativo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas». Havia muita gente incapaz de viver sob essa atitude inquisitorial que fazia de Portugal uma nação caliginosa.

A senhora sueca gostava de Maria e não queria dispensar a sua companhia mesmo regressando ao seu país lá do norte da Europa. Convidou-a para ir com ela. António também foi, depois de ter desesperado pela carta de chamada, esse papelzinho burocrático que servia para provar que iria ter meios de subsistência, e não entrar no mundo dos párias sociais. O documento chegou-lhe às mãos no dia 10 de junho, então Dia da Raça, para sempre Dia de Portugal. Apanhou o comboio para Paris e daí para Estocolmo. Nos anos que se seguiram foi jardineiro.

 

Inquieto

À medida que vamos desenrolando a conversa, percebo que António Afonso é um homem inquieto. Tem um mundo inteiro para contar. Uma vida cheia de acontecimentos interessantes, curiosos, fascinantes, um universo de gente que conheceu ao longo dos tempos. Foi um faz-tudo, de empregado de mesa a condutor de autocarros. Dedicou-se, a partir de certa altura, a ser contabilista. Entrou para uma firma, a Freis – Limousine Services, e repartia funções na área de contabilidade e no serviço ao volante. Não fora feito para estar parado. Ainda hoje não é. Caminha decidido pela Drottningatan, pelo Kungstraedgaarden, onde as cerejeiras japonesas que na primavera enchem o jardim de tons de rosa estão agora secas e reduzidas a galhos quebradiços. A pista de gelo onde costumam patinar os meninos agasalhados está em obras. Nesta altura, toda a Estocolmo parece estar em obras. O António Afonso e o José Vidal recordam outro 10 de junho, o 10 de junho de 1972, no qual fundaram o Centro Cultural dos Portugueses de Estocolmo, o ponto de reuniões dos portugueses de Estocolmo que tinha uma orgulhosa equipa de futebol, o Clube Lusitânia, na qual o Vidal, esse homem com um universo dentro de si, ficou conhecido como “o Nervo”. Ninguém diria ao vê-lo tão sereno, tão pacífico, rodeando-nos com os cliques da sua inseparável máquina fotográfica.

A empresa de limusinas para a qual António Afonso trabalhava assinou um protocolo com a Academia Sueca, responsável pela entrega anual dos prémios Nobel. António deu por si, a partir de 1997, como chofer alocado para conduzir os laureados com o Prémio Nobel da Literatura durante os dias que estes passavam em Estocolmo para receberem o prémio e participar naquela habitual série de solenidades que vão de jantares e almoços a palestras nas universidades locais. Ou seja, um homem ao dispor durante 24 horas por dia, até porque as famílias costumam acompanhar os premiados e têm bem mais tempo livre do que eles, a exigirem quem as carregue de um lado para o outro. «Fui responsável por conduzir dez prémios Nobel, ainda que em 2007, a Doris Lessing não tenha aparecido, fazendo-se representar pela filha. Curiosamente, o segundo que me coube foi o José Saramago, que eu já conhecia de outras vindas dele à Suécia. Nesse aspeto, foi bem mais familiar. Já tínhamos jantado juntos quando o recebemos no seio dos portugueses aqui radicados».

 

Gente diferente

No ano anterior a José Saramago, o Nobel da Literatura foi um italiano, Dario Fo. «Um homem bem-disposto, sempre a rir. Contou-me uma história curiosa: quando soube que ia receber o Nobel ligou ao Saramago a dizer-lhe. “Não era a minha vez, era a tua. Já toda a gente me tinha dito que serias tu a ganhar”. Era um italiano típico, embora não falasse muito com as mãos, como quase todos os italianos. Gostei bastante dos dias que passei com ele. Há sempre um momento muito especial para os Nobel da Literatura: a visita a uma escola de miúdos muito carenciados e segregados, em Rikevik. É aí que se percebe a estrutura humana de que são feitos. Em seguida veio o José Saramago, que foi, de todos com quem trabalhei, o que passou mais tempo em Estocolmo. Esteve aqui praticamente duas semanas, quando o habitual é ficarem cerca de cinco ou seis dias. Mas havia muitas solicitações e até veio cá o Presidente da República, Jorge Sampaio. Foi muito duro».

Seguiram-se, pelas mãos experientes de António Afonso, segurando o volante pelas ruas de Estocolmo, o chinês Gao Xingjian, nascido em Ganzhou mas que se escapou para Paris e assumiu a nacionalidade francesa – «Um tipo muito humano que sofria com o facto de ter sido repudiado pelo seu país de origem», e V. S. Naipul – «De todos, foi o que me tratou com mais respeito e consideração. Logo na primeira vez que saímos ofereceu-me um livro autografado e uma garrafa de champanhe». Depois foi a vez do húngaro Imre Kertész e do australiano J. M. Coatzee – «Esse era fala-barato. Prometia tudo, desde um convite para o visitar a livros assinados, e não cumpriu nada. Aliás, passou-se o mesmo com a Alice Munro (2013), que veio acompanhada da filha. Eram muito afáveis, mas sempre com promessas da boca para fora. Insistiu que fosse ter com elas a Nova Iorque, mas foi-se embora sem deixar qualquer contacto. Apesar de tudo, no geral, recebia boas gorjetas na hora de os levar ao aeroporto. Não me posso queixar nesse aspeto». António não esteve ao serviço de todos os prémios Nobel, que se iam multiplicando, naturalmente. Não tinha o monopólio dos premiados. «Mo Yan foi de uma delicadeza e de uma educação notáveis. Infelizmente, só falava chinês. Passei muito tempo com a mulher e as filhas, que queriam ir às compras. Patrick Modiano tornou-se um companheiro. Adorávamos ambos o George Brassens, tínhamos conversas de camaradas, foram dias muito divertidos, mas também continuo à espera de um livro dele com dedicatória. A última que conduzi foi Svetlana Alexievitch, da Bielorrússia, a mais simples e menos cheia de si própria de todos os que conheci. É com naturalidade que percebo que regressem às suas vidas e esqueçam a onda de sentimentos em que estiveram envolvidos. São momentos muito intensos, os momentos mais altos das suas carreiras». António Afonso, o homem que conduzia prémios Nobel, desaparece na tarde-noite da Gamla Stan. Leva consigo histórias infinitas. A sua vida encheu-se de mundo. E a minha também, mais um pouco.