A luz de Estocolmo nasce no interior das coisas

Um velho homem, Clemente Larsson, tocava violino em Skanssen, o grande jardim da capital da Suécia. Ouvira da mãe, quando criança, que havia gnomos debaixo da terra e que era preciso não gritar nem ser mau para que os gnomos não ficassem enfurecidos. E assim se começa a contar a história de uma cidade mágica.

ESTOCOLMO – Alexandre Carreira, nascido em Oliveira do Hospital, é uma figura. Magro como um espeto, de sorriso sempre à espreita, teve um espaço de restauração em Lisboa em 2013, o Grapes & Bites. Foi lá que conheceu uma sueca capaz de o convencer a, quatro anos mais tarde, mudar-se para Estocolmo. Agora é dono do Cork Winebar, na Stora Nygatan, na zona velha da capital sueca, uma rua pejada de bares e restaurantes. O Cork é apertado: duas mesas em baixo mais um balcão, três em cima, ou seja, a quatro degraus de altura. Quando o visitámos, quase a correr, eu, o José Vidal e o António Afonso, serviu-nos uma taça de espumante Sidónio Sousa, gente da minha terra, deSangalhos, à beira de Águeda. Um casal de franceses ocupavam uma mesa, era ainda muito cedo, apesar da noite cerrada, talvez quatro e meia da tarde. O Alex tem vinhos de todas as províncias de Portugal que serve com presunto, queijo e azeitonas, num toque inconfundível de uma portugalidade no norte da Europa. E entre vinhos e espumantes vende mais de mil garrafas por mês.

Os tempos estão difíceis em_Estocolmo, embora sem o histerismo tão profundamente lusitano que tomou conta das pobres cabeças tontas que fazem de conta que nos governam. Não há confinamentos, horas obrigatórias de fecho, gente escondida atrás de máscaras (coisa na qual os suecos pura e simplesmente não acreditam), mas surgiu recentemente a restrição dura para os proprietários de bares e pubs, a de interdição de venda de álcool a partir das 22 horas.

O céu está cinzento de aço. Esteve assim todo o dia. Há quem diga que novembro é o mês mais duro na Suécia, mas eu já cá estive em quase todos os meses que compõem o ano. Aprendi, há muitos, muitos anos, criança ainda, começando a soletrar, que esta cidade tem magia. Tem gnomo, em vez do Duende do Lorca.

Uma história inesquecível

Não se pode viajar através da Suécia sem a companhia de Selma Lagerlöf. Nem em Estocolmo, onde havia um homem bom, chamado Clemente Larsson, que viera de Helsingland para tocar nos jardins da cidade conhecidas árias populares. Um dia de maio, já regressara o sol, encontrou-se com um pescador amigo, Asbjörn, que queria vender-lhe o que apanhara numa rede. Um gnomo. Um ser minúsculo que caíra do céu, por onde viajava nas costas de um ganso branco, seguindo os patos-bravos voando em V com Akka de Kebnekaise à cabeça. O gnomo era Nils Holgersson, o rapaz insuportável que sofrera o terrível castigo de um tomten e fora reduzido ao tamanho de um polegar. «Clemente permaneceu silencioso por instantes. Uma verdadeira angústia apertava-lhe o coração. Parecia-lhe ouvir a velha mãe a rogar-lhe que fosse bom para os que são pequenos». Comprou Nils Holgersson por 20 coroas.

Um dia, um cavalheiro bateu à porta de Clemente. no jardim de Skansen. Era amável e encantador. Ficou espantado quando soube que o músico detestava viver em Estocolmo. Sentou-se na sua sala e contou-lhe uma história. Cada cidade tem a sua vida. A vida de Estocolmo é o mar. «Aqui mesmo», explicou o homem de boas maneiras, «no ponto que o Uppland encontra a Sudermânia, o Malar e o Báltico, há um rio muito pequeno que reúne as duas águas e, neste rio, existiram outrora quatro ilhas que o dividiam em diferentes braços. Um desses braços chama-se agora Norrström».

Num dos braços do rio vimos um homem a lutar contra a corrente. Estava mergulhado até à cintura, agarrando a cana de pesca a mãos ambas. Lutava contra a corrente e contra si próprio. Não lutava ainda contra o peixe pelo qual esperava porque o peixe teimava em chegar tarde._Muitos, muitos, muitos anos antes, outro pescador perdeu-se numa dessas quatro ilhas. Quando a lua estava alta e clara avistou um bando de focas que nadavam na sua direção. Ergueu o arpão, pronto para a caça, mas, num segundo, as focas deram lugar a jovens formosas de longas vestes verdes e enfeitadas com pérolas. Eram ondinas, habitantes do mar, que vinham a terra para dançar. O pescador não resistiu. Num movimento silencioso, roubou uma das peles de foca que estavam estendidas na areia. No momento em que o céu ia ficando alaranjado no horizonte, as ondinas precisavam de partir para que não se quebrasse o encantamento. Uma ficou. Não encontrava a pele de foca que pudesse fazê-la regressar às ondas.

O pescador que encontrámos na sua luta pelo peixe que não respeitava horários era um tipo simpático e falador. O pescador de há tantos, tantos, tantos anos tinha em si a maldade do egoísmo. Convenceu a ondina, lavada em lágrimas, a segui-lo até sua casa, colocando-a sob os cuidados da mãe. Presa numa vida terrena, não havia alternativas. Foi. E esqueceu. Nunca mais se recordou que era ondina e passou a ser uma mulher. E acabou por casar com o pescador. Feliz, nesse mesmo dia, ele confessou-lhe a satisfação que guardava desde o dia em que lhe roubara a pele de foca. A ondina, agora mulher, não percebia. Apagara-se-lhe a memória do mar. Não acreditou nas palavras do marido até que este a levou de volta à ilha onde a vira pela primeira vez e lhe apontou o lugar onde escondera a pele. Então, a ondina reencontrou a magia da sua vida selvagem. Vestiu a pele, voltou a ser foca, e atirou-se às ondas.

Desesperado, o pescador lançou o seu arpão e perfurou-lhe o coração. Ouviu-se um grito. A foca desapareceu nas profundezas. «O pescador ficou muito tempo na margem à espera de a ver reaparecer; e então viu a água transformar-se, iluminada. Brilhava, cintilava e espalhava um doce reflexo cor-de-rosa e branco, igual ao colorido encantador que se nota no interior das conchas». Depois a água chegou à margem. Um perfume suave, penetrante, tomou conta da ilha. «O pescador compreendeu o que se passara – as ondinas têm em si próprias algo que as faz parecer mais belas do que as outras mulheres. Quando o sangue de uma delas se mistura com as vagas, a sua beleza ilumina a paisagem: nesse momento as margens adquirem o poder de inspirar amor a todos os que as contemplam e conseguem até infundir uma espécie de nostalgia».

Nils Holgersson fugiu da sua prisão do jardim de Skansen. Clemente ficou a saber como, a pouco e pouco, a luz das quatro ilhas do Báltico chamaram os homens para aí construírem as suas casas e ficarem para sempre._Vieram religiosos e ergueram uma igreja. Vieram comerciantes e artífices alemães. Estocolmo ganhou o poder de exercer uma singular atração. O rei instalou-se e os senhores construíram os seus palácios. O velho cavalheiro deixou Clemente sentado num banco de jardim com um livro na mão. Quando este abriu o livro, percebeu que tinha toda a história de_Estocolmo e que o homem educado que se sentara na sua companhia era o Rei da Suécia. E assim, por mais que o céu esteja cinzento nestes dias de novembro, nós sabemos que aqui, na capital da nostalgia, não tardará a espalhar-se por toda a cidade aquela suave luz do interior das conchas…