Biblioteca Pessoal: Um dia de arrumações em casa

 Muitas capas estavam cobertas por uma camada de pó palpável, que deixava as mãos pretas. Ao passar-lhes com um pano, passou-me pela cabeça uma interrogação: serei mesmo seu dono ou seu escravo? Já não basta comprá-los, carregá-los, arrumá-los, ainda tenho de os limpar, já para não falar no tempo que se gasta para os ler!

Um destes dias, ao olhar para uma fileira de lombadas perfeitamente alinhadas, dei por mim a pensar que se calhar sou melhor a arrumar os livros do que a lê-los. Poucas horas antes os volumes que agora repousavam na prateleira estavam espalhados em montes anárquicos pelo chão. Motivo: a visita de um técnico de telecomunicações que vinha instalar uma nova box em nossa casa. Os cabos a que o senhor precisaria de aceder encontravam-se numa caixa tapada por uma estante cheia de livros fixa à parede. Só havia uma maneira de lá chegar: tirar os livros todos (umas poucas centenas), desaparafusar a estante da parede e, por fim, afastá-la de modo a dar acesso aos cabos.

Eu não ia estar em casa na altura da visita do técnico, por isso deixei o trabalho feito de véspera. Quando regressei, estava cansado e já não eram horas para fazer barulho, por isso só meti mãos à obra na manhã seguinte.

Tinha mais ou menos presente, numa espécie de mapa mental, a ordem dos livros e a sua localização na estante. Mas aproveitei para fazer alguns ajustes e para ‘refrescar’ um pouco a organização.

Vendo bem as coisas, não foi muito diferente de montar um puzzle de 500 peças (mais exatamente 469), cumprindo quatro regras: 1. Que cada prateleira tivesse uma certa lógica e coerência temática; 2. Que os livros vizinhos fossem de tamanhos aproximados, uma vez que nem todos os ‘andares’ da estante têm a mesma altura; 3. Que o espaço ficasse bem preenchido, sem haver desperdício, mas não ao ponto de os livros ficarem ‘prensados’ uns contra os outros, porque isso a prazo acaba por deformá-los; 4. Que houvesse uma política de boa vizinhança: não me sentiria de consciência tranquila se deixasse Lobo Antunes lado a lado, ou melhor, frente com costas, com Saramago, para dar apenas um exemplo de rivalidades literárias.

Além das arrumações, a certa altura foi preciso fazer limpezas. Muitas capas estavam cobertas por uma camada de pó palpável, que deixava as mãos pretas. Ao passar-lhes com um pano, passou-me pela cabeça uma interrogação: serei mesmo seu dono ou seu escravo? Já não basta comprá-los, carregá-los, arrumá-los, ainda tenho de os limpar, já para não falar no tempo que se gasta para os ler!

Ao fim da tarde, o puzzle estava montado. Mas sobravam algumas peças. Normalmente, quando se trata de mecanismos, é sinal de que alguma coisa correu mal. Neste caso não – foi o preço a pagar por preferir uma certa ordem e clareza ao aproveitamento obsessivo de todas as frestas.

Como poderão imaginar, deu um trabalhão dos diabos. Mas tinha mesmo de ser, não é verdade? À noite, a minha mulher gabou-me o esforço. E o técnico das telecomunicações?, perguntei. Afinal não era nada preciso ter afastado a estante, respondeu-me. Parece que agora inventaram umas boxes inteligentes sem fios que não precisam de estar ligadas a lado nenhum.

 

História da Filosofia Política. João Cardoso Rosas (coord.) 

O que disseram e escreveram os grandes pensadores acerca da melhor forma de governação? Quais as responsabilidades do Estado? Quais os direitos e deveres do cidadão? Da República de Platão à sociedade aberta de Karl Popper, este volume reúne e apresenta o essencial das ideias políticas no Ocidente desde a Antiguidade. Uma síntese equilibrada e acessível, com coordenação de João Cardoso Rosas, professor de Filosofia Política na Universidade do Minho.

Editora Presença Preço 20,90€

 

Alcora – A derradeira tentativa de manter o ultramar português. Vicente de Paiva Brandão

A partir de meados da década de 1960, a África do Sul, Portugal e a Rodésia formaram uma aliança militar não assumida para fazer face à ameaça dos movimentos de autodeterminação. Numa investigação que o levou por dois oceanos e três continentes, Vicente de Paiva Brandão procura documentar em particular a aproximação militar e política entre Portugal e a África do Sul para manter o status quo na região.

Editora Casa das Letras Preço 21,90€

 

Poemas dramáticos e pictopoemas. Mário Cesariny

O rótulo de surrealista ficou-lhe tão colado à pele que é uma surpresa a forte ligação à tradição e à história de Portugal que Cesariny revela no ‘Projecto não terminado de Teatro Radiofónico’ aqui incluído, texto anterior à sua viagem decisiva a Paris em 1947. O segundo núcleo deste volume é composto por ‘pictopoemas’ – esses sim, surrealistas até à ponta dos cabelos. «As técnicas da colagem […] traduzem modos diferentes de proximidade ou de integração entre vida e arte (incorporando no quadro fragmentos ou farrapos do quotidiano)», nota Perfecto E. Cuadrado no prefácio. Tristan Tzara, continua, propunha «recortar uma a uma as palavras de um texto impresso, introduzi-las num saco, agitá-las e reordená-las sobre a página» de modo a revelar «o lado oculto e maravilhoso desse fragmento de realidade quotidiana». Daí resultam algumas vezes curiosidades, outras vezes verdadeiros achados.

Editora Assírio & Alvim Preço 44€