Esquadrão covid. Caras que se tornaram conhecidas este ano

Ao longo de dez meses de um ano que foi para todos uma ‘loucura’ foram à televisão, responderam a perguntas, falaram do vírus e da nova doença. Tornaram-se caras conhecidas e contam como foi o ano para lá das câmaras, das reuniões e do trabalho.

Manuel Carmo Gomes
‘Estamos todos com a guarda em baixo até que nos acontece’

«Por quanto tempo [manter as medidas]? Senhor Presidente, não tenho resposta a isso. Mas sei como se faz: é preciso continuar a acompanhar os indicadores, por concelho, a nível regional e perceber em que direção estamos a ir. Se haverá outro pico em janeiro e fevereiro? A nossa projeção é de que vamos atingir um pico entre finais deste mês e o início do mês que vem. Se mantivermos a pressão, o R virá para baixo de 1. Depois tudo dependerá do que fizermos. Como já vimos, o R está sempre preparado para disparar por aí acima. Depende de nós se vamos ter ou não um pico em janeiro ou fevereiro».

A pergunta foi feita por Marcelo Rebelo de Sousa na penúltima reunião do Infarmed em novembro. Manuel Carmo Gomes, professor da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL) e consultor da DGS desde os anos 80, respondeu assim, sem rodeios – diante do auditório de decisores políticos e com o país a assistir na TV. Foi dele também a metáfora do vírus como uma mola, sempre pronta a saltar se se tira a mão – repetida ao longo dos meses em vários momentos, do primeiro-ministro à diretora-geral da Saúde. O estilo tornou-se inconfundível, fosse em direto ou nas conversas com os jornalistas. De onde vem? «É um treino que tenho da minha família. Quando nos fazem uma pergunta, a gente responde. E fui treinado no Canadá: fiz o doutoramento lá e eles tinham muito essa regra ‘answer the question’. Sei que alguns políticos não fazem isso, têm o discurso preparado e fazem-no independentemente da pergunta. Mas eu aprendi que quando há uma pergunta, é para responder. Quando não usei isso foi propositado, não me agradava a pergunta [risos), mas tentei responder sempre. E digo ‘não sei’ quando não sei, não me envergonho com isso».

As reuniões do Infarmed, inicialmente à porta fechada, foram um dos lados mais visíveis de um trabalho de análise e modelação da epidemia feito na FCUL. Para Manuel Carmo Gomes, foi uma abordagem importante num país com poucos recursos. Mas assume que implicou alguma adaptação e ‘estômago’ num encontro pouco habitual entre técnica e política. «Às vezes saía da reuniões do infarmed, ouvia as declarações dos representantes políticos e tinha a sensação de que tínhamos estado em reuniões diferentes», recorda. O relato do ‘puxão de orelhas’ do primeiro-ministro à ministra da Saúde nos idos de junho foi outro exemplo. «Achei que dizer-se isso foi um exagero complemente desproporcionado. Mas são coisas que aprendemos a encaixar. Aprendi a vestir o papel de técnico, a pessoa destituída de emoções e que não se deixa impressionar com qualquer deturpação que possam fazer do que dissemos e continuar a dizer aquilo em que acreditamos, sempre agarrado à técnica e com poucos adjetivos».

Passados estes meses, defende que o que se construiu em termos de trabalho e pontes foi positivo. E prolongou-se também para lá das reuniões públicas, com trocas de ideias e apoio. «Somos poucos a trabalhar nesta área e se não fosse assim teria sido mais difícil. Conseguimos trabalhar de forma multidisciplinar e ao mesmo tempo, falo por mim, criaram-se amizades. Quando as pessoas estão juntas num mar de dificuldades tendem a criar laços de amizade e solidariedade. É semelhante ao que se assiste na tropa. Não conhecia ninguém no meu pelotão mas passamos por tanta coisa juntos que ficámos amigos.»

Rebobinando os últimos meses, recorda-se da primeira vez que ouviu falar do vírus? «A China reportou os primeiros casos em dezembro. Fiquei com muita atenção. Sempre que começa uma zoonose, uma transmissão de vertebrados para humanos, há um alerta. Embora seja algo frequente, quando acontece uma em que depois disto o vírus se transmite de humanos para humanos, acendem-se todas as luzes. Os chineses demoraram a reconhecer isso, fizeram-no só a 20 de janeiro, mas antes já tínhamos informação suficiente para perceber que era isso que estava a acontecer pela rápida transmissão».

 Veio fevereiro e no arranque do semestre na Faculdade de Ciências, antes de ser chamado a acompanhar a epidemia em Portugal (os primeiros casos seriam confirmados em março), as primeiras três aulas da cadeia de epidemiologia de doenças infecciosas já foram sobre o novo vírus – como vão ser no arranque do semestre em 2021. Na altura, admite que não era dos «céticos» que pensaram que o vírus não chegava cá, mas depois de a pandemia de 2009 ter sido mais branda do que se temia e dos outros coronavírus SARS e MERS não terem chegado, havia esse precedente. E se isso pode ter feito baixar a guarda, acredita que o problema é – e continuará a ser – mais profundo: «Apesar de se ouvir ao longo do tempo dos epidemiologistas que estas coisas não é uma questão de ‘se’ mas de ‘quando’, nunca se investiu o suficiente na preparação. O mundo todo estava com a guarda baixa. Os únicos países que não estavam com a guarda baixa foram que sofreram na pele o sars-1. Taiwan e Vietname, foram exemplares. Sabiam o que custa. Nós aprendemos agora. É como os terramotos. Estamos todos com a guarda em baixo até que nos aconteça, é a natureza humana».

Com as vacinas a prometerem um 2021 melhor, a OMS fechou o ano a avisar que uma epidemia pior está para vir. «Lá está, a questão é quando. Enquanto houver memória, acredito que se façam investimentos nos próximos anos. Mas depois quando vierem as crises financeiras, com o passar do tempo, volta-se a baixar a guarda. Espero que se criem estruturas de preparação e vigilância que se possam manter mesmo que não ocorra uma situação destas nos próximos 10 anos».

Agora que se está a começar a vacinar, uma outra história de outros tempos e de outro vírus, com paralelismos com este ano de modelos a ajudar a guiar o caminho. Nos anos 80, foi dos peritos que ‘convenceram’ a DGS de que era o momento de lançar uma campanha de vacinação contra o sarampo. «Na altura o diretor-geral da Saúde era o prof. Constantino Sakellarides e a dr.ª Graça Freitas era responsável pela vacinação. O sarampo dá origem a epidemias muito regulares. Previmos que iríamos ter uma grande epidemia de sarampo. Tive a sorte de serem eles e acreditarem. Iniciou-se uma campanha de vacinação que não só impediu a epidemia como praticamente eliminou o sarampo», recorda Manuel Carmo Gomes. «Uma vez encontrei o prof. Sakellarides, que a brincar dizia: ‘Nunca soube se foi sorte ou se projetaram aquilo bem’. Numa situação destas nunca há contra-factos, nunca sabemos o que teria acontecido. Mas mais tarde uma doutoranda nossa demonstrou isso mesmo. Tive a sorte de terem esse espírito aberto para a multidisciplinaridade. E mostra a importância que podem ter os modelos estatísticos e matemática na saúde pública».

Baltazar Nunes
‘O que nos é pedido é como se tivéssemos de calcular o PIB de ontem’

Mesmo para quem não domina a ciência da epidemiologia, o R tornou-se parte do vocabulário. Quando o fator de reprodução do vírus está acima de 1, significa que cada caso dá origem em média a mais e a epidemia está a crescer. Abaixo de 1, situação mais controlada. A unidade de investigação epidemiológica do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge começou logo em março a calculá-lo e a produzir relatórios para o Governo.

À frente da equipa e do computador, Baltazar Nunes, mais reservado nas aparições mediáticas é uma das referências desta área no país. Chegou ao INSA em 1997, como estagiário, numa altura em que a moda entre quem tirava Matemática Aplicada era ir para informática e telecomunicações, no boom dos telemóveis. Candidatou-se à vaga porque já gostava de biologia e deixou-se apaixonar pela epidemiologia. «Dá-nos uma perspetiva diferente sobre a saúde, a perspetiva do grupo mais do que sobre o individuo. Numa sociedade temos grupos de indivíduos que partilham os locais onde vivem, exposições que têm efeitos sobre a saúde, comportamentos e perceber isto, quem são estes grupos de indivíduos, que doenças têm, dá-nos oportunidades de melhorar as condições de saúde das pessoas aplicando medidas que intervêm sobre o ambiente ou grupos de pessoas. O aumento da escolaridade, o aumento do salário mínimo têm um impacto na saúde da população de que muitas vezes as pessoas podem não se aperceber porque não têm efeitos tão diretos, mas permitem melhorar condições de vida, aumentar a literacia, tudo isso influencia a saúde. Medidas estruturais que permitam reduzir desigualdades na sociedade podem ter efeitos significativos. É o que chamamos a causa das causas. Implica pensar a longo prazo, porque são mudanças que ocorrem em gerações, e isso por vezes é o mais difícil de transmitir.»

E se esse trabalho de análise é feito com tempo e distanciamento temporal, uma pandemia como a da covid-19 cruzam-se em tempo real todos os fatores. «Sabemos que um país mais saudável será mais capaz de responder a uma situação como esta do que um país com níveis de literacia em saúde menores, elevada prevalência de doença crónica. Em Portugal, temos vindo a melhorar bastante ao longo do tempo, mas ainda há caminho a percorrer».

À medida que a epidemia ganhou terreno, foi a velocidade e intensidade com que a informação se tornou necessária, mesmo já tendo desenvolvido alguns mecanismos na pandemia de gripe A, o mais marcante. «De repente tínhamos de produzir relatórios diários e com implicações muito mais profundas. Nunca tinha havido uma situação em que tivéssemos de dar explicações de uma forma tão permanente a níveis tão elevados da hierarquia nacional», explica Baltazar Nunes.

Além das reuniões do Infarmed e do contacto diário com a ministra da Saúde, houve chamadas do ministro das Finanças, com o ministra de Estado e da Presidência, o ministro da Administração Interna e com o ministro dos Negócios Estrangeiros, isto no Verão, quando o Reino Unido decidiu excluir Portugal dos corredores turísticos. Muita pressão? «Sem dúvida. Todos estes decisores tinham de tomar decisões com implicações fortíssimas e se estivesse no lugar deles também as queria tomar com a maior evidência possível. Mas uma das coisas que caracteriza a epidemiologia em situações de emergência é que para tomar decisões com a informação mais atual, tenho de tomar decisões com informação com menor qualidade. E isto pode confundir as pessoas, mas o processo de colheita de dados nunca nos permite ter hoje informação sobre a situação epidemiológica de ontem. Os indivíduos que se infetaram ontem, que adoeceram ontem, muitos não suspeitaram ainda que têm a doença. Conseguimos caracterizar um pouco melhor o que aconteceu há cinco dias e isto não tem a ver com incapacidades do sistema, mesmo que possam também existir. Podemos até perceber que alguma coisa está a mudar, mas a informação que possuímos para apoiar uma decisão é imprecisa, tem um elevado grau de incerteza.”

E essa foi uma das aprendizagens: como transmitir a incerteza. «Percebo que isso não traga conforto a quem tem de tomar decisão. Nós aprendemos a comunicar melhor, a identificar a informação que é mais relevante para a tomada de decisão. E penso que ao longo deste período muitos dos decisores aprenderam muito sobre epidemiologia», diz Baltazar Nunes. Mesmo que pelo meio surjam ainda alguns pontapés na gramática. «Claro que há algumas imprecisões, dizer que o RT é o risco de transmissão e não fator de reprodução do vírus, dar o RT em percentagem, mas acho que o mais relevante é que, em termos qualitativos, a ideia está lá. O essencial para mim, e penso que os meus colegas também, é perceber se a informação foi usada com sentido. A provedora da Justiça pediu-nos a certa altura que escrevêssemos um documento a esclarecer o que era o R, para que servia e como era interpretado. No fundo a preocupação era esta: ‘se há decisões sobre a população a serem tomadas com base neste indicador, gostaria de ter um maior conhecimento’. Por mais complexo que seja o cálculo, se estamos a assentar grandes decisões sobre indicadores deste género, acho natural que os vários órgãos exijam transparência e informação sobre o que são e as suas fragilidades, porque também as têm e isso tem de ser comunicado. Quando se produz um relatório financeiro, habitualmente são dados do trimestre anterior. Não sei o PIB de ontem. O que está a ser pedido é que calculemos o PIB ou a situação orçamental de ontem. E a informação demora tempo a ser consolidada, há erros na introdução de dados, variáveis que não controlamos».

A fechar o ano, segue-se janeiro com atenção. Com a epidemia a ter várias fases, o trabalho acaba por ser sempre novo e Baltazar Nunes acredita que deixará lições para o futuro. «Em todos os momentos da epidemia fomos confrontados com questões diferentes, o impacto do confinamento, a reabertura das escolas. Os indicadores em si podem ser os mesmos. O R até é calculado de forma automática, mas há um trabalho de interpretação que não é cansativo e penso que nos vai permitir saber muito mais sobre a epidemiologia das doenças infecciosas.» Na gripe, a experiência está em curso: nunca tinha havido uma utilização massiva de máscaras nem uma atividade tão branda. Se continuar a ser residual, poderá ser uma das lições a ficar, admite. Há um ano, até para alguém da área era uma daquelas diferenças culturais que chamam a atenção do outro lado do mundo. «Antes disto, em setembro e outubro do ano passado estive em Hong Kong a dar uma formação e alguns dos alunos estavam nas aulas de máscara. Lá perguntei porquê e foi aquela resposta simples: estou constipado, com expetoração e por isso estou máscara. Era um comportamento solidário entre colegas e professores».

 

Filipe Froes
‘Não tinha noção do impacto das fake news’

Filipe Froes tomou a vacina da covid-19 esta terça-feira. Vive-se um primeiro sinal de alívio depois de um ano pesado para o país e exigente mesmo para quem lida diariamente com a vida e a morte numa unidade de cuidados intensivos. Entre o serviço no Hospital Pulido Valente, onde coordena uma UCI e que viria a ser um hospital covid-free, o gabinete de crise da Ordem dos Médicos e o trabalho como perito na DGS, em que participou na elaboração de normas clínicas, e mais um ano em que se multiplicaram webinars e entrevistas, os dias alongaram-se, mesmo os que não eram de banco. Elege a comunicação ao longo destes meses como uma das maiores preocupações e recorda a primeira vez que falou sobre o vírus, no início de janeiro, para uma rádio, mais otimista do que viria a ficar dias depois. «De acordo com a informação que na altura havia da China, estava convencido de que o surto seria controlado. E foi isso que disse. Mas rapidamente percebi que a situação na China não era exatamente a que eles estavam a divulgar. Começou-se a perceber que havia dificuldades com a informação sobre o que se passava no terreno e comecei a perceber que havia uma gravidade que ia exigir mais transparência. Se tivesse havido mais transparência, provavelmente mais países poderiam ter intervindo e colaborado com a China e talvez pudéssemos ter controlado este surto sem haver pandemia. E agora, olhando para trás, embora tenha havido melhorias em relação ao surto de SARS em 2001, na minha perspetiva não houve total transparência, pelo menos na fase inicial. Ou não houve dimensão do que estava acontecer ou, se houve, não se conseguiu transmitir. E, infelizmente, vivemos todos a consequência de não se ter avaliado, logo inicialmente, o potencial deste ser microscópico».

Pneumologista e consultor da DGS há vários anos, e também adepto de futebol, setor em que ajudou a pensar formas de adaptação à pandemia, a máxima futebolística que utiliza todos os invernos para falar da gripe – «prognósticos, só no final do jogo» – viveu-se ao longo dos últimos meses num expoente mais elevado. Di-lo porque a gripe, mesmo com a vacina e sendo vista como benigna, vitima todos os anos 2 mil a 3 mil pessoas no país – mais nos anos de vírus mais agressivos. O mais desafiante numa pandemia de um novo vírus respiratório, uma doença nova? «Lidar com a incerteza e procurar, através do conhecimento que existe a cada altura, a melhor maneira de nos defendermos individual e coletivamente. Depois, ter capacidade de comunicar de forma clara às pessoas o que é possível e desejável fazer sem ter a evidência científica ainda a documentá-lo. Numa situação destas é preciso fazer opções com evidência frágil e fundamentar isso aos decisores. E servimo-nos da experiência anterior, do que vivemos no passado, tentando juntar as peças, à medida que surge mais informação e vamos conseguindo estabelecer a lógica». 

E se, nos últimos anos, tinha apontado críticas ao estado do SNS e a decisões do Governo, sublinha que a ministra da Saúde ouviu e apoiou desde o início propostas como a criação de áreas dedicadas à covid-19 e circuitos dedicados. E com todo o impacto que se conhece do primeiro confinamento, acredita que o fecho das escolas e da economia, perante a ameaça do colapso dos serviços de saúde, foi a decisão mais acertada. Viriam meses de aparente sucesso no controlo da pandemia, mas as variáveis do puzzle que não se conheciam à partida foram emergindo. «Um momento decisivo foi perceber o papel dos assintomáticos na transmissão e só em abril, praticamente no final do confinamento, é que tive a plena noção de como isso, provavelmente, explicava a dificuldade que tivemos em controlar a primeira onda. Nunca conseguimos ficar abaixo dos 200, 150 novos casos diários. Aconteceu o mesmo noutros países e foram surgindo estudos que mostravam que, de facto, havia indivíduos com carga viral detetável sem sintomas ao longo de toda a doença. E esta, para mim, talvez seja a maior capacidade adaptativa deste vírus: a capacidade de se transmitir através de pessoas totalmente assintomáticas. Na gripe, por exemplo, sabemos que existe um período de transmissão assintomática, durante 24 a 48 horas, mas as pessoas depois desenvolvem sintomas. No surto de SARS, em 2001, não houve uma transmissão à escala planetária porque as pessoas ficavam sintomáticas. E as medidas, na altura, de isolamento dos doentes e controlo de infeção foram suficientes para suster a infeção. Aqui, isso não chegava e terá sido determinante na evolução da epidemia, junto, claro, com a interconexão global e a possibilidade de nalguns casos se poder transmitir por aerossóis. Temos a conjugação de vários fatores que não tinham existido até aqui».

Se o conhecimento sobre o vírus se foi construindo – e muito está ainda por saber, como as sequelas da doença a longo prazo –, Filipe Froes considera que a desinformação acabou por se tornar um aliado da pandemia. E tornou-se, nos últimos meses, o seu combate. «Não tinha noção do impacto das fake news como condicionante do comportamento das pessoas. E se alguma coisa percebemos de vez nesta pandemia é que este é um dos grandes problemas com que vamos ter de lidar no futuro». Colega de curso de um dos médicos que lideraram o movimento dos médicos da verdade, Gabriel Branco, admite que foi ver um amigo ligado às campanhas que o fez tornar-se um «combatente da desinformação», o que lhe tem valido algum bullying nas redes sociais e mesmo ameaças de agressões. «A partir do momento em que apareci a desmontar argumentos, tornei-me um alvo desses movimentos. Passei a ter haters, a receber mensagens com ameaças de porrada. O problema, aqui, é que as fake news transformam-se facilmente em dangerous opinions. E se todos temos direito à nossa opinião, temos de ter cuidado quando as nossas opiniões não estão fundamentadas e podem colocar em risco terceiros. As pessoas têm de estar predispostas a ouvir e terem a humildade de reconhecer que não sabem tudo. Agora, coisas como irem buscar uma frase minha, de março, em que disse que não havia necessidade de usar máscara, quando não havia transmissão comunitária e seria um desperdício de recursos que podiam ser necessários, tirarem-lhe a data e descontextualizarem é apenas desonestidade intelectual». Com o início da vacinação, receia que as mesmas correntes alimentem a recusa da vacina. «E a pergunta que faço é: com tantos profissionais de saúde a serem vacinados, o que leram que nós não lemos?» A história da pandemia fica para mais tarde, mas coleciona memes humorísticos – e acredita que o humor é uma arma potente no combate da irracionalidade. Falou com órgãos de comunicação social de vários países, mas ir ao programa de Ricardo Araújo Pereira foi o ponto alto e tira o chapéu ao humorista. «Se eu recebo as mensagens que recebo, ele ainda deve receber mais». Acredita que a conclusão a que se chega sempre no fim de uma crise de saúde pública, de que é preciso tirar lições para o futuro, está por demonstrar que se aprenderá desta vez. «O desafio é sempre implementar tudo aquilo que aprendemos para estarmos mais bem preparados para o futuro. Infelizmente, ainda nunca o provámos. Na pandemia de 2009 não aprendemos nada. A meu ver, ainda nos pusemos mais a jeito. Diminuímos a robustez da resposta, a nível nacional e global».

 

Gabriela Gomes
‘Sinto falta de tolerância para diversidade de ideias’

Matemática especialista em epidemiologia e atualmente professora na Universidade de Strathclyde, no início do confinamento a família trouxe Gabriela Gomes de volta ao Porto, onde começou a trabalhar em teletrabalho. Quando começou a planear-se o desconfinamento, ajudou a mostrar como se poderia formar a segunda onda se as medidas fossem levantadas cedo de mais. Mas foi uma das suas teses que acabou por gerar mais discussão entre os académicos da área, ao propor que poderia ser suficiente 20% da população infetada para se atingir a imunidade de grupo na covid.19,

Agora com a vacinação a começar, mantém a hipótese e explica que mantém a expectativa de que quando se atingir esse patamar, os casos diários comecem a descer. «Tem-se especulado muito sobre essas estimativas, mas elas mantêm-se. Nos países que eu estudei com os meus colaboradores, que foram principalmente países europeus, os dados que há até agora continuam em conformidade com os modelos que nós desenvolvemos. Continuamos a estimar que quando cerca de 20% da população tiver sido infetada, o número de casos deixará de crescer», diz. « Este limiar não será exatamente o mesmo em todos os países, e mesmo dentro de um país deverá variar de região para região, mas pensamos que ande em torno desse valor. O limiar da imunidade de grupo também é condicional à estação do ano. Uma menor percentagem de imunidade pode ser suficiente para prevenir surtos no Verão mas não garantir proteção durante o Inverno», defende. Para Gabriela Gomes, que começou a dedicar-se a esta área há dez anos, tem havido sistematicamente um erro nos modelos matemáticos clássicos e é com base nessa premissa que vai desenvolvendo o seu trabalho – e considera que não tem sido fácil fazer diferente esta pandemia. «O erro era não considerarem que os indivíduos que constituem uma população não são todos igualmente suscetíveis. Quando essa variação é levada em conta, prevê-se que as epidemias sejam menores e que as intervenções tenham de um modo geral menos impacto. Desde aí tenho desenvolvido formalismos matemáticos que nos permitem tratar desta e de outras heterogeneidades e estabelecido colaborações para aplicar estas ideias a populações humanas e animais», diz. Antecipa que o vírus vai tornar-se endémico e terá várias vagas sazonais, mas o pior da pandemia já terá passado no final desta vaga, na primavera. «Confesso que estou ansiosa por sair do tema covid. Está muito polarizado e as pessoas são agressivas. Sinto falta de tolerância para diversidade de ideias e espaço para debate. Acho muito desconfortável fazer investigação neste ambiente», diz.

Óscar Felgueiras
‘É necessário manter um espírito crítico permanente’

Começou a seguir as notícias do que se passava na China em janeiro e depressa soaram os alarmes. Matemático especialista em epidemiologia, o que mais chamou a atenção foi «o crescimento exponencial do número de casos nos países onde ele estava a aparecer. Era um padrão que se repetia em todo o lado», recorda. Mal surgiram os primeiros casos, o investigador e professor da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, que nas últimas reuniões do Infarmed apresentou o ponto de situação da epidemia no Norte, começou a trabalhar na modelação da epidemia. Foi numa altura em que se estava ainda a perceber se os primeiros casos poderiam ser contidos e não passar de centenas que fez uma primeira intervenção pública no fórum da TSF a alertar que tudo apontava que não e era melhor preparar o embate. «Alertei que apesar de terem sido revelados 78 casos até àquele dia, já havia mais de mil pessoas infetadas no país, o que à posteriori ficou claro ser verdade», lembra. Era a mais-valia dos modelos, que ajudam a perceber o que se está a passar mesmo quando é impossível que o reporte de casos acompanhe ao dia a situação epidemiológica.

Na altura, começou a dar apoio ao conselho diretivo da Administração Regional de Saúde do Norte e nesta segunda vaga a preocupação intensificou-se. Em vários momentos, ajudou o SOL a perceber a evolução da epidemia e alertou em outubro para o aumento explosivo de casos. «Além da fase inicial, o outro momento de maior preocupação foi o do início da segunda vaga no Norte. Já no final de setembro estava muito preocupado pois havia vários indícios de formação de uma tempestade perfeita. No dia 13 de outubro fiz um alerta público para o crescimento sem precedentes que estava a ocorrer na região», recorda. O trabalho acabou por ser a tempo inteiro e obrigou a interromper as aulas na universidade. Três vezes por semana elabora um relatório que é divulgado na região Norte a várias entidades com os mapas de risco da região e contacta com as diferentes intervenientes locais para explicar a situação epidemiológica, num esforço da ARS para envolver todos os parceiros. «Adicionalmente, existe o lado da intervenção pública, que não é propriamente o meu trabalho, mas que considero ser uma extensão do mesmo», explica.

Se este ano matemática, estatística e epidemiologia se revelaram ferramentas centrais no combate a uma crise de saúde pública, como se vai parar a esta área na era pré-covid? O caminho é longo. Depois da formação base em matemática e doutoramento em Geometria Algébrica na Universidade do Michigan, especializou-se em Modelação Matemática e colaborações levaram-no a fazer estudos na área da tuberculose, que passou a ser um dos interesses. Uma doença respiratória com uma epidemiologia que deu algum lastro para trabalhar a covid-19. O maior desafio na modelação da epidemia? «É a constante adaptação a novas condições. Este é um jogo onde as regras mudam frequentemente e em que facilmente um modelo que faz sentido numa semana, deixa de fazer na seguinte. É necessário manter um espírito crítico permanente». Nos últimos meses, com dezenas de milhares de pessoas no Norte apanhou covid-19. O que se sente quando se passa a fazer parte dos números? «Encarei a doença com naturalidade, mas talvez tenha tido sintomas mais tempo que o desejável, três semanas. Também não repousei o suficiente. Não faço ideia de como fui infetado, pois tive um comportamento cauteloso e nenhum dos meus contactos próximos ficou doente naquela altura. Em termos da experiência, creio ter ganho uma nova perspetiva por ter sentido na pele aquilo com que lido habitualmente à distância. Destaco o acompanhamento telefónico frequente por parte do meu médico de família e o ter confirmado, sem margem para dúvidas, a inutilidade prática da aplicação Stayaway Covid».

Pedro Simas
‘Muitos animais cooperam, até células cooperam, mas nenhuns animais fazem o que o homem faz’

Disse ao longo dos meses, mesmo quando a epidemia parecia abrandar, que em termos epidémicos estávamos no princípio do princípio da maratona. Agora, com a vacina à vista, como estamos? «Continuamos  no princípio dos princípios em termos pandémicos, porque 85% a 90% da população mundial continua sem ter tido contacto com o vírus e a poder ser infetada. Mas ao mesmo tempo, estamos no início do fim», sorri. Pedro Simas, virologista do Instituto de Medicina Molecular Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes, faz questão de olhar sempre para a big picture e foi disso que fez questão de falar muitas vezes ao longo dos últimos meses.

Quando ouviu falar do novo vírus em dezembro, pensou que pudesse ficar contido como o SARS em 2001, mas depressa percebeu que o problema poderia alastrar, diz. E que o confinamento, necessário, não iria travar a pandemia. «O vírus seria muito transmíssivel, à partida seria menos virulento, o que era positivo. Por outro lado, percebi que era impossível travar o bicho». A ideia era que o vírus, chegando à Europa, chegaria cá, afetaria todos os países e o ano, entre conter e aliviar, seria quase como que de pára-arranca, tentando proteger os mais vulneráveis. No início, o IMM mobilizou-se para fazer testes e colaborou no desenvolvimento de numa máscara que inativava o vírus. Nesta segunda vaga, mais forte, o foco foram os lares, onde colaboraram num programa de testagem da Segurança Social que permitiu fazer mais de 60 mil testes ao longo das últimas semanas. «O objetivo era impedir que o vírus entrasse nos lares através dos funcionários e prevemos que através dos testes, perante a incidência que existiu, tenha sido possível prevenir 400 surtos em lares. Tinhamos uma mortalidade na pandemia em que 40% das vítimas mortais eram utentes dos lares. Dos dados que temos do Ministério do Trabalho, de 1 de outubro a 15 de dezembro, a altura mais crítica, a mortalidade nos lares foi de 24%.»

A epidemia atingiu ainda assim muito mais idosos na segunda vaga e as mortes dispararam e admite alguma preocupação. «Estou muito preocupado com as pessoas que estão fora dos lares. Temos 400 mil portugueses com doenças de maior risco que serão contemplados na primeira fase da vacinação, mas entramos numa altura em que com o efeito depois das festas, a reabertura das escolas, poderemos ter um aumento de casos e será preciso manter muito cuidado porque o risco de contágio é muito elevado».

Em jeito de balanço do final do ano 1 da covid-19 – e já com o aviso de que provavelmente o vírus deixará de ser pandémico quando for atingida a imunidade de grupo, mas continuará a circular todos os anos, com maior incidência nos invernos como os outros vírus respiratórios – Pedro Simas elege quatro ideias que o marcaram ao longo dos últimos meses. A primeiro foi a reação global da humidade: o medo perante um ser tão pequeno. «Vivemos numa sociedade global, tecnológica, e a reação foi instantânea. Antigamente tinhamos informação just in case, hoje temos a informação just in. Qualquer coisa que precisamos de saber temos na internet. E gerou-se um medo, perante o desconhecido, e também com a falta de informação sobre o que é um vírus».

A mesma era digital que acredita que criou um certo pânico alimentou uma cooperação global sem precedentes, da sociedade civil à academia e indústria.  «O ser humano não domina por ser o mais forte, fisicamente o mais apto. É por associar à sua inteligência uma qualidade moral que é a empatia. Muitos animais cooperam, até células cooperam, mas nenhuns animais fazem o que o homem faz. Ter empatia, uma moralidade. E somos muito tribais nisto. Somos do Sporting, do Benfica, somos de Lisboa ou do Porto. Mas quando uma pessoa está em Cambridge como eu estive e há pessoas de Lisboa e do Porto, já somos todos portugueses». E no início, com o medo à mistura, foi tudo contra a pandemia. «Era um problema global e a empatia levou-nos a cooperar para resolver o problema de forma extraordinária. Desde arranjar soluções, com uma cooperação entre universidades e politécnicos que deixaram de lado a sua competição saudável que faz evoluir a ciência, a reduzirem-se as burocracias nos ensaios clínicos que permitiram ter as vacinas mais depressa. Ao papel da União  Europeia, que tantas vezes é criticada e vimos como foi fundamental neste processo para que um país como Portugal possa ter mais força a negociar vacinas».

Um terceiro aspecto que destaca foi o civismo com que os portugueses lidaram com a pandemia e o jornalismo, que foi transmitindo informação para as pessoas tomarem decisões, mesmo com desinformação à mistura. «Sinto que houve uma curva de aprendizagem».

Por fim, as vacinas. «É verdade que começámos com algumas reservas, a gerir as expectativas. Conhecíamos os coronavírus, vacinações nos animais domésticos, mas havia incerteza e quando se percebe que isto vai funcionar sente-se um grande alívio, mesmo com toda a incerteza. Eu, sendo otimista, pensei que só na Primavera começávamos a vacinar. E as previsões são assim, por vezes estão erradas. Neste caso foi bom».

Como se desenrolará o início do fim de que falámos ao princípio? «A vacina vai-nos permitir fazer aquilo que com infeção natural e medidas de prevenção levaria anos a conseguir e mesmo assim com uma grande fatura de perda de vidas humanas», diz Pedro Simas, sublinhando no entanto que não se trata de eliminar o vírus, mas de passar a conviver com ele com menos sobressaltos – provavelmente sazonalmente, mas com os grupos de risco protegidos, logo menos complicações e internamentos e menos mortes. E assim, mesmo que não haja uma data certa para o alívio acontecer, 2021 poderá ser um ano de transição da pandemia para a endemia, acredita o investigador, para quem o ano foi dedicado ao coronavirus. Praticamente sempre em teletrabalho em casa. «Estou cansado mas foi uma experiência muito gratificante poder colaborar. Acho que 2021 vai ser muito diferente. Temos agora três meses mais críticos, mas começaremos a retomar as nossas vidas». Da velha rotina, só há uma coisa que manteve: exerício e passeios de bicicleta, para manter a forma física e o bem-estar mental, o que recomenda. Foram várias vezes que o apanhámos do outro lado do telefone depois de largar a bicicleta e esta última conversa do ano não foi excepção. «Costumo andar todos os dias, hoje já fiz 80 km e costuma ser mais», conta.

Chegado ao fim do ano, acredita que no meio de tudo o que foi mais dificil, pela cooperação, pela ciência que permitiu a vacina, 2020 termina como um ano bom para a humanidade, mesmo forçada a parar por um vírus menos que milimétrico. Resta ver para onde nos viramos. «Foram precisos 100 mil milhões de seres humanos para evoluirmos e chegarmos onde estamos hoje. Agora somos quase 8 mil milhões e acho que estamos numa fase fantástica da humanidade. Acho que estamos a entrar na fase exponencial de tudo».

 

Ricardo Mexia
‘Fomos muito mais reativos do que proativos’

Presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública desde 2016, Ricardo Mexia foi em muitos momentos o explicador em vários órgãos do que se estava a passar na pandemia, os cuidados a ter e o que estava ainda por fazer – não poupando críticas aos decisores. «Assumimos a comunicação como parte da nossa missão na associação. Há três áreas nucleares em saúde pública: proteção da saúde, promoção da saúde e prevenção da doença. Numa pandemia como esta, as três são essenciais. Na proteção da saúde, a definição de regras coube às autoridades de saúde e não passou tanto pela associação. Mas na promoção da saúde e na prevenção da doença, quisemos estar presentes, dar informação às pessoas e os media tiveram também um papel importante, colaboraram muito com os especialistas, porque era muito fácil embarcar em teorias da conspiração e foi com responsabilidade que assumiram o seu papel.»

Com o ano a terminar, é perentório: a vacina vem mudar o jogo e é um triunfo da ciência num ano que pôs os serviços de saúde à prova. «A medida de saúde pública está agora a chegar, a vacinação é a mais eficaz medida de saúde publica de sempre e esperamos que cumpra este papel».

Depois de várias vezes ao longo dos últimos meses ter apontado falhas ao planeamento que estava a ser feito no país, desde logo a falta de reforço atempado de equipas de saúde pública, que levou a atrasos nos inquéritos epidemiológicos nesta segunda vaga da epidemia, acredita que o ano que começa, podendo ser mais auspicioso, não será menos exigente.

E há todo um trabalho de preparação para fazer mesmo para o futuro porque as ameaças não vão desaparecer: as condições que propiciaram o aparecimento deste vírus poderão trazer outros, sublinha. «Temos maior densidade populacional, maior proximidade entre animais e humanos e nos últimos dez anos já tivemos alguns avisos. A epidemia de gripe aviária, o ébola, o zika e agora esta pandemia. A minha expectativa é que exista finalmente a perceção de que temos de apostar na preparação. A OMS já lançou uma aliança para a segurança em saúde e Portugal seguramente também poderá melhorar entrando nesse esforço, com processos de certificação para identificar lacunas». É a sua área de trabalho no Instituto Ricardo Jorge, onde coordena o projeto Gripenet e admite que a vigilância é essencial. Foi nas redes internacionais onde colaboram peritos que recebeu os primeiros alertas do SARS-CoV-2 no final do ano passado, que viriam a confirmar o pior em termos de ameaça global.

Admite apreensão com o que trará janeiro na pandemia e considera que a gestão da segunda onda, já com muito mais casos e mortes do que a primeira, foi um «desastre» depois de nos primeiros meses da pandemia o país ter conserguido reagir precoemente, aproveitando o facto de ter detetado os primeiros casos um pouco mais tarde que os outros países. «As coisas correram bem, mesmo tendo havido alguns problemas. Teve uma dimensão menor. Mas depois ficámos confiantes ou achámos que tínhamos características que nos protegiam e perdemos o verão que tivemos para plenar. E é verdade que os números baixaram mas mantivemos ainda assim um número elevado, fruto do aumento de casos na região de Lisboa e Vale do Tejo. Disse-se que foi porque testámos, mas nunca testámos de mais, porque a nossa taxa de positividade nunca foi muito baixa e antes das festas continuávamos a ter uma positividade elevada.»

Já na preparação para a segunda vaga, que se antevia que pudesse começar a crescer com a reabertura das aulas e em que mesmo assim Portugal conseguiu ter mais algum tempo que outros países europeus, acredita que as lições da primeira vaga e da importância de antecipar falharam. «Acabámos por ser muito mais reativos do que proativos, em particular nesta segunda onda e isso ainda não mudou».

Receia que a expectativa da vacina leve os portugueses a baixar a guarda e o apelo continua a ser por mensagens claras, que já nos últimos dias voltaram a não o parecer, aponta. O exemplo é o sms enviado pela Proteção Civil a anunciar que a vacinação arrancava no dia seguinte, facultativa. «Temos de ser muito claros na mensagem de que não está ainda nada resolvido. E se calhar para metade dos portugueses, antes do verão não vão estar inscritos para fazer a vacina. Foi precoce».

Nélson Pereira
‘Vão ficar memórias mas não vão ficar traumas’

No início o vírus trouxe o desconhecido para dentro do hospital. E de repente o Hospital de São João, o primeiro a levar com a enchente de doentes da primeira vaga, precisou de se adaptar à nova realidade que parecia ganhar volume a cada dia. Nelson Pereira, que ao longo dos últimos meses voltaria a alertar para o aumento de casos na região Norte e a tornar-se um dos rostos do hospital, hoje responsável pela Unidade Autónoma de Gestão (UAG) de Urgência e Medicina Intensiva do hospital, era um dos coordenadores da urgência na primeira vaga. Em maio, quando a pandemia deu alguma trégua, recordou ao nosso jornal no serviço então mais calmo que chegaram no pico de casos em abril a ter 350 casos suspeitos num dia, 100 a dar positivo. Era não só uma doença nova, mas uma carga de trabalho que tiveram de perceber como enfrentariam. «Somos uma urgência com equipas dedicadas e tínhamos cerca de metade da dotação prevista para o serviço. De repente foi como se caísse aqui uma bomba atómica», resumia na altura o médico internista.

Olhando agora para trás, Nelson Pereira recorda como nesses dias, enquanto tomavam conta de casa, foram ajudando outros hospitais a preparem-se. Tal como no início da epidemia na Europa os médicos italianos e espanhóis arranjaram tempo para dar testemunho aos colegas de outros países, também ali receberam equipas de outros hospitais e foram partilhando o que estavam a fazer, ideias como a necessidade de antecipar necessidades em vez de reagir, perceber para onde escalar serviços. Instituíram o uso de máscara por todos os profissionais antes de ser regra a nível nacional, assim como o rastreio de doentes que davam entrada para serem operados ou internados por outras causas. «Como tínhamos tantos casos, tivemos de operar as primeiras revoluções, numa altura em que ainda não havia normas e recomendações emanadas e estava toda a gente a apalpar terreno. Fomos criando escola, fomos por tentativa e erro. Na altura éramos um dos hospitais de referência, a receber quase todos os casos. Começámos a receber solicitações de colegas, amigos, menos e mais conhecidos que perceberam que mais tarde ou mais cedo ia chegar à casa deles. Percebíamos que estavam ainda a anos-luz do que estávamos a viver».

Foi logo aí, nessa comunicação entre pares, que percebeu que começou a perceber que esse seria um dos eixos de intervenção da pandemia – mesmo para um médico na chamada linha da frente. Viriam as normas, a organização e as diferentes fases da pandemia, que voltou em força ao Norte em outubro. E quando percebeu que muitos dos casos aconteciam porque as pessoas tinham baixado a guarda, voltou a dar a cara a falar dos cuidados no dia-a-dia: quando se está com um amigo, quando se faz uma pausa para fumar com um colega sem distância. «A ideia foi essa, usar uma linguagem que a maior parte das pessoas entendem. Temos um problema transversal a toda a sociedade e temos de ter mensagens que todos compreendam, se não o objetivo perde-se e estamos numa altura em que as pessoas precisam de perceber exatamente o que está em causa».

Nos hospitais, mesmo com uma segunda vaga com mais doentes, o desconhecido já não veio este outono com o vírus e viveram-se as últimas semanas com preocupação mas maior naturalidade e confiança. «Tivemos de criar procedimentos e ao fazê-lo adquirimos a normalidade. Hoje é mais anormal a vida fora do hospital, em que ficamos confinados, do que dentro, porque estamos rotinados. A forma de trabalhar com a covid-19 passou a ser a nossa forma de trabalhar». O ano foi exigente mas acredita que ficarão memórias e não traumas. «O trabalho do serviço de urgência como o dos cuidado intensivos é muito exigente. Felizmente conseguimos até agora lidar com este processo sem perdas dramáticas. Claro que todos os dias temos perdas e derrotas, mas isso também acontece num dia normal fora da pandemia. As pessoas que trabalham nestes ambientes são resilientes por natureza», diz. Seguem juntos e com esperança, como termina os apelos que ao longo das semanas tem deixado escritos, também como memorando do que há a fazer, nas redes sociais.

 

António Silva Graça
‘Para nós ainda é o presente, mas este período ficará na história’

Foram 49 noites em direto no jornal da RTP, uma missão nova para António Silva Graça, infecciologista, major-general reformado e médico do trabalho. Com voz de rádio e tom sereno, ajudou a descodificar os primeiros meses da pandemia – quando as dúvidas eram muitas e a incerteza maior. Um convite inesperado que aceitou com vontade de dar o seu contributo. «Já tinha tido algumas participações pontuais, desde logo quando foi a epidemia de SARS em 2002/03, na gripe aviária, em surtos de legionela. Comecei por fazer uns comentários espaçados e um dia surgiu o convite para o passar a fazer diariamente no telejornal. Percebi que podia haver interesse público e foi uma experiência gratificante porque me deu a oportunidade de conhecer um mundo que não era o meu no dia a dia e trabalhar numa equipa que achava importante o que estava a fazer. Confesso que quando cheguei ao fim daqueles 49 dias foi surpreendente ter sido tanto tempo. Passou muito depressa».

O país estava confinado. António Silva Graça, especializado na área da saúde ocupacional e médico de trabalho por exemplo no Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, onde foram meses exigentes, continuava também a exercer e foi percebendo, além dos caminhos do vírus, os impactos do teletrabalho e o relevo que estava a ganhar a saúde ocupacional, principalmente no acompanhamento das pessoas que continuavam a ter de trabalhar fora de casa mas também nas que estavam agora pela primeira vez à distância. «Penso que se percebeu também neste período o papel de maior proximidade que podiam ter os médicos do trabalho, sobretudo numa altura em que havia maiores dificuldades no acesso aos cuidados de saúde primários, assoberbados de tal forma com a pandemia, como ainda estão, que não conseguiam responder a tudo. Houve que proteger e cuidar da saúde das pessoas que estavam a trabalhar, era crucial o seu desempenho num período crítico».

Médico experiente, em que lugar ficará o SARS-CoV-2 na grande história dos vírus? «No nosso tempo de vida, é o que atinge uma relevância maior. Sabemos que pandemias com grande disrupção acontecem em intervalos de tempo. Sabemos que sim, mas só à medida que evoluem temos essa perceção. Podem acontecer mas estão muito para trás na nossa história, as pandemias da peste, a gripe espanhola. Isto para nós não é história, é ainda o presente, mas estamos sem dúvida a viver um período que vai ficar na história e provavelmente do ponto de vista de importância sanitária, de repercussão de pessoas infetadas e de pessoas que não vão resistir a esta infeção – e ainda não terminou a pandemia – será um número com expressão. E alinhando as grandes epidemias que conhecemos, esta poderá ser a terceira ou quarta mais importante».

Hoje existem recursos que não existiam na peste ou na gripe espanhola, uma vacina num tempo recorde. Mas António Silva Graça sublinha que apesar desses avanços, continua a não haver um agente terapêutico para o vírus. O combate não está terminado e continua haver dificuldades em controlar a infeção, pelo facto de haver transmissão assintomática – e isso torna difícil acertar as medidas. Num ano em que tantas vezes se falou de guerra ao vírus, acredita que a preparação militar pode dar um contributo diferente, como tem dado, mas teriam sempre de ser estruturas sanitárias do país a liderar o esforço do país. «Parece-me que está a ser bem dirigido pela autoridade de saúde nacional», diz.

 

Carla Nunes
‘A pandemia trouxe maior consciência da utilidade pública da investigação’

Se ao início desvalorizou, por considerar que não iria representar um problema a nível mundial, rapidamente a primeira imagem que Carla Nunes teve da pandemia foram os caixões italianos e espanhóis nos telejornais nacionais. «Foi uma grande preocupação com o desconhecimento sobre esta doença a todos os níveis (transmissão, diagnóstico, gravidade e mortalidade) e ainda com toda a incerteza em relação a possíveis medidas para atuar». Em relação à segunda imagem não hesita: «Foram as ruas completamente vazias, mais evidente nas grandes cidades, e o que isso representa (teletrabalho, desemprego, isolamento, desigualdades, etc.)».

A diretora da Escola Nacional de Saúde Pública lembra que o estabelecimento colocou em segundo plano os projetos de investigação regulares em que estavam a trabalhar e redirecionou o seu foco para a resposta à pandemia. «Foi assim que nasceu o Barómetro Covid-19, uma equipa multidisciplinar de cerca de 30 pessoas, entre investigadores, docentes e alunos da Escola, que acompanham o desenvolvimento da pandemia e disponibilizam à sociedade dados efetivos e análises científicas, com o objetivo de contribuir ativamente para a sua compreensão, assegurar uma ferramenta de apoio à tomada de decisão e gerar conhecimento robusto, que possa ser útil em situações futuras».

Quanto aos resultados do barómetro não tem dúvidas: «Os indicadores têm sido muitos e variados, ao mesmo tempo e ao longo do tempo», mas lembra que a questão da confiança na vacina, a capacidade de resposta dos serviços a todas as questões não covid – nomeadamente os cuidados de saúde primários e a integração de cuidados – e as consequências a médio e a longo prazo desta doença serão centrais na sua investigação.

«Nunca antes a Academia esteve tão exposta, foi tão falada, nunca antes se esperou que a Academia pudesse ser tão útil em situações urgentes. Esta pandemia trouxe uma maior consciência da utilidade pública da investigação, tanto aos olhos da sociedade como para o próprio universo académico. O tempo tem aqui um papel central», refere.

Carla Nunes reconhece, no entanto, que «esta súbita exposição e proximidade com a sociedade trouxe desafios interessantes para um investigador que, ao mesmo tempo que faz ciência, tem que a comunicar para o cidadão e, no meu caso, também para o decisor político, e tudo isto, enquanto lidamos com grande complexidade e incerteza». E face a essa situação acredita que a saúde global ganhou um espaço e urgência inquestionáveis para todos. «No mundo mais desenvolvido em que vivemos, as doenças crónicas e a multimorbilidade – muito relacionadas com o envelhecimento e com estilos de vida pouco saudáveis – estavam a ganhar ‘espaço’ em comparação com as doenças infetocontagiosas. Foi um equilibrar das áreas, num tabuleiro onde todas as áreas da saúde pública são fundamentais», refere ao nosso jornal.

A curto prazo as suas maiores preocupações passam pela situação socioeconómica das pessoas com baixo rendimento e menos escolarizadas – aquelas que considera que são potencialmente mais afetadas com a crise económica que resulta desta pandemia – pela saúde mental dos mais idosos e dos jovens – as faixas etárias da população que maior ajustamento têm feito e continuarão a ter que fazer à sua vida social e aos afetos. «Também me preocupa muito todo o contexto ‘não-covid’, em termos de diagnóstico, de tratamento e/ou acompanhamento: é urgente equilibrar esta questão», salienta.

Mas a médio e longo prazo chama a atenção para a «evidência epidemiológica e laboratorial que começa a surgir acerca do risco de a infeção poder vir a agravar outras doenças, nomeadamente, mas não só, a epidemia de doenças neurodegenerativas, como o Parkinson e o Alzheimer».

Em relação ao que o futuro que nos reserva, a diretora da Escola Nacional de Saúde Pública tem muitas dúvidas. «As vacinas são obviamente fundamentais neste processo, mas ainda não estamos em tempo, com conhecimento, para responder a estas questões. Interessa assim realçar que precisamos de manter as medidas, que já todos conhecemos, por mais tempo».