O confinamento de António Costa

Feitas as contas, sacrifica-se meio país pelo outro meio – sem sabermos quem afinal fica mais protegido ou quem mais vai ter de sofrer da doença ou da cura.

Já está: ao fim de menos de um ano, Portugal volta a fechar-se em casa. Não num confinamento geral como em março e abril de 2020 – quando praticamente não havia covid-19 no país e, por isso, as trancas na porta resultaram com impacto quase perfeito (o milagre português do ponto de vista sanitário) –; mas num confinamento mitigado, com milhões de miúdos e encarregados de educação a continuarem a poder frequentar ou ir à escola e, assim, mais umas centenas de milhares de professores e pessoal auxiliar a manterem-se no ativo, mais os serviços públicos e religiosos e, claro, o futebol profissional (mesmo sem público nos estádios) e os prestadores de serviços essenciais. O resto volta a fechar tudo. Feitas as contas, sacrifica-se meio país pelo outro meio – sem sabermos quem afinal fica mais protegido ou quem mais vai ter de sofrer da doença ou da cura.

António Costa anunciou-o na quarta-feira, com ar carregado e cansado. E só. Demasiado só.

Ele que tanto repetiu que Portugal não poderia voltar a confinar – porque era impossível, estava fora de causa – era agora forçado a anunciar a ausência de alternativa. Ainda que o confinamento de geral tenha pouco e as exceções sejam incompreensíveis.

Como incompreensível é que o anunciado confinamento, antes ainda de começar a produzir efeitos palpáveis, seja estupidamente levantado para que o povo todo seja chamado a ir às urnas, desta vez até com a novidade de muitas urnas irem aos eleitores.

Não, não é aceitável!

Com tantos especialistas em tudo e mais alguma coisa, nenhum conseguiu fazer prevalecer o que era tão evidente há meses ou, no mínimo, há semanas? Pois se até Tino de Rans já em setembro dizia que o melhor seria adiar as eleições para a primavera seguinte, ninguém com responsabilidades políticas ou de saúde pública soube antecipar o óbvio?

Agora, até pode dizer-se que o que não tem remédio remediado está. Mas esperemos que a votação no dia 24 não seja subvertida pelo impedimento que necessariamente recairá sobre centenas de milhares de eleitores que, pura e simplesmente, verão precludido o seu direito de voto.

Como proclama a infeliz campanha da Comissão Nacional de Eleições, se a pandemia não pode ser desculpa para as pessoas deixarem de ir votar, a verdade é que centenas de milhares de eleitores, ou por testarem positivo ou por se encontrarem em isolamento profilático já depois de esgotado o prazo para se inscreverem no voto antecipado ou residencial (e as listas fecharam no dia 14, acabando amanhã, dia 17, o prazo para a respetiva inscrição no voto recolhido em casa), veem precludido o seu direito de voto.

O que é, do ponto de vista democrático e constitucional, uma enormidade.

E se a perspetiva de uma abstenção voluntária demasiado alta pode desvirtuar os resultados, se acrescer a soma daquela abstenção forçada pode até pôr-se em causa a legalidade das próprias eleições – que a Constituição proclama como livres e justas e assim dificilmente o serão.

Aliás, basta atentarmos ao que tão recentemente se passou nos Estados Unidos para sermos obrigados a recear pelos efeitos dos exercícios de facilitismo: veja-se pelo prisma que se quiser ver, a democracia nunca esteve tão ameaçada onde sempre teve os seus mais sólidos alicerces.

Por isso, e porque a economia real do país e as contas públicas, nomeadamente um endividamento galopante e gigantesco (já para além dos 135% do PIB), não resistirão a este novo e prolongado confinamento, é tão evidente a falta de confiança de António Costa e mais dramático o seu isolamento. Que nada tem de profilático e nada augura de bom.

No PS, Carlos César parece ter-se confinado até ver, e no Governo, onde o núcleo político ficou reduzido a quase nada, as saídas de Vieira da Silva e de Mário Centeno deixaram feridas nunca cicatrizadas que poderão ser ainda mais profundas quando se confirmar a cisão de Pedro Nuno Santos e o abandono, finda a presidência da UE, do último peso-pesado, Augusto Santos Silva.

Eduardo Cabrita tem os dias contados, Francisca Van Dunem idem. Marta Temido está esgotada, coitada. E os outros? (Tirando Temido, Siza Vieira e Ana Mendes Godinho) O que andam a fazer os ministros que nada têm a ver com a covid? Existem?

Há, ainda, outras guerras de trincheiras que darão tema para muitas crónicas, mas, para já, Costa tem de ultrapassar esta pesada batalha do confinamento: no país, no Governo e no partido. E não lhe será fácil.

 

P.S. – Marcelo Rebelo de Sousa ficou irritado com os serviços de Saúde e disse-o: «O Presidente deve ser tratado como um cidadão comum… Merece é uma resposta». Não, o Presidente não deve ser tratado como um cidadão comum, porque não é um cidadão comum, é o Presidente. Mas se o Presidente tem de ter uma resposta – não pode deixar de a ter!!!! – , o cidadão comum também!!!