Quero o meu Porto de volta!

Eu quero o meu Porto, velho, usado e sujo, com gentes nas ruas a falar com sotaque do norte, com ‘bibas’ em vez de ‘Yesses’, com vendedoras ambulantes nos antigos mercados do Bom Sucesso e do Bolhão, quero o Majestic e o velho Luso só para nós, barulhentos, faladores, conspiradores e criativos, com putas e…

por Fernando Matos Rodrigues
Antropólogo, CICS.Nova UM/LAHB

«Bibinha! Quem a quer bibinha?».
Pregão das mulheres de venda nas ruas do Porto

 

Um fim de manhã com uma luz de granito fina e cristalina. Uma luz graça divina para os olhos de Manoel de Oliveira ou António Cruz, pintor da cidade. Um frio do Porto que nos entra nos ossos e nos faz parar na esquina do Padrão, onde bate o sol.

Uma rua de silêncio, de vazio, de luz, de casario reabilitado e bonitinho. Lá vamos rua acima, rua abaixo, atravessamos a praça dos Poveiros e mergulhamos em Santa Catarina. Um vazio de meter medo deixa-nos os olhos gelados. Imobilizados pelo silêncio, pela ausência das vozes de Santa Catarina, nem Camilo, nem Garrett, nem Eugénio, nem Agustina podem compreender e aceitar medonho vazio de gentes e de vozes.

As gaivotas também abandonaram a cidade. Foram para outras periferias e cidades à procura dos homens que lhes deixam na rua o alimento, que outrora os pescadores da Cantareira e Foz lhes garantiam na pantagruélica refeição.

O vazio corta-nos a alma, como se fosse um golpe de frio atlântico; o sol é a única esperança que nos resta numa cidade abandonada e petrificada. O Majestic encerrado, bonitinho e janota, nem parece verdade. Restauraram-lhe os couros, os estuques, as madeiras, mas nada daquilo sabe ao Porto.

Vou caminhando, os nossos olhos procuram no meio destas paredes e ruas o amigo escultor José Rodrigues. Mas nem o seu Anjo resistiu à moda das oliveiras e das pracinhas higienizadas da cidade turística. O seu ‘Cubo’ na praça já não é dos homens e mulheres, nem dos putos e pardais da Ribeira. Lá está ele só, triste e abandonado. Caminho pelo muro do Cais e nada daquilo que por lá se fez me dá sentido de orientação. Sinto-me perdido nesta distopia.

A cidade perdeu a sua alma, as suas gentes, os seus sotaques, os seus negócios, os seus moradores – castiços, uns, e outros que não nos davam jeito nenhum. Procuro nas antigas adegas da Viela do Anjo o sotaque do Porto e deixo-me embalar pela escrita certeira do grande professor Arnaldo Saraiva.

Dou comigo a pensar. Como foi possível destruir uma cidade em tão pouco tempo? Estes últimos anos foram anos de martelo, o deita-abaixo de casas, de memórias, de pessoas, de famílias, de economias centenárias; nem as velhas taipas e os gloriosos azulejos escaparam à fúria deste capitalismo selvagem.

Eu quero o meu Porto, velho, usado e sujo, com gentes nas ruas a falar com sotaque do norte, com ‘bibas’ em vez de ‘Yesses’, com vendedoras ambulantes nos antigos mercados do Bom Sucesso e do Bolhão, quero o Majestic e o velho Luso só para nós, barulhentos, faladores, conspiradores e criativos, com putas e poetas, com intelectuais e revolucionários, políticos e advogados à mistura.