Judeus: As equipas dos guetos

Durante a II Grande Guerra os guetos de judeus multiplicaram-se, mas isso não evitou que muitas cidades tenham visto nascer novos clubes.

O início da II Grande Guerra desenvolveu a mais abjeta segregação de judeus da História. Por toda a Europa, e não apenas nas zonas de influência ou ocupação alemã, os guetos foram surgindo como cogumelos, transformando-se em cidades dentro das cidades. Vendo bem, a perseguição já vinha de longe. Pelo menos desde meados de 1800. Mas isso não impediu que a comunidade judaica respondesse à medida, sobretudo graças a uma espiral de solidariedade que levou, em muitos casos, a criar autênticas ilhas sociais, cada vez mais fechadas, cada vez mais distantes, cada vez menos abertas à aproximação dos gentios.

Essas ilhas de judeus, se assim lhes quisermos chamar, organizaram-se ferozmente em redor dos seus costumes, das suas práticas religiosas e das suas instituições sociais. E o futebol, que já era na altura um fenómeno que não conhecia nem fronteiras, nem raças, nem credos, passou a ser, também ele, uma forma de resistência.

Muitos clubes exclusivamente judeus foram fundados, os primeiros deles muitos anos antes, como foi o caso do Hakoah de Viena que surgiu em 1909 na sequência do Congresso Sionista de 1898, um movimento que propagava o «judaísmo musculado», apostando na resistência pura e dura ao contrário dos que se sentiam atraídos pela resistência passiva.
Hakoah é a palavra hebraica que significa força. Uma palavra que serviu para batizar vários clubes judeus um pouco por todo o lado, sendo que o de Viena ganhou um destaque suplementar, embora seja mais do que provável que em Hamburgo já existisse um clube com o mesmo nome desde outubro de 1898, o Jüdischer Turn- und Sportverein Bar-Kochba-Hakoah.

Profissionais

Em Viena, os fundadores do Hakoah apostaram bem cedo no profissionalismo, algo que lhes permitiu lutarem pelos primeiros lugares do campeonato austríaco. Por isso, liderados por um inglês chamado Billy Hunter, atingiram o segundo lugar em 1922 e foram campeões da Áustria em 1925, algo que criou, certamente, bexigas no sangue do cada vez mais poderoso lobby antissemita. Mas nada a fazer. A fama do Hakoah de Viena extravasou fronteiras. Em 1923 tornaram-se na primeira equipa estrangeira a ir a Inglaterra derrotar uma equipa inglesa. O adversário foi o West Ham e o resultado não deixou dúvidas: 5-1! Dois anos mais tarde partiram numa longa digressão pelos Estados Unidos que foi um absoluto sucesso e não apenas desportivo. O jogo disputado contra uma seleção da National Soccer League juntou no New York City’s Polo Grounds mais de 46 mil espetadores, um exagero para a América de então, bem mais interessada em disputas de basebol.

Se houve um jogador do Hakoah que deixou a sua marca indelével nessa aventura americana, ele chamava-se Béla Guttmann e veio a ser, já nos anos de 1950 e 1960, treinador do FC Porto e do Benfica, conduzindo os encarnados a duas vitórias na Taça dos Campeões Europeus. Com o seu espírito de saltimbanco, Guttmann aceitou de bom grado o convite para ficar nos Estados Unidos e jogar noutro Hakoah, o Hakoah de Nova Iorque. Outros companheiros seus, receosos do clima de ódio que se propagava pela Europa como fogo em palha seca, também optaram por não regressar, formando o Brooklin Hakoah. De um dia para o outro os Hakoah foram surgindo por todo o planeta, e como prova que não havia latitudes para os seus fundadores, chegou a existir um Hakoah de Melbourne, na Austrália.

Ao orgulho judeu dos representantes dos diversos clubes com esse nome, um fenómeno técnico juntou-se para lhes dar um toque diferenciado. Os métodos de treino de Billy Hunter, que fora jogador do Bolton Wanderers, foram copiados e impostos nas restantes equipas judias. Ao contrário do pontapé para a frente, ou kick-and-rush, tão do gosto dos ingleses daquele tempo, Hunter preferia o chamado estilo escocês. Basicamente tratava-se de manter a bola junto ao chão e trocá-la rapidamente entre os jogadores sempre num movimento de progressão. Com isso provou que era possível vencer praticando um espetáculo que agradava particularmente ao público. Os judeus davam o seu forte contributo para o futebol do futuro. Mas, fermentando no ovo da serpente, o nazismo estava à porta, pronto a dizimar milhões e milhões deles. E da forma mais sinistra possível.

II Grande Guerra

À medida que os guetos iam sendo impostos nas cidades da Polónia, da Checoslováquia, da Hungria e dos países Bálticos, os clubes judeus foram sobrevivendo por entre a miséria e a repressão. A verdade é que o futebol tornara-se de tal forma uma fuga às agruras diárias que não parou de existir nos confinamentos impostos pelos nazis de Hitler, o canalha do bigodinho ridículo.

Mal amanhados, equipados como podiam, disputando partidas contra vizinhos igualmente perseguidos, alguns desses homens de profunda coragem ficaram para a história. Vários são os exemplos de clubes que furaram a proibição de ajuntamentos, impostas pelo invasor. O Neustadt Tavrig , de Vilnius, na Lituânia, o Kurenets, de Minsk, na Bielorrússia, o Grodzisk Mazovyet, de Varsóvia, na Polónia, o Novogrudok Maccabi, também da Bielorrússia, ou o Monastir, da Macedónia marcaram o futebol dos seus países com equipas totalmente formadas por judeus.

No caso deste último, idealizado por Leon Kahmi, em 1923, o nascimento acabou por ser uma fusão entre dois grupos sionistas que se dedicavam ao estudo das Escrituras e à aprendizagem do hebraico, o Sinai e o Esperenze. Mas na cidade de Monastir existiam mais quatro clubes judeus, o que possibilitava a existência de um campeonato: Hope, Maccabi, Olympic e Trumpeldor.

Na Alemanha do pré-guerra, os clubes judaicos eram muitos. Foram totalmente arrasados. Um deles foi o Hakoah de Berlim e outro, inevitamente, o Hakoah de Hamburgo. Muitos outros jazem no cemitério das equipas esquecidas: Schild Aachen, Hakoah Allenstein, Maccaabi Altona, Schild Bad Kreuznach, Maccabi Bielefeld… A lista tornar-se-ia entediante. Os homens que se dispunham a lutar entre si por uma bola de futebol foram conduzidos para a mais sórdida das mortes coletivas. Sinal de que o futebol sobrevive a tudo.