A Face Oculta da Justiça

Esta semana, ao ler uma notícia do Jornal de Notícias sobre o processo Face Oculta, processo onde fui o primeiro assistente, fiquei com a sensação de que sou militar, pois não percebi nada.

Acho que já contei a história uma vez, mas cada vez me lembro mais dela ao ler algumas notícias. Dizia-me um editor com quem trabalhei que eu tinha de escrever as notícias como se ‘fossem para militar entender’, diga-se sem qualquer sentido pejorativo a propósito dos militares. Esta semana, ao ler uma notícia do Jornal de Notícias sobre o processo Face Oculta, processo onde fui o primeiro assistente, fiquei com a sensação de que sou militar, pois não percebi nada. Deixando os trocadilhos para trás, vamos à notícia. O título é elucidativo: ‘Insolvência perdoa 9 milhões ao casal Godinho’.

Como estive, há uns bons anos, no Tribunal de Aveiro a ler o processo de trás para a frente, mergulhei logo na peça jornalística. Esquecendo o introito, onde se dizia que Manuel Godinho e a mulher iriam ser dispensados de pagar nove milhões de euros devido à situação de insolvência – vale a pena ler o despacho –, eis que chegamos à parte que daria para rir se não fosse para chorar. «Cumprindo as obrigações [migalhas que irão dar depois de descontado o dinheiro para o seu sustento], os devedores livram-se das dívidas não integralmente pagas no processo de insolvência, com exceção das dívidas à Segurança Social (mais de 41 milhões de euros). Isto quer dizer que deverão desaparecer quase nove milhões de euros de dívidas, sendo grande parte reclamada pela banca», escreveu o JN.

 

Continuo a transcrever a notícia porque revela bem o escândalo que é este país. «Em 2014, Godinho apanhou, no Face Oculta, 17 anos e meio de prisão, por 49 crimes de associação criminosa, corrupção, tráfico de influência, furto qualificado, burla, falsificação e perturbação de arrematação pública. A pena seria reduzida para 12 anos, após recursos e prescrições. O empresário de Ovar está em liberdade porque ainda aguarda decisão do Tribunal Constitucional sobre um recurso».

Não sei se leram bem, mas a sentença é de 2014! Recorde-se que Armando Vara está a cumprir prisão por causa dos célebres robalos, enquanto outros arguidos condenados aguardam, calculo, um exame médico para saber se poderão cumprir a pena ou não. Penso que Paulo_Penedos, ao contrário do pai, se entregou para cumprir a pena. Mas que raio de país é este em que um homem que é condenado a 17 anos de prisão continua em liberdade sete anos depois?

 

Sem querer ofender ninguém, isto cheira mal e é uma vergonha, e só indicia que a Justiça está doente. Se a Operação Marquês seguir o mesmo rumo, será que algum dos hipotéticos condenados irá cumprir pena de prisão? Só se forem buscá-los à campa. Quando terá o poder político coragem para mudar esta pouca-vergonha? Condenado em dois tribunais, quem recorrer deve cumprir pena de prisão até prova em contrário noutro juízo.

 

P.S. 1 – Repararam nos milhões envolvidos na história do célebre sucateiro e que um procurador-geral da República e um presidente do Supremo Tribunal de Justiça mandaram destruir as escutas que envolviam o primeiro-ministro de então? Para quando comunicados públicos da Justiça a explicar o que se passa em processos vergonhosos para o comum dos mortais?

P.S. 2 – O que dizer da vergonha sem limites das declarações de Tiago Barbosa Ribeiro, deputado do Partido Socialista, e do antigo árbitro Jorge Coroado a propósito dos supostos ‘roubos’ de que o FC Porto tem sido vítima nos últimos tempos? Veja-se o que disse a luminária que antigamente se vestia de negro nos estádios: «[O árbitro] Hélder Malheiro foi para a jarra depois do Bessa. Para este, o sítio adequado é a ETAR. De preferência, na foz de um rio». Ninguém pode mandar este antigo árbitro para um tribunal para responder por incitamento ao ódio? Ou será que só há uma figura que desperta esse sentimento em Portugal?

vitor.rainho@sol.pt