Portugal está a atravessar um momento muito difícil devido à pandemia. É já possível perceber o que falhou?
Para já, sabemos que falhámos e em várias dimensões. Temos uma das maiores taxas de mortalidade por covid-19, mas também um forte crescimento da mortalidade para além da que é atribuída diretamente ao vírus. Sabemos que a interrupção do ensino presencial e a falta de preparação do ensino à distância vai ter consequências gravosas para muitos jovens. E sabemos que somos um dos países mais afetados economicamente. Escrevi recentemente sobre a necessidade de fazermos um juízo profundo sobre as razões do nosso fracasso na gestão da pandemia. Não planeámos ou planeámos mal, mas é importante perceber porquê. No fundamental, penso que é reflexo da pouca qualidade das instituições e processos de decisão em que assentam as nossas políticas públicas, conjugada com uma gestão governativa em que os incentivos políticos de curto prazo predominam.
Escreveu, recentemente, que não soubemos usar a ciência. Teria sido possível com a ajuda da ciência controlar o crescimento do número de mortes e de infeções?
As autoridades políticas invocaram muito a ciência, mas sem a saberem incorporar nos seus processos de decisão. Os países com melhores práticas tinham, ou criaram, comissões científicas de acompanhamento. Nós organizamos umas conferências com cientistas. Não é essa a forma apropriada de usar a ciência. Esta situação exige um acompanhamento permanente por cientistas de diferentes disciplinas com base em informação comum e validada por todos e a partir da qual se consolidam e fazem recomendações científicas. Era isso que devíamos ter feito. Em vez disso tivemos uma cacofonia científica que o Governo podia usar para defender uma coisa e o seu contrário.
A pressão para avançarmos com um confinamento geral, nomeadamente o encerramento das escolas, a partir de certa altura, foi grande, mas também existiu, antes disso, uma grande pressão para aliviar as restrições por causa da economia. Como se lida com uma situação em que salvar vidas pode ter consequências nefastas na economia e na vida das pessoas?
Lá está, a forma de preservar racionalidade no processo de decisão num contexto em que essas pressões são naturais é criando instituições fortes que estejam insuladas dessa pressão e possam fazer recomendações cientificamente robustas mesmo quando não sejam as politicamente mais fáceis ou desejadas. Ao poder político compete depois fazer o equilíbrio com as pressões sociais e comunicar de forma clara e transparente aos cidadãos. Um dos maiores equívocos que o Governo permitiu que se gerasse foi a ideia de que tínhamos de optar entre o controlo da pandemia e a proteção da economia. É hoje claro que a melhor forma de proteger a economia é ter um controlo eficaz da pandemia. Os países que foram mais eficazes a controlar a pandemia são também aqueles que estão melhor economicamente.
Estamos preparados para enfrentar a crise económica e social que resulta das restrições impostas pela pandemia?
Temo que não.
Porquê?
Pelas mesmas razões. Fomos dos piores a controlar a pandemia. O atual Governo é de gestão política do curto prazo e as nossas instituições públicas têm insuficiente independência e qualificação para conseguirem contrariar essa captura da política pelo curto prazo. Basta ver o plano de recuperação e resiliência apresentado. Não tem uma estratégia nem verdadeiras reformas. O que faz é associar desejos, a grande maioria dos quais partilhados por todos nós, a verbas financeiras. Uma estratégia não é uma lista de desejos a que dedicamos investimentos. Sobre as alterações que são necessárias nas instituições e políticas públicas para que esses investimentos produzam resultados diferentes dos do passado há muito pouco no plano apresentado.
Tem receio que estes apoios sejam mal utilizados?
O meu receio é que usemos essas verbas para mitigar os custos económicos e sociais no curto prazo mas sem alterar as condições estruturais da nossa economia no médio e longo prazo que promovam um crescimento forte e sustentado.
Há o risco de se juntar à crise económica e social uma crise política?
O próprio medo de uma crise política, partilhado pelos principais atores políticos nacionais, é a principal garantia de que não teremos uma crise política. Por outro lado, de pouco nos serve esta estabilidade política em que temos vivido. É artificial e paralisante do país, preserva o status quo e não promove as reformas de que precisamos. Haverá um momento em que nos teremos de questionar até que ponto a obsessão com a estabilidade política é produtiva para o país. A estabilidade política não pode ser transformada num fim em si mesmo. A vantagem normalmente atribuída à estabilidade política é a autoridade e continuidade que fornece a um Governo para poder implementar reformas eficazes. A estabilidade que temos hoje não tem servido essa finalidade.
Se houver uma crise política a curto prazo o país já dispõe de uma alternativa consolidada ou corremos o risco de fazer eleições e ficar tudo na mesma?
A existência de uma alternativa forte, num contexto político crescentemente fragmentado, dependerá muito da capacidade de apresentar um projeto político mobilizador. Isto exige, no entanto, correr riscos políticos que poucos querem assumir num contexto político fragmentado em que a garantia do poder depende crescentemente de conseguir o apoio de coligações com interesses muito diferentes. Este é o dilema da política hoje, é mais fácil conseguir o poder numa lógica de coligação de interesses, mas de pouco serve ter o poder apenas para governar à vista, alimentando esses interesses.
Faz três anos que Rui Rio foi eleito para a liderança do PSD. Não apoiou, nas últimas eleições internas, nenhum candidato. O PSD está mais forte e mais preparado para construir uma alternativa do que há um ano?
Por um lado, temos de reconhecer o investimento que a atual liderança do PSD fez num processo sério de preparação de propostas políticas e de Governo através do CEN (Conselho Estratégico Nacional), coordenado pelo professor Joaquim Sarmento. Isso tem sido, injustamente na minha opinião, desvalorizado. É importante que os partidos façam este trabalho de base de preparação para governar. Por outro lado, o PSD tem tido fortes dificuldades em traduzir esse trabalho de base numa mensagem política diferenciadora face ao Governo e mobilizadora do país. Mas não ignoro as dificuldades de fazer oposição no contexto da pandemia.
Seria difícil para qualquer liderança?
Reconheço a dificuldade que isto implica para quem quer que lidere a oposição neste contexto, mas acho que mesmo assim, o PSD tem de procurar ter mais presença no espaço público e explicitar de forma mais clara as diferenças da sua proposta política para o país.
As sondagens continuam a apontar para uma distância significativa entre o Partido Socialista e o PSD. Surpreendeu-o que seja assim numa altura em que a pandemia se agravou e o Governo teve casos delicados como a questão do procurador europeu e a questão do SEF?
No meio de uma pandemia é normal existir uma certa resistência a mudar quem está no poder. A história da política ensina isso. No meio de uma crise exógena quem está no poder tende a ver o seu apoio popular reforçado, porque as pessoas necessitam de sentir que podem confiar nesse poder. Vemos isso agora, incluindo em países que tiveram uma péssima gestão da pandemia.
Esse sentimento pode alterar-se?
Normalmente, é quando a crise começa a desaparecer que os cidadãos têm maior capacidade de fazer um juízo mais distanciado sobre aqueles que os governaram durante a crise. E, nessa altura, irão recordar todos esses casos que são representativos de uma cultura política de captura do Estado e, através deste, de captura da própria economia. Essa, para mim, devia ser uma prioridade na alternativa que se tem de apresentar ao país. Não é apenas criticar isso, é apresentar propostas concretas de alteração dessa cultura política.
Quer dar alguns exemplos…
Por exemplo, reforçar a transparência, os mecanismos de responsabilização, a independência da máquina do Estado face aos partidos…
Recentemente voltou a falar-se no possível regresso de Passos Coelho. Encara estes apelos como uma possibilidade ou é desejável que apareçam novos protagonistas?
Neste momento, a atual liderança do PSD tem toda a legitimidade de prosseguir a sua estratégia e todos, concordando ou não com ela, devem respeitar essa legitimidade. O próprio Rui Rio já foi claro quando disse que se após as eleições autárquicas verificar que não tem condições de liderar o partido tirará essa conclusão. Só nesse contexto fará sentido reabrir uma discussão sobre a liderança do PSD seja com quem for.
Como analisa o momento que a direita está a viver com o aparecimento de novos partidos e o CDS, parceiro natural do PSD, com dificuldades de afirmação e dividido internamente?
Com preocupação. Para o PSD exercer o seu papel de alternativa política necessita de um ou mais parceiros à sua direita que sejam confiáveis e que, sendo mais ou menos liberais ou conservadores, partilhem alguns pressupostos fundamentais da democracia liberal e de uma economia aberta e europeia. O risco de substituição desta direita por uma direita que não partilha de alguns desses valores fundamentais tem de ser visto com preocupação pelo PSD. Por isso, acolho como positivo o facto de o PSD ter assumido uma política de coligação nas autárquicas que possa ajudar o CDS a preservar o seu papel no nosso sistema político. Acho que isso corresponde ao interesse do PSD e do país.
O Chega é um partido com o qual o PSD deve dialogar ou as características desse partido impedem qualquer tipo de aproximação?
Já exprimi publicamente a minha oposição a uma coligação eleitoral, governativa, ou meramente parlamentar, com o Chega. Não ignoro os argumentos dos que dizem quer que é a melhor forma de moderar um partido radical como o Chega quer que é a única forma de poder existir uma alternativa ao poder socialista e evitar uma mexicanização do regime.
Esses argumentos não o convencem, nomeadamente se essa for a única solução para o PSD voltar ao poder?
Não concordo com estes argumentos. Primeiro, acho que essa moderação dos partidos radicais, onde ocorreu, foi frequentemente associada a uma radicalização dos partidos moderados e temo isso. Segundo, acho que a simples admissão de uma coligação com o Chega se traduz numa profecia que se autoconcretiza, pois, ao fazê-lo, estamos a tornar útil e a justificar o voto no Chega. Terceiro, acho que coligações com partidos radicais apenas oferecem a tal estabilidade artificial, e bloqueadora de reformas, em que temos vivido no âmbito da coligação do PS com as forças radicais da esquerda. O país não pode ficar refém de um dilema entre aceitar uma mexicanização do regime, com o PS permanentemente no poder, ou uma alternância entre falsas maiorias capturadas por forças radicais. Acho que, uma vez que o PS enveredou por esse caminho, o PSD pode, pelo contrário, oferecer ao país uma alternativa moderada e genuinamente reformista.
Ficou surpreendido com o resultado de André Ventura nas presidenciais?
Infelizmente não. Sempre disse, ao contrário de muitos, que Portugal não era um oásis europeu no contexto do crescimento do populismo. As causas que promovem o populismo, nomeadamente uma insatisfação crescente com um sistema político que uma parte dos cidadãos perceciona como capturado por alguns interesses, também existem em Portugal. André Ventura mobilizou esse voto. Temos de combater essas causas para conseguir combater eficazmente o crescimento do Chega.
Os partidos tradicionais têm contribuído para o crescimento destes projetos populistas?
Afirmei, numa moção ao último Congresso do PSD, que ou os partidos tradicionais se reformam ou são colocados na reforma pelos portugueses. Isso exige reformas profundas nos partidos políticos, no sentido de os abrir a maior participação política e reforçar os seus mecanismos de transparência, ética e qualificação dos seus quadros e militantes. E temos também de saber traduzir isto numa reforma global da nossa cultura política. Temos um Estado e uma economia capturados e instituições fracas. Temos de começar por libertar o Estado capturado por partidos e interesse particulares e combater o capitalismo de compadrio em que vivemos. Devem ser as primeiras prioridades de qualquer projeto político para Portugal.
Marcelo Rebelo de Sousa foi reeleito com mais de 60% dos votos. Tem a expectativa de que o Presidente da República seja mais exigente neste segundo mandato como pediu Rui Rio na noite eleitoral?
Penso que será um pouco mais, mas não muito. Não é a sua natureza. A sua personalidade convive muito melhor com um clima de cooperação do que de conflito. Para além disso a fragmentação política levará a que procure sobretudo exercer um papel criador de pontes para assegurar a estabilidade política. Mas terá de ter consciência de que a estabilidade política a qualquer custo, nomeadamente com coligações meramente oportunísticas e artificiais, não oferecerá ao país a transformação económica e social que o próprio Presidente já reconheceu ser fundamental.
Num artigo de opinião escreveu que alguns problemas do país vão aprofundar-se devido à pandemia e a solução não pode ser encontrada ‘apenas através dos afetos e da promoção da autoestima nacional e governativa’. Posso deduzir que seria desejável um Presidente da República mais interventivo?
Como disse, o Presidente tem dado prioridade absoluta à estabilidade política mesmo que isso tenha implicado agravar a cultura política que ele próprio critica nos seus discursos, permitindo ao Governo reduzir os instrumentos de escrutínio independente da sua ação e aumentar o seu controle sobre a máquina do Estado. Espero que o Presidente seja muito mais exigente neste ponto.
Rui Rio defendeu o adiamento das autárquicas devido à pandemia. Faz sentido equacionar o adiamento?
É mero bom senso prepararmo-nos para essa possibilidade, sem o decidir já, caso o plano de vacinação se atrase ainda mais. Não se trata apenas, nem fundamentalmente, de organizar o ato eleitoral em si. Isso será possível como vimos. Mas não podemos ignorar que a democracia exige a possibilidade para os diferentes competidores eleitorais de exporem as suas diferenças, em particular para não favorecer os incumbentes. Se o processo de vacinação não nos nos permitir atingir a imunidade de grupo necessária a uma campanha de proximidade nas autárquicas isso coloca em causa a democraticidade do processo. Nas presidenciais isso foi, em larga medida, substituído pelos debates televisivos e é óbvio que isso não é possível nas autárquicas com milhares de candidatos. Se necessitarmos de mais um ou dois meses para que o processo de vacinação nos permite uma campanha com mais normalidade não me choca adiar por esse período de tempo. É aquilo que a democracia nos exige.
O presidente da Câmara de Cascais, Carlos Carreiras, defendeu, num artigo de opinião no jornal i, que Rui Rio quer adiar as eleições porque ‘o processo autárquico no PSD é uma inexistência’. Sente que o PSD revela alguma falta de ambição?
Não quero contribuir para dificultar a vida ao meu partido tão próximo das autárquicas discutindo a eficácia ou não de uma estratégia que foi legitimada. Rui Rio foi legitimado em congresso para seguir a sua estratégia, incluindo o ritmo que entende adequado. Naturalmente, será avaliado após as eleições pelo sucesso ou insucesso dessa estratégia.
Está mesmo fora de questão candidatar-se à Câmara de Lisboa?
Está fora de questão. Nem fui convidado, nem fui sondado, nem, por diferentes razões pessoais e profissionais, essa hipótese se poderia colocar neste momento.