Dalila Carmo: “Somos um país pobre com uma fachada dourada”

A atriz de 46 anos, nascida em Vila Nova de Gaia, é conhecida no meio pela sua excentricidade. No entanto, prefere que esse lado não passe para o exterior. Crítica da falta de investimento na Cultura, não desiste perante a adversidade, defendendo a máxima de que devemos saber ver nas crises as oportunidades.

 

Está a preparar uma peça de teatro cuja data de estreia ficou suspensa por causa da pandemia. É bom ter mais tempo para fazer a preparação ou frustrante ter de esperar para ver o resultado?

Nem uma coisa nem outra. O tempo em que se para não há grande preparação. Nós podemos trabalhar no texto em casa, mas uns sem os outros não conseguimos progredir, porque isto é um trabalho de equipa. Nós chegamos às cenas uns com os outros, nos ensaios, a fazer, a repetir vezes sem conta e à procura. Isolados em casa não dá, não é coisa que se possa fazer por Zoom, nós não temos teletrabalho. Os ensaios são físicos, os ensaios são acerca de proximidade e não de distanciamento. Não é possível ensaiarmos em casa uns com os outros, isso não acontece. Porque sem corpo e sem aproximação a cena não acontece. Para outros projetos pensados para esse formato, talvez. Aliás, eu vi um projeto no ano passado em Inglaterra que foi a primeira peça pensada para ser em Zoom. Cada ator dizia um texto a partir de sua casa, mas é outro tipo de projeto, não é este. Este projeto exige que as pessoas estejam em cena umas com as outras e só nesse momento é que as cenas acontecem. E, portanto, podemos decorar o texto e chegar aos ensaios com tudo sabido, mas até vamos estar a viciar algumas coisas para as quais ainda não temos resposta. É bom chegarmos aos ensaios e descobrirmos as coisas nos ensaios sem irmos com uma ideia preconcebida, porque, quando chegamos lá, essa ideia acaba por diluir-se e não faz qualquer sentido porque é pensada unilateralmente. Em relação a sermos penalizados, obviamente que cria uma ansiedade, nós ficamos expectantes. Estreamos um mês depois, dois meses… é muito difícil, independentemente de ser no trabalho ou na vida, lidar com o curto prazo. Nós amanhã íamos ter uma filmagem para a peça, que tem imagens filmadas no seu decorrer. O elenco foi-se testar e uma pessoa deu inconclusiva. Isso faz com que eu, neste momento, não saiba se amanhã vou trabalhar ou não. Estamos à espera do segundo resultado dessa pessoa. É uma chatice. Nós deixamos de ter vida no médio e no longo prazo, como é um pouco inevitável, mas quando nós não sabemos o que vamos fazer hoje ao final do dia, a situação começa a tornar-se mais grave e deixa-nos a todos com uma grande incerteza. Não acredito que essa incerteza prejudique o espetáculo, muito pelo contrário, se o espetáculo tiver alguma coisa a levar com os efeitos colaterais desta pandemia será uma vontade ainda mais desesperada de fazer bem as coisas, mas até isso, só quando lá estivermos é que vamos ter a oportunidade de exercitar. Em casa vamos exercitando, estudando, colecionando referências, mas não acredito que haja um crescimento individual enquanto estamos sozinhos em casa à espera.

Já fez teatro, cinema e telenovelas. O que lhe dá mais prazer?

Depende. Não se pode falar em formatos sem se falar em conteúdos. Há muita gente que diz ‘É no palco que me sinto bem’, mas no palco também se fazem projetos que não nos dão prazer nenhum. Tudo depende do texto, de quem nos encena, de como corre esse processo, o trabalho, como foi o resultado, do quão felizes nós fomos durante… E eu acho que eu sou feliz a fazer tudo desde que seja um bom projeto com um bom conteúdo. Acho que prefiro falar assim do que falar de um formato em específico.

Já aceitou algum projeto para o qual tinha expectativas altas e depois acabou por ficar desiludida?

Já, imensos, mas não vou falar sobre isso.

Disse numa entrevista que tenta encontrar as personagens dentro de si de modo a não representar. Consegue sempre fazer isso?

Não. A minha questão em relação a isso não é tentar não representar, eu não gosto é de ver a representação, não gosto de a sentir. Eu acredito na pluralidade. Nós somos muita coisa. Nós somos vermelhos, amarelos, azuis, verdes, castanhos e brancos. Nós temos as cores todas, e dentro dessa pluralidade podemos explorar algumas características que servem aquela personagem. Acima de tudo nós temos de servir aquela personagem, não é aquela personagem que nos tem de servir a nós. Cada ator tem um cardápio de possibilidades à sua escolha. Pode trabalhar a partir das suas memórias sensoriais e afetivas, pode usar a sua imaginação, pode usar a sua observação. Tudo isto são ferramentas e nenhuma é mais importante do que a outra, todas elas são necessárias. E depois isto é um bocadinho trabalho de cozinha: é como perguntar a um cozinheiro como é que ele fez aquele bolo, é um processo íntimo de construção. Para cada personagem eu faço um TPC diferente. É consoante os dados que eu vou tendo da personagem. Obviamente que para teatro e para cinema o tronco está completo, nós sabemos o percurso da personagem e por isso é mais fácil, dentro daquelas características, nós desenvolvermos um comportamento e um perfil físico e psicológico. Quando estamos em televisão nós não sabemos o rumo das personagens, vão-nos dando os guiões à medida que nós vamos fazendo. Nesse caso tens de deixar a personagem mais aberta de forma a que, quando receberes informação contraditória, poderes ser capaz de assimilar e seres coerente, isso é o mais difícil. Nessas circunstâncias o trabalho de construção da personagem é um work in progress. Eu costumo dizer que durante um mês ou dois ainda não sei quem é aquela personagem e só ao terceiro mês é que começo a saber. Ao princípio estou só a tatear. Acima de tudo eu acredito na pluralidade do ator e que todas as ferramentas são válidas desde que o resultado seja válido também. Tudo é essencial e há muitos caminhos possíveis. É o conjunto da imaginação, observação e o nosso próprio cardápio de emoções e de vivencias porque nos todos já passámos por muitas situações paradoxais que são matéria prima.

Esse trabalho de construção da personagem nas telenovelas, fá-lo ao assistir ao projeto?

Sim, sempre. Eu gosto de acompanhar o que faço. Há pessoas que dizem que não gostam de se ver, mas eu não me vejo, quando me vejo já está tudo a correr mal. Eu gosto de acompanhar o trabalho, quanto mais não seja, para ganhar distanciamento e começar a vê-lo sem me ver. Quando eu me distancio de mim é quando eu consigo realmente ter algum pensamento crítico em relação ao meu trabalho e corrigir-me. E corrijo-me bastante nessa análise. Há realmente falhas que posso encontrar numa determinada cena, fico com esse alerta e tento evitar que isso volte a acontecer e sou a maior crítica de mim mesma. Há todo esse trabalho desde limpeza de maneirismo a encontrar um corpo e uma voz, e esse trabalho é feito não só durante, mas também a ver.

É preciso ter talento para se ter sucesso na representação ou o trabalho e o treino são mais importantes?

O trabalho e o treino são mais importantes, o talento também é importante e o sucesso não tem a ver nem com uma coisa nem com outra. O sucesso é uma convergência de acasos felizes ou infelizes. Se eu precisar de explicar que o sucesso é uma coisa que não depende só do trabalho e do esforço, alguma coisa aqui está a correr mal. O sucesso depende do número de seguidores nas redes sociais, depende da quantidade de disparates que possamos dizer e pelas piores razões tornamo-nos protagonistas de uma situação mas são as razões erradas na minha ótica e, portanto, o sucesso hoje em dia tem a ver com popularidade e a popularidade não tem nada a ver nem com talento nem com trabalho e dedicação, muito pelo contrário. Sucesso e popularidade cada vez mais vão na direção de atalhos, de short cuts. Através de atalhos podemos chegar a níveis altíssimos de um determinado tipo de sucesso, que não é o sucesso de que eu ande à procura. Com esse sucesso eu não me identifico particularmente mas é uma forma de sucesso porque as pessoas são reconhecidas e a partir do momento em que são reconhecidas não há necessidade de se aprofundar esta ou aquela valência, porque todas são legitimas para atingir aquele objetivo que é a popularidade, o reconhecimento. Não está de todo relacionado com talento e dedicação e trabalho. Está cada vez mais relacionado com preguiça, desonestidade e outras coisas que não vou dizer.

E para que o trabalho fique bem feito, o que é mais importante?

Eu quero evitar aquela frase cliché que é 5% de talento e 95% de suor, mas a verdade é que existe muita gente que cresce imenso todos os dias por ser muito trabalhador e eu não vou subestimar isso. Mas eu também acredito em dons. Acredito que há pessoas que nascem com dons, seja para a dança, para a música, para as artes visuais ou para a representação. Tem de existir uma urgência para comunicação, temos de ter alguma coisa para dizer. E essa urgência pode vir associada a um dom ou não, pode existir essa urgência e ser uma urgência desarticulada de qualquer maneira, mas eu diria que é a combinação dos dois. O talento é importante, apesar de não gostar de dizer essa palavra e preferir dizer dom, esse dom é importante. Depois disso, sacrifício e trabalho sempre. Se houver só talento a pessoa estagna e fica pelo segundo ou terceiro projeto que faz porque não desenvolve. O trabalho precisa de estar constantemente a ser reciclado, nós nunca podemos baixar os braços, temos de estar constantemente a ver, a ouvir, a ler, a aprender, a procurar e a alimentar a curiosidade. Sem essa curiosidade o talento não chego. Por outro lado, uma pessoa pode trabalhar imenso, mas até para encontrar o caminho certo nessa procura e dedicação é necessário encontrar um talento. O processo de construção de uma personagem é coisa subjetiva, não é uma ciência exata que nós possamos ter uma disciplina com a fórmula correta. Não existe uma fórmula, cada pessoa encontra o seu caminho. Para encontrares o teu caminho tens de estar desperto para ele e para haver essa pré-disposição, essa sensibilidade de perceber que aquelas ferramentas funcionam para ti tens de ter a conjugação de tudo. É a junção de todos esses fatores que faz com que as pessoas, pela vida fora, se sintam mais ou menos confortáveis, mais ou menos sólidas nas escolhas que fizeram. Depois também há muita gente que deixa de se questionar. Há o perigo de, como nós somos um meio pequeno, corremos o risco de deixar de nos questionarmos permanente. É fundamental ter a consciência de que podemos estagnar a qualquer momento e que é preciso olear a máquina e não esmorecer. Podemos ser muito bons hoje e amanhã sermos terríveis, não é um posto adquirido.

A Dalila já foi por várias vezes a protagonista, mas também a antagonista. O que gosta mais de fazer?

Gosto de fazer as duas, depende dos projetos. Prefiro fazer de protagonista em cinemas e em mini-séries porque tenho mais tempo, as protagonistas em novela dão-me cabo de uns quantos neurónios. Mas gosto muito de as fazer também e tive muito prazer em algumas delas mas tenho grandes ressacas.

Perdeu o contrato de exclusividade há pouco tempo, mas ao contrário do que me parece acontecer com a maioria dos atores, disse que se sentia livre. Não sentiu uma certa insegurança ou incerteza em relação ao futuro?

Eu a insegurança e a incerteza sinto-as sempre, com ou sem contrato. É óbvio que não termos uma retaguarda financeira também nos retira liberdades porque nós confiamos mais no destino quando essa retaguarda financeira existe. Por outro lado, também nos dá uma obrigatoriedade de corresponder a determinadas expectativas e essa obrigação retira-nos liberdade criativa e liberdade pessoal também. Eu tentei fazer do problema uma oportunidade. E realmente eu tenho muitas coisas para contar e tenho projetos meus que estão há anos a ser marinados e nunca saem deste banho-maria. Eu aproveitei para começar a traçar objetivos, a por pedra a pedra e estou também a trabalhar noutras coisas porque tenho essa disponibilidade. São projetos nos quais eu estou não só como atriz mas onde eu estou a trabalhar de raiz, projetos e ideias minhas onde eu tenho oportunidade de fazer coisas em parceria e em colaboração onde não estou única e exclusivamente reduzida – não no mau sentido – a ser atriz. Eu adoro ser só atriz mas temos um meio demasiado pequeno onde um ator é 80% das vezes uma marioneta que é suposto ter qualquer tipo de opinião sobre aquilo que está a fazer, isso é mau. Essa é uma das principais razões para desistirmos desse aperfeiçoamento, porque nos cansamos de andar permanentemente em conflito. E, como eu não me quero cansar, acredito que consegui fazer desta situação uma oportunidade em vez de um problema. Não quer dizer que eu tenha ficado feliz pela situação, mas foi mais pela forma como ela aconteceu do que pela situação em si. Houve realmente um elo afetivo que se partiu, porque aquele canal não foi correto comigo e eu acho que não merecia. Para todos os efeitos, estive 21 anos lá e nós gostamos de ser acarinhados, gostamos que reconheçam o nosso trabalho, gostamos de acreditar que precisam e que gostam de nós. Quando o elo afetivo se perde, isso sim é irrecuperável. O dinheiro, se não conseguimos de uma maneira, tentamos de outra. Se não ganhamos mais, ganhamos menos, se não posso viajar para o Japão vou para um sítio mais económico. Nós arranjamos alternativas. Neste momento pus o foco naquilo que eu, do ponto de vista artístico, quero desenvolver, nos projetos em que quero estar presente e nas pessoas com quem eu quero trabalhar. E quero ter a liberdade de dizer ‘eu também escolho, não sou só eu que sou escolhida’, eu quero ter espaço para dizer ‘eu posso escolher, não são só vocês que me escolhem’. Eu também mereço a oportunidade de dizer o que me apetece e não me apetece e eu achava que tinha mas se calhar afinal não era bem assim. Para mim, o mais grave dessa situação foi eu ter estado 21 anos ligada a um lugar – de onde saí durante quatro anos porque foi a altura em que vivi em Madrid e nessa altura foi uma coisa discutida e foi um afastamento saudável – e ter sentido que foi feio, tal como foi feio com outras pessoas antes de mim. Eu tenho ficado calada porque para já, não vale a pena lavar roupa suja em público apesar de eu agora estar a dar alguns sinais de que a coisa não foi bonita e é um assunto que tem de morrer. Eu nunca permiti que nada fosse mais protagonista a meu respeito do que o meu trabalho. Para mim, o meu trabalho tem de ser o protagonista absoluto da minha pessoa. Eu não quero que comentem o que eu visto ou que eu disse, apesar de saber que estarei sempre nessa montra, mas não é essa a minha prioridade. Gosto que as pessoas falem das minhas personagens, gosto que falem do meu trabalho, não tenho qualquer falsa modéstia em relação a isso. Mas gosto de manter um perfil discreto na minha vida e mesmo dentro do trabalho. A minha excentricidade é muito conhecida dentro do meio, mas cá fora menos e ainda bem. O que eu estou agora a fazer, já era minha intenção fazê-lo antes e isso tudo foi acordado. Mas depois estourou o covid-19 e acabou a comunicação e para mim, quando acaba a comunicação, acaba tudo. O maior conforto que eu tenho é que eu sou extremamente leal, eticamente não têm nada a dizer, não fui em momento algum desleal e agora estou muito grata por toda a liberdade que estou a ter e por todas as possibilidades que tenho no futuro. Outra coisa muito importante é que eu não estou num leilão. O meu objetivo como atriz não é ver quem dá mais por mim, é decidir em função dos projetos. Eu não quero ser leiloada, quero ter a oportunidade, a liberdade e o espaço de decidir, em diálogo com um interlocutor, aquilo que quero fazer. Agora terão que me namorar um bocadinho porque acho que mereço o respeito das pessoas que, na altura, não o tiveram.

O que pode revelar sobre esta peça que está agora a preparar?

Isto também foi uma ideia minha que eu apresentei ao Martim [Pedroso] há alguns anos. O Opening Night – Noite de Estreia é um dos filmes da minha vida. Foi um filme que eu vi nos anos 90, devia ter entre os 19 anos e os 21, no cinema King. Eu sou uma grande fã do cinema independente americano e vi os filmes todos do John Cassavetes e há dois em particular que são os meus escolhidos: a Noite de Estreia e Uma mulher sob influência. E a Noite de Estreia é um filme que só pode fazer sentido a uma mulher perto dos cinquenta anos. Podes gostar muito desse filme com 20 anos mas não vai fazer sentido para ti até chegares aos 50. E eu lembro-me de na altura ficar tão fascinada com o filme que pensei que o queria ver pelo menos uma vez em cada década, para perceber que notas é que ele toca em mim ao longo deste tempo. Ele nunca foi perdendo a atualidade, foi um filme que, em cada década que eu o vi – e só passaram duas décadas e eu já o vi umas seis vezes – conciliou sempre várias camadas e é giro vê-las a aparecer a cada vez que o vemos. Eu vi o filme aos vinte anos e pensei ‘que giro’, é fascinante porque é um filme sobre o teatro. Nós vamos fazer uma peça sobre um filme que é sobre o teatro, é metateatro. E cada vez me fui apaixonando mais e então há dois ou três anos disse ao Martim Pedroso, com quem sou muito feliz a trabalhar, que gostava de fazer este projeto e ele diz ‘Ai é? Deixa-me olhar para o assunto’ e ficou logo muito entusiasmado. Eu com o Martim tenho uma relação de extrema liberdade e se ele me dissesse ‘Nem pensar’ seriamos amigos na mesma, não existe qualquer obrigação. Isso é uma das coisas que a confiança no trabalho permite, ele poderia perfeitamente mandar-me dar uma volta que se calhar eu até pensaria em ser eu própria a encenar a peça. Sinto que cheguei aquele momento em que eu conheço realmente a Myrtle (personagem principal do projeto) e portanto a Myrtle tronou-se a personagem que mais faz mais sentido no imediato fazer e é uma realização absoluta, independentemente do risco que seja pegar num texto que foi escrito para cinema e trazê-lo para o teatro. Isto não é uma peça com um texto teatral logo à partida, é uma aventura sempre. Nós estamos a levar um filme para palco e é uma história extraordinária sobre uma atriz que quer continuar a ser atriz e que acha que o tempo dela ainda não acabou.

Qual o campo em que a pandemia a está a afetar mais: a nível pessoal ou profissional?

Acho que tudo levou por tabela. As coisas estão relacionadas, nós contaminamos os vários departamentos com as coisas. Afeta tanto negativa como positivamente. Quando eu disse, relativamente à finalização do contrato, que fiz do problema uma oportunidade, é fazer isso em contínuo. Eu perdi uma avó que era um dos dois pilares da minha vida e isso é irreversível. Ela não morreu de covid-19, mas o vírus tornou difícil estar ao pé dela. Estive dois meses no Porto, mas não podia estar com ela o dia todo e não podia dormir com ela. Não sendo uma consequência de covid-19 acabou por ser uma consequência de covid-19 na mesma. Esta distância, não podermos estar perto das pessoas é terrível. Eu também acho que, de certa forma, há uma certa desistência por parte das pessoas mais velhas. Por isso acredito que a pandemia afeta sobretudo o lado pessoal. Claro que também afeta o profissional, vai haver imensa gente a abrir falência, tenho muitos colegas a passar dificuldades sérias, mas as coisas contaminam-se: se o profissional descamba afeta o pessoal e se o pessoal descamba afeta o profissional, é uma bola de neve.  Escolher uma em detrimento da outra é injusto porque isto está a ser uma coisa muito complicada para toda a gente e que eu penso que é transversal aos dois campos.

Em 2019 já tinha estado em mais de setenta países. Agora, dois anos depois, quantos acrescentou a esta lista?

Nenhum, mas abri mais espaço cá dentro.

Sente que esse desejo de viajar pode estar de algum modo associado a uma redescoberta da sua identidade depois de fazer personagens tão intensas?

Eu tenho sempre vontade de fugir. Pode ser depois de fazer uma personagem porque estou muito cansada, pode ser antes de fazer uma personagem porque preciso de ir apanhar ar. Faz-me bem estar em movimento e eu gosto disso. Gosto de chegar a uma rua pela primeira vez, conhecer uma cidade nova, uma montanha nova. Quando viajo não penso em férias, para mim será sempre um transito de uma coisa para outra, mas nunca na perspetiva de ir descansar. Em viagens em não descanso, só na medida em que sou eu que marco as minhas horas e leio o que quero. Mas acima de tudo para mim são momentos de aprendizagem e observação. Para mim, viajar é uma certa escola de vida, infiltrar-me num mundo, entrar em lugares desconhecidos, obviamente com as devidas ressalvas. Quando uma mulher viaja sozinha, que é uma coisa que eu faço muitas vezes, é preciso planear e organizar as coisas. Por muito que eu goste de sair sem destino, tenho sempre de ter um esboço de um itinerário. Mas também é uma escola, faz parte do processo. A quantidade de novas personagens e novos caminhos que eu encontro nas viagens é muito inspirador, não é tempo morto. Eu posso passar dois ou três dias numa praia de papo para o ar, a ler e a dar mergulhos. Mas ao fim de 48 horas já estou pronta para fechar a mala e ir para outro lado qualquer. Eu gosto da sensação de estar na estrada.

A pandemia cortou-lhe essa hipótese. Conseguiu arranjar uma maneira de substituir esta necessidade?

Lendo, vendo filmes, séries. Não sou muito das séries, não cresci com a Netflix, portanto entre a HBO e a Netflix, sou capaz de ter visto três nos últimos meses. Vou fazendo um zapping por coisas variadas e neste momento estou a fazer um estudo histórico de dois projetos em que estou a trabalhar e, portanto, acabo por nutrir o meu cérebro. Tenho andado a viajar no tempo, não fui a países novos, mas fui a séculos novos.

Como vê a maneira como a cultura foi tratada agora durante a pandemia?

De uma forma muito cobarde. Mas eu também acho que com tudo o que está a acontecer tem de existir um plano B. Eu acredito na articulação do Estado com o privado porque vejo milhares de milhões de euros a serem investidos em Portugal em negócios imobiliários, por exemplo (e nem estou só a falar dos vistos gold), e eu pergunto para onde vai esse dinheiro e por que razão estas pessoas não podem ser taxadas. Há pessoas que têm medo que o Estado se desresponsabilizasse a partir do momento em que entrasse na cultura dinheiro privado, mas eu acredito na articulação entre ambos e acho que, nestas alturas, é preciso que os nossos políticos investiguem modelos de sucesso noutros países. Este é modelo de sucesso de investimento cultural e não percebo por que ninguém faz essa pesquisa. Está tudo pobre e eu recebo diariamente e-mails de agências imobiliárias a dizer que entraram não sei quantos milhões de euros e o Cais do Sodré agora vai fechar porque uma imobiliária vai investir outros tantos milhões… para onde é que esse dinheiro vai? Por que é que essas pessoas não podem ser taxadas? Em qualquer capital civilizada da Europa existem mecenas. Mecenato esse que aqui não é fomentado de maneira nenhuma, através de benefícios fiscais. E já nem falo do prestígio que os estrangeiros consideram ser um mecenas, isso aqui não existe porque as pessoas estão-se nas tintas. A verdade é que nós somos um país pobre com uma fachada dourada. Eu não entendo por que  estendemos passadeiras vermelhas a pessoas que chegam aqui e vivem de graça, não percebo por que matamos ucranianos na chegada ao aeroporto, porque não é para isso que eu desconto, eu desconto para um Estado social de direito. E, portanto, nesse sentido não só a ministra da Cultura como todo o Governo, acho que se portaram bastante mal porque obviamente a pandemia foi a estrela principal de 2020 com tudo o que correu mal também e eu pergunto-me: ‘Se não conseguem arranjar soluções por que  não procuram alternativas?’. Nesse sentido, acho que é um departamento cobarde e preguiçoso.

Do que tem mais saudades da vida pré-covid?

Tenho saudades de agir perante aquele impulso de beijar as pessoas, de cumprimentar. Tenho medo que mesmo quando estiver toda a gente vacinada as pessoas não recuperem desta paranoia e continuem afastadas e a manter-se distantes.

Com tantos anos de carreira, que papel lhe falta fazer?

Tantos, faltam-me fazer mil e uma coisas.