Sofia Escobar. “Na escola nunca fui a estrela, era o bicho anti-social”

As bonecas do seu quarto, na Rua Paio Galvão, em Guimarães, foram o seu primeiro público. A timidez não permitia espetáculos maiores. O teatro e as aulas de canto surgiram como uma terapia. E voou para Londres: com o sonho na bagagem e a consciência dos sacrifícios dos pais. Atualmente em Madrid, com o marido…

 

Aproveitando estarmos na época de carnaval, pergunto-lhe se é uma época de que gosta e se entra no espírito sobretudo por ter um filho pequeno…

Acho que desde que sou mãe as festividades do carnaval ganharam outra dimensão e todos nós nos divertimos muito com isso cá em casa. É verdade que este ano as coisas estão diferentes, embora em Espanha, neste momento, esteja tudo melhor do que em Portugal. Nós aqui não estamos em confinamento total, o meu filho vai à escola, podemos sair, com os devidos cuidados e todas as precauções possíveis para que não haja problemas, mas sim, ele mascarou-se. Tentamos continuar a viver, a divertirmo-nos. Para nós é importante que o nosso filho não cresça num ambiente de medo, não quero que fique com sequelas emocionais de tudo isto que está a acontecer agora e tentamos fazê-lo ver que é apenas uma fase passageira, embora já esteja a demorar demasiado tempo. Há-de passar, temos de ter confiança e ir tentado viver com a melhor atitude possível. Por isso, apesar de o carnaval estar a ser diferente, ainda conseguimos fazer coisas engraçadas cá em casa.

Em criança os seus disfarces já eram relacionados com as artes ou esse gosto surgiu mais tarde?

O gosto sempre esteve presente e, na realidade, o carnaval era mais uma desculpa para vestir algum tipo de personagem. As crianças adoram mascarar-se, mas no meu caso havia esse ponto acrescido de a fantasia transformar-se numa personagem e, por isso, o carnaval era sempre uma época especial. É bonito agora com o meu filho voltar a reviver essas coisas e ver também nele essa veia artística.

Já nota esse lado artístico?

Já, já está lá. Filho de peixe sabe nadar [risos]. Vive num ambiente artístico, visita sets de gravações, salas de concertos, vai ao backstage, dorme nos camarins, tem uma vida que para uma criança da idade dele [faz 7 anos em março] não é assim tão normal.

Por falar em infância, já deixou Guimarães há mais de 15 anos. Que recordações guarda desse tempo?

Apesar de ter deixado Guimarães há cerca de 15 anos, é sempre parte de mim. É a minha cidade, é onde está a minha família e muitos dos meus grandes amigos. A ligação não se perde nunca, as raízes não se perdem. Eu visito Guimarães sempre que posso. Agora, obviamente, não posso, mas vou lá regularmente para estar com a minha família e com os meus amigos. Às vezes até em trabalho, felizmente. As recordações que tenho de Guimarães na minha infância são muito boas, muito bonitas. Eu cresci num ambiente com muito amor e Guimarães é uma cidade pequena, onde as pessoas acabam por se conhecer umas às outras e ainda hoje sou muito acarinhada pelas pessoas sempre que lá vou, até porque muitas viram-me crescer. Eu vivi mesmo no centro da cidade, na rua Paio Galvão, e muitos dos pequenos comércios ainda continuam lá, e espero que continuem depois disto tudo. Por ser pequena há esse contacto um bocado mais da comunidade que não senti noutros sítios onde vivi, como Londres e mesmo aqui [Madrid]. Há uma distância maior. Cresci num ambiente em que os vizinhos olhavam pelos filhos uns dos outros, as crianças iam brincar para a rua e havia sempre alguém de olho. Tenho pena pelo meu filho, sinto que não tem isso, pelo menos dessa forma. Eu tinha uma liberdade que ele não tem, até porque vivemos numa época e num sítio diferentes, enfim, com mais perigos.

É a Sofia que se apercebe do gosto pela música ou foram os pais que a incentivaram? Consegue identificar este momento ou foi um processo natural?

Foi um processo, sim. Foi engraçado porque eu era uma criança muito tímida e muito fechada. Custava-me quase a falar com as pessoas e foi por isso que o meu pai, na altura, decidiu pôr-me num grupo de teatro amador, para tentar que eu me libertasse um bocadinho e eu apaixonei-me completamente. Entrei para o grupo de teatro com 12 anos, no Círculo Arte e Recreio (CAR) em Guimarães e, a partir daí, foi uma história de amor. Comecei pelo teatro, integrei uma companhia que ainda existe em Guimarães, chamada Teatro Oficina, no Palácio Vila Flor, que estava dividido em duas partes: metade era a companhia de teatro oficina e a outra metade era a escola de música. Quando ia para os ensaios e comecei a ouvir as aulas de canto… aquilo chamava-me de uma forma… Lá ia eu espreitar o outro lado do palácio e acabei por querer experimentar as aulas de canto.

Nessa altura já era a estrela dos teatrinhos da escola ou a timidez não permitia?

Eu acho que nunca fui a estrela dos teatrinhos da escola, porque era tão tímida e sofria muito de bullying, também por ser mais sensível e mais fechada. Na altura nem sequer se falava de bullying, era um conceito que não existia, dizia-se ‘é normal, os miúdos são assim’ e sofri mesmo muito. Só quando entrei para a zona mais artística na companhia é que comecei a perceber que não era a única e a sentir-me um bocadinho mais em casa. A minha autoestima também começou a subir, mas na escola nunca fui a estrela de nada [risos]. Era sempre o bicho estranho.

Dedicava-se mais aos estudos?

Eu era muito anti-social, fugia de qualquer contacto. A partir dos 16 anos, já tarde, é que comecei a criar um grupinho de amigos mais próximos, mas até aí fugia a sete pés das pessoas.

A sua irmã mais velha teve um papel importante nessa fase? Acabava por ser o seu porto seguro quando chegava a casa?

Muito, muito, importante. A minha irmã mais velha foi quase uma segunda mãe. Ela é mais velha do que eu 9 anos e sempre foi uma pessoa que admirei muito, queria ser igual a ela e fazer tudo o que ela fazia. Era uma admiração mesmo muito profunda e ainda é. Nós somos as melhores amigas, a minha irmã é das pessoas mais importantes na minha vida. Nessas fases menos boas ela esteve sempre lá a dar um apoio incondicional. Há fases na adolescência em que as pessoas se sentem fora do sítio e sentimos que não pertencemos a nada ou não sabemos onde estamos. Tinha muitos conflitos internos que, graças a Deus, foram-se resolvendo à medida que fui crescendo.

Referiu há pouco o papel fundamental que o seu pai teve na sua introdução no meio artístico, quando encontrou a opção de experimentar o teatro. Pode dizer-se que é o principal responsável pelo seu sucesso? A Sofia nunca teria ido para o teatro de forma autónoma?

Nem pensar. Aliás, na altura, aquilo causou-me um pânico tremendo. Uma pessoa que é tímida ter de ir para o meio de pessoas que fazem exercícios físicos, tudo ao molho, era preciso falar, decorar textos, improvisar e aquilo para mim era um pânico, mas que passou depois de dois dias [risos]. Sem dúvida nenhuma que essa decisão do meu pai… Ter essa abertura de pensar um bocadinho fora da caixa. Podia ter tomado a decisão, por exemplo, de levar-me a fazer terapia ou outra coisa qualquer.

O teatro foi a melhor terapia?

Sem dúvida nenhuma. Uma terapia que mudou a minha vida e que me fez perceber aquilo que queria fazer. Não há coincidências e tive a sorte de ter uma base de suporte muito forte em casa, de pessoas que acreditaram em mim e que apostaram tudo. Mais tarde, quando quis ir estudar para fora, não tive barreiras, quer dizer, tive, mas não da minha família. Tive muitas pessoas a dizerem-me que estava maluca e a perguntarem de que é que iria viver e essas coisas todas que as pessoas dizem quando alguém quer seguir artes ou alguma profissão ligada à cultura. Hoje cada vez acontece menos, e ainda bem.

Muitas vezes até são os próprios pais que colocam esse tipo de barreiras, mas no seu caso foi o oposto. Sempre acreditaram que aquele espetáculo que fazia para as bonecas poderia tornar-se em algo grandioso? Que poderia vir a pisar grandes palcos e que as bonecas iriam, por assim dizer, ganhar vida e tornar-se num grande público?

[risos]. Exato, hoje que sou mãe também percebo essa preocupação dos pais de quererem que os filhos tenham um futuro que seja seguro. Ninguém que ver os filhos em situações complicadas, em que não sabem como irão continuar a seguir as suas vidas com independência e estabilidade. No meu caso, os meus pais perceberam que aquele era o caminho que me ia fazer feliz, e isso foi mesmo o que pesou. Eu não queria fazer mais nada, tinha isso muito seguro em mim mesma, com todos os sacrifícios que implicava. Eu não teria conseguido se não tivesse essa base de apoio da parte deles. Disseram-me: «Vamos lá, vamos hipotecar a casa para ires estudar para Londres». Não são quaisquer pais que são capazes de fazer isto.

Estamos a falar de sacrifícios a uma escala muito grande, porque implica hipotecar o trabalho de uma vida. É possível desfrutar da viagem quando temos a consciência que não há margem de erro?

O curso de canto clássico na Guildhall (School of Music and Drama) era de quatro anos e, mesmo com o empréstimo, só tinha dinheiro para dois. Foi arriscar a um nível mesmo muito alto. Como é que eu podia garantir que ao fim de dois anos ia conseguir trabalhar ou pagar o empréstimo? A partir daqueles dois anos eu ia ter que pagar quinhentos e tal euros por mês, era mesmo muito dinheiro. Era impensável, quando olho para trás vejo que foi preciso uma coragem enorme por parte dos meus pais e minha também. Foram dois anos a trabalhar e a estudar ao mesmo tempo. Trabalhava num restaurante ao lado da escola, muitas vezes até às duas ou três da manhã, e, no dia seguinte, tinha que me levantar às sete porque tinha aulas de canto às dez e a voz tem que acordar antes. Ia fazendo algum dinheiro, mas era para gastar nos custos básicos de vida. O empréstimo pagava-me o alojamento e o resto era com o meu trabalho. Comi arroz com ervilhas e ervilhas com arroz muitas vezes, mas valeu a pena arriscar. Mas confesso que foram muitas noites mal dormidas. Houve muitas noites em que pensei que se não conseguisse não era só eu que estava em causa, a minha família e o trabalho de uma vida, como acabou de dizer, poderiam ir por água abaixo. Como é que eu carregava isto aos meus ombros? Se, por um lado, isso me trazia um peso grande, por outro, também me dava uma grande força para trabalhar. Eu tinha de conseguir e, para isso, tinha que dar tudo por tudo para chegar a um nível alto rapidamente [risos].

Nos momentos de maior aflição e angústia ligava aos seus pais ou criava uma certa barreira para não preocupá-los?

Ligava, ligava muitas vezes a chorar e do outro lado diziam-me: ‘Vai correr tudo bem, vais ver. Mesmo que tudo corra mal encontraremos soluções e no fim corre tudo bem. Agora estás aí, estuda, trabalha, esforça-te e desfruta também. As coisas vão-se solucionar’. Eu tenho vivido a minha vida um bocadinho assim também por ter esse exemplo e as coisas terem corrido realmente bem. Às vezes temos uma tendência para ver tudo muito negro e a grande maioria das vezes essa parte não é assim tão negra e há sempre maneira de resolver as situações. Desde que haja saúde, e eu sei que isto é um clichê, mas agora mais do que nunca estamos a ser confrontados com isto e, realmente, o mais importante é estarmos bem e de saúde.

Mas olhando para trás, considera que a mudança para Londres foi uma loucura ou a perceção altera-se à medida que o tempo vai passando e sabendo agora que teve um final feliz?

Foi uma loucura, mas eu sentia com tanta força que era aquilo que tinha que fazer que não conseguia ver as coisas de outra forma. Nessa altura teria sido capaz de tudo para poder ir estudar para Londres, eu sabia que o meu caminho era aquele. Claro que, se olharmos para as coisas de uma perspetiva um bocadinho menos espiritual e mais materialista, foi a loucura máxima [risos]. Podia ter corrido muito mal ao ponto de os meus pais perderem a casa e de eu voltar sem nada, mas os meus pais arriscaram mesmo sabendo que só havia dois anos de suporte financeiro para poder estar em Londres. Haveria a possibilidade de que as coisas não corressem bem. Tomaram esse risco em consciência, ninguém lhes apontou uma arma à cabeça [risos].

Como é que uma menina tão tímida se adapta na chegada a Londres?

Foi engraçado porque quando cheguei a Londres e à escola senti-me em casa. Foi um pouco como o Fame [risos]. Estava totalmente de coração aberto a viver uma experiência. Lembro-me de que nos primeiros três meses de escola a evolução que senti a nível vocal foi uma coisa extraordinária e pensei: ‘Se consegui isto em três meses, então como será se conseguir chegar ao final do curso?’. Havia muitas hipóteses, eu entrei com uma bolsa de estudo, havia mecenas que estavam dispostos a ajudar alunos a completar os seus estudos… Eu sabia que poderia candidatar-me a esse género de apoio a partir do terceiro ano e, se calhar, se não tivesse começado logo a trabalhar ao fim de dois anos, teria conseguido um mecenas, não sei. Também podia ter voltado para Guimarães e dar aulas, e fazer a minha carreira de outra forma, já com uma base diferente. Havia sempre maneira de contornar, nem que fosse trabalhar num café para ganhar 500 euros e pagar o empréstimo. Estava a trabalhar em Londres, já tinha experiência.

Em Londres, além de trabalhar em restaurantes, fez mais alguma coisa?

Sim, isso era o normal. Cheguei a fazer pequenos trabalhos a cantar com um grupo, mas depois tive que parar porque consegui o trabalho no Phantom [O Fantasma da Ópera] como substituta da Christine [Daaé; protagonista feminina]. Eu soube que tinha o trabalho para aí em julho, depois de meses de audições, e, em setembro, tinha de começar a pagar o empréstimo. Recebi o primeiro pagamento em agosto e paguei o empréstimo na mesma altura [risos]. Foi mesmo no limite. É impressionante como é a vida.

Há pouco referiu a evolução vocal em apenas três meses e na grande variedade de apoios que existiam. Era impensável fazer uma carreira como a que tem construído em Portugal, sobretudo na área do teatro musical? Como vê esta diferença no apoio à cultura?

São dois mercados totalmente diferentes. O teatro musical em Londres ou Nova Iorque, que são os grandes centros de teatro musical… é difícil podermos comparar os mercados de Portugal com esses. O Phantom of the Opera, que agora está parado pela primeira vez na vida [devido à pandemia], esteve trinta e tal anos sem parar, com casa cheia todos os dias. Nós não chegamos lá, mas também temos que pensar no turismo que vai a Londres propositadamente para ver espetáculos. As pessoas vão a Londres ver o Big Ben, as Jóias da Coroa e um espetáculo de teatro musical. Essa cultura está já muito enraizada neles, por isso, não podemos comparar o nosso mercado ao britânico ou ao nova-iorquino e, claro, isso reflete-se em todas as oportunidades de trabalho que surgem para as pessoas que querem seguir essa área. Também não podemos pensar que é o El Dourado, porque, mesmo aí, é um mercado saturado com muitas, muitas pessoas a quererem fazer esse género de trabalhos, e com um nível muito elevado: estudam nas melhores escolas, têm acesso a formação desde muito novos, podem ver os espetáculos desde muito pequenos e isso cresce com eles e já faz parte de gerações e gerações. Eu fiz a Christine, vou levar os meus filhos a ver o Phantom e eles vão levar os filhos também. Depois, a forma como se vê a cultura lá e as pessoas que vivem disso é valorizada como qualquer outra profissão; outra coisa que nós ainda estamos um bocadinho longe. Tem-se visto muito com tudo o que está a acontecer agora, a mentalidade das pessoas… É algo que me entristece e a todos os artistas, como é lógico, e é duro para nós que estamos sem trabalho há imenso tempo, os apoios são praticamente zero e além disso ainda temos que lidar com pessoas que dizem ‘Paciência, desenrasquem-se. Façam outra coisa, isso não é essencial’. Há uma falta de solidariedade muito grande acima de tudo, seja com os artistas ou em qualquer outra profissão numa situação difícil, como a restauração, o turismo, a hotelaria, cabeleireiros e tanta gente que está a sofrer. Essa falta de solidariedade é o que mais me magoa. ‘Como eu não gosto de ver teatro não quero saber de quem faz ou não’. Eu, que não sou fã de futebol, também poderia não querer saber se há ou não há, esquecendo todas as pessoas que gostam e todos aqueles que vivem disso – e não falo só dos jogadores, falo de toda a estrutura à volta. O mesmo se passa em relação aos artistas, não estamos a falar só dos cantores ou dos atores, estamos a falar de um conjunto de pessoas: técnicos, cenógrafos, figurinistas, pessoal do som, tanta, tanta gente que vive disto. Esta falta de amor ao próximo tem sido aquilo que me tem custado mais. No ano passado, quando tudo isto começou, vi coisas muito bonitas a acontecer, muita entreajuda, manifestações de amor ao próximo, muitos artistas que fizeram coisas muito bonitas sem pensarem em qualquer retorno, todas essas pessoas que ajudaram a que o confinamento fosse um bocadinho mais agradável, se é que se pode dizer assim. Imaginem-se fechados em casa três meses sem televisão, sem música, sem livros, sem arte… Eu sei que não é comida em cima da mesa, nem os médicos que estão na primeira linha a salvar vidas, mas também é importante falar da saúde mental. A arte e a cultura têm um papel vital na saúde mental das pessoas, por isso, custa-me ver que, depois de tudo isso, ainda há pessoas a desvalorizar aquilo que nós fazemos. Tenho amigas cantoras de ópera maravilhosas, talentos incríveis, a ligar-me a dizer: ‘Eu desisti de ser advogada para isto? Se calhar fiz mal’. Isto dói. Uma pessoa seguir o caminho que a fazia feliz que, no fundo, é uma profissão de partilha, de dar alegria ao outro e que, de repente, se vê numa posição de pensar que deveria ter seguido o que não queria, mas que, pelo menos, as pessoas valorizavam.

Em Christine… Como foi ser escolhida para interpretar o papel, primeiro como substituta e, depois, já a ‘tempo inteiro’? Como foi dar essa notícia aos seus pais?

Estou-me a arrepiar só de me lembrar [risos]. Acho que a primeira vez teve um impacto muito forte, quando fui escolhida para ser substituta, por causa de todas as circunstâncias que estávamos a viver… Foi um processo muito longo, também com chamadas atrás de chamadas. Eu já não me lembro quantas vezes fui vista [em audições], mas penso que foram doze e cada vez pode ser a última, nunca sabemos quando vamos ser eliminados. Ir passando todas as fases, a espera pelo telefonema seguinte, preparar-me também fisicamente para todas as audições, isso tudo… Eu fui a uma audição aberta nunca pensando que iria chegar tão longe, era uma oportunidade para aprender como funcionavam as audições e o que me poderia esperar no futuro quando entrasse no mercado de trabalho. Quando me começaram a chamar eu comecei a levar aquilo mais a sério. Mais ou menos a meio pensei que se calhar até tinha alguma hipótese [risos]. A partir daí a pressão foi aumentando cada vez mais.

Esse processo foi sobretudo desgastante a nível emocional? Ia falando com os seus pais?

Eles estiveram sempre a par de tudo, mas é lógico que chegou a uma altura em que pensei que se conseguisse, resolveríamos todos os nossos problemas, além de ser um sonho tornado realidade a um nível estratosférico. Começar a fazer de Christine n’ O Fantasma da Ópera, em Londres, sem sequer ter terminado o curso, é tipo conto de fadas. Uma parte de mim dizia ‘Calma que isto é muito difícil, vai fazendo passo a passo’. À medida que ia passando é impossível não criar uma esperança, e andei numa luta entre manter esse equilíbrio – para se me cortassem não ficar despedaçada – e tentar minimizar ao máximo a desilusão caso não passasse. Teria de manter a humildade e continuar a trabalhar para fazer melhor do que na vez anterior.

Nessas alturas, como se gerem as emoções? Reza-se? É religiosa?

Eu sou mais espiritual do que religiosa. Acredito em alguma força maior do que nós. Eu cresci num ambiente católico e também é parte de mim, não vou dizer que não, porque é. Mas era um rezar diferente, eu posso ser religiosa e espiritual sozinha, não tenho obrigação de ir à missa.

Não é praticante?

Exatamente, é mais por aí. Aquilo que eu pedia era para não me desiludir a mim própria, ou seja, saber aquilo de que sou capaz e ir a uma audição e não fazer aquilo de que sou capaz, estragar tudo pelos nervos, pela ansiedade e tudo isso são fatores complicados de gerir. O meu maior medo era esse. Aquilo que pedia era para ser capaz de fazer o meu melhor cada vez que entrava nas audições. Chegou ao ponto de passar à última audição, com mais duas pessoas, e chegando aí sabemos que as coisas já não estão propriamente nas nossas mãos e que essas três pessoas são igualmente boas e vão ser minúcias que fazem os olhos do diretor brilhar. Nesse ponto é como escolher entre três diamantes.

O que sente quando ouve temas como Think of me ou Somewhere over the rainbow?

Esses foram os dois temas que eu cantei na primeira audição. Depois, a partir daí, foi já só material d’ O Fantasma, mas ter passado essa primeira foi uma coisa extraordinária e são realmente duas músicas que fazem parte do meu reportório sempre em qualquer concerto e em qualquer circunstância, mesmo depois deste tempo e da quantidade de vezes que já cantei esses temas, não me canso, tem sempre um gostinho muito especial.

O Gabriel tem noção da sorte que tem quando a mãe canta para ele à noite ou não se apercebe de que o comum é ouvir o típico “Atirei o pau ao gato”?

 [risos]. O Gabriel está tão habituado a ouvir a mãe cantar que para ele já é normal. A única coisa que eu acho é que ele já tem um ouvido privilegiado, porque o meu marido também canta muito bem, embora não seja cantor, mas às vezes está a cantar e o meu filho diz-lhe: “hum, aquela nota ali é que não estava bem” [risos].

Qual é o género de música de que gosta?

Ele está a estudar piano já desde os três anos e gosta muito de qualquer género de música. É um bocadinho como nós, que ouvimos de tudo, apesar de eu ter formação clássica e de estar a fazer teatro musical. Não estamos cingidos só a isso, por isso, como ouvimos de tudo ele também gosta de tudo. Tem é um ouvido, na minha opinião, acima da média para a afinação, especialmente.

Foi jurada no programa Got Talent Portugal. Avalia o Gabriel enquanto jurada ou enquanto mãe? Consegue fazer esse distanciamento?

É muito mais difícil, embora seja muito crítica. Eu sei quando as coisas não estão tão bem, mas tal como tento fazer no meu papel de jurada no Got Talent, tento sempre fazer as críticas de uma forma construtiva. Acima de tudo porque não quero, no caso do Gabriel, e mesmo no caso dos concorrentes que nos aparecem, não quero causar nenhum trauma ou ser um fator que possa fazer as pessoas desistir. Às vezes as coisas podem não correr bem naquele momento e a pessoa ter imenso talento, muitas vezes é difícil avaliar o que está por trás de uma audição menos boa. Ser construtiva é muito importante porque também foi muito importante para mim ao longo da vida. Eu tive uma professora extraordinária na Guildhall que era super exigente comigo, mas que, ao mesmo tempo, soube lidar com essa faceta minha do medo, de não me sentir boa o suficiente, e conseguiu criar essa confiança em mim mesma, que me permitiu fazer tudo aquilo que tenho feito. Sem isso teria sido muito difícil e é muito fácil minar a autoconfiança de alguém. Tento ter sempre esse cuidado não só com o meu filho, mas claro que com ele tenho ainda mais.

É muito elogiada também por ter essa faceta em que mostra que há maneiras de se dizer tudo, e sem ferir. Esse lado mais carinhoso e de cuidado com o próximo mostra quem é?

Sim, sim. Sem dúvida nenhuma. A pessoa que está ali sou eu, mais ou menos maquilhada, mas o interior é revelador daquilo que sou. Embora esteja num papel de jurada, a minha vida é sempre passada do outro lado. Sei muito bem o que se sente ao estar na posição de ser julgado e muito mais num programa destes porque as audições que eu faço são fechadas, se correrem mal ficam ali entre quatro ou cinco pessoas, ninguém comenta no Youtube ou algo do género. É preciso ter uma coragem enorme para entrar nestes formatos e ter a consciência de que se as coisas correrem mal as pessoas podem ser muito más.

Interpretou Mary Cullen no El Médico, um musical nº 1 em Espanha, à semelhança do que aconteceu também em Londres com O Fantasma da Ópera e West Side Story. Receber o aplauso da crítica e as distinções é também necessário para validar o talento de um artista?

Sim, sim. Em mercados como o de Londres, a crítica pode fazer ou destruir um espetáculo. É mesmo vital ter boas críticas, ou as pessoas não vão. As pessoas lêem muito a crítica oficial. Os bilhetes são caríssimos, as pessoas vão ver a crítica para saberem se vale a pena gastarem aquele dinheiro. Nesse aspeto é essencial, mas também em relação ao ego, os artistas são pessoas muito sensíveis em relação a isto [risos]. Quando se consegue esse reconhecimento do trabalho é óbvio que nos dão muita força, que é muito importante nas nossas carreiras também e que, sem dúvida, alimenta o ego e a autoconfiança.

Foi no Fantasma que conheceu o seu marido, Gonzalo Ramos…

Foi como num conto de fadas. Eu saí do Phantom para fazer o West Side Story e, depois, voltei para o papel principal de Christine, a fazer seis espetáculos por semana. No segundo ano de contrato, o Gonzalo foi ver o espetáculo. Ele costuma dizer que foi o fã que teve sorte [risos]. Foi ver o espetáculo e, segundo ele, apaixonou-se perdidamente pela Christine. Atenção que ele já tinha visto o espetáculo antes, quando não era eu [a protagonista], ele era muito fã do Fantasma já há muitos anos e, desta vez, viu uma Christine que achou especial [risos].

E casaram em Guimarães…

Sim, para mim era especial. Eu sempre quis casar naquela igreja, que foi onde casaram os meus pais e a minha irmã. Além disso, era extremamente conveniente porque tínhamos a pousada de Santa Maria da Costa ao lado e nós íamos ter convidados que não estavam em Portugal e, assim, podiam ir a pé para a pousada e estar todos tranquilos a beberem o que quisessem [risos]. Correu mesmo muito bem e foi muito bonito. Foi no casamento que anunciei que estava à espera do Gabriel [risos].

Quais são os ‘fantasmas’ da Sofia, se é que os tem?

Tenho, claro que sim, como toda a gente. O meu principal medo, a nível profissional, é mesmo desiludir as pessoas.

Há alguma coisa que a faça perder esse lado mais calmo?

Há. Qualquer coisa de mal que esteja relacionada com o meu filho, salta a leoa de uma forma muito diferente [risos]. Não há hipótese.

Fez referência à série Glow & Darkness. Quando tudo estiver melhor quais são os projetos a curto prazo?

Aquilo que idealizo, neste momento, é poder voltar ao palco e a fazer aquilo que gosto, e voltar a dar esses momentos especiais às pessoas. Às vezes coisas pequeninas que fazemos podem mudar a vida das pessoas ou pelo menos dar-lhes um bocadinho de motivação ou de esperança, nem que seja por umas horas, para mim já vale a pena. l