A “Revolução” vai fazendo as suas vítimas

Amanda Gorman leu um poema seu na tomada de posse de Joe Biden e tornou-se uma celebridade imediata. Com o seu livro a ser traduzido em todo o mundo, a polémica estalou na Holanda: a tradutora Marieke Rijnveld teve de se afastar por ser demasiado branca.

Depois de ter declamado um poema seu, ‘The Hill We Climb’, na tomada de posse de Joe Biden, em janeiro, Amanda Gorman tornou-se a grande sensação do momento. A poeta negra de 22 anos não apenas viu os seus livros ainda por editar escalar os tops de pré-vendas como, simultaneamente, assinou contrato com uma grande agência de modelos. Transformada num ícone instantâneo, os vídeos desta artista de spoken-word circularam pelas redes sociais, enquanto Gorman era aclamada como a voz de uma nova geração, um virar de página depois dos desaires da administração Trump.

Já em fevereiro, Gorman tornou-se a primeira poeta a declamar na final do campeonato de futebol americano, o Super Bowl, cuja audiência atinge valores recorde. Entretanto, e à medida que os direitos relativos à edição de um livro com o título do famoso poema eram negociados em todo o mundo, nos Países Baixos, a editora Meulenhoff anunciava em registo triunfal que seria a aclamada poeta holandesa Marieke Lucas Rijneveld, de 29 anos, a mais jovem vencedora do International Booker Prize, quem assumiria a tarefa de traduzir a obra de Amanda Gorman. Mas, logo após o anúncio, um burburinho começou a crescer nas redes sociais, saltando depois para as colunas de opinião dos jornais. E porquê? Porque, de acordo com a jornalista e ativista holandesa negra Janice Deul, «uma tradução branca» para a poesia de Amanda Gorman era algo de incompreensível. Pouco importa que tenha sido a própria poeta norte-americana quem escolheu a tradutora, pois agora tinham de se haver com o assalto de todas as susceptibilidades vindas desse setor em permanente bulício, magicando controvérsias num regime de insânia patrocinado por uma visão progressista que se deixou enredar nas malhas de um idealismo bacoco, uma espécie de utopia para totós.

No artigo que assinava no jornal Volksrant, Deul dizia tratar-se de uma oportunidade perdida, depois de a editora ter escolhido alguém que não tem experiência como tradutora e que também não é artista de spoken-word, mas sobretudo por a editora ter deixado escapar a solução perfeita, que seria escolher uma tradutora que, tal como Gorman, fosse «jovem, feminina e assumidamente negra» – Rijneveld, além de ter o cabelo loiro, afirma-se não binária, ou seja, não se vê como mulher, preferindo uma indefinição de identidade sexual próxima da androginia. Depois vem o chorrilho de emoções desordenadas, a calamidade das subjetividades brandidas por dá cá aquela palha, em que uma voz se eleva em nome ‘de muitos outros’, para clamar contra «uma escolha incompreensível», dando eco àqueles que supostamente expressaram «a sua dor, frustração, raiva e deceção através das redes sociais».

Janice Deul demonstra esta torpeza argumentativa que passa por identificar uma suposta sensibilidade ferida que se insurgiu nesse reino onde o tédio coça tudo até fazer sangue, numa desgastante simulação de todo o tipo de ofensas. E em face desta catilinária descocada, Rijneveld preferiu abandonar o projeto: «Estou chocada com o tumulto a propósito do meu envolvimento na divulgação da mensagem de Amanda Gorman». Por outro lado, se sentiu chocada, disse entender que as pessoas se sentissem magoadas com a escolha da editora Meulenhoff. E assim vamos, pedindo desculpas, e as convicções deixam-se abater sem mais. Porque Rijneveld tinha já manifestado a sua satisfação por ter sido escolhida, afirmando que, «num momento de polarização crescente, Amanda Gorman mostra, com a sua voz jovem, o poder da palavra falada, o poder da reconciliação, o poder de quem olha para o futuro em vez de olhar para baixo». A tradutora abandonou o trabalho que já havia começado, e fê-lo assumindo um suposto privilégio, admitindo as pretensões de outros, por questões de proximidade identitária, a ficarem com o trabalho. Desejando que o episódio não manche a divulgação da obra de Gorman, afastou-se.

 

‘Queremos aprender com isto’

Por seu lado, a editora decidiu que o melhor seria dissolver a polémica instituindo uma comissão. «Queremos aprender com isto. Conversando, trilharemos um caminho diferente», afirmou o diretor-geral da Meulenhoff, Maaike le Noble. «Estamos agora à procura de uma equipa para traduzir as palavras de Amanda e a sua mensagem de esperança e inspiração da melhor maneira possível», rematou. Janice Deul agradeceu a decisão através do Twitter. E não deixa de ser instrutivo seguir as rondas deste fenómeno, como um poema sofrível, na melhor das hipóteses, por acenar com uma série de lugares-comuns de que todos podem sentir-se donos, encadeando uma sucessão de frases feitas, buriladas num registo em que a identidade parece ser o feixe da construção de um admirável mundo novo, subitamente fica a saque de todas as subjetividades. Através do seu percurso assistimos a esse momento em que o ego se vê insuflado a um tal ponto que a arte se confunde com um discurso oco, cerimonial, estéril. E talvez isso justifique a polémica, por se tratar de uma poesia perfeitamente alinhada com esse coro edificante de um regime cultural em perpétuo estado de êxtase, num autodeslumbramento de quem encara o espaço público como um gigantesco livro de reclamações, em que a qualquer momento o establishment tem de abandonar as suas práticas para satisfazer caprichos, e em que a gerência parece disposta a abdicar de todo o sentido do ridículo para atender às fantasias de clientes de pele finíssima, que se exercitam nesse jogo de ofender-se por bagatelas.

 

Recreio de vítimas, ambiente de paranoia

Isto mesmo tem sido apontado por alguns dos escritores com uma perspetiva acutilante desta deriva da cultura para um regime de infantário. Um caso exemplar desta denúncia é Javier Marías, que tem apontado a forma como tantas zonas do espaço cultural estão hoje transformadas em recintos de festas, laboratórios para estas infinitas subjetividades, este recreio de vítimas atraídas pela esperança de integrar o infinito recenseamento de subespécies dentro do sofrimento humano, representadas em zonas de desconforto, agremiações que fazem por fragmentar o coletivo de tal modo que se instala um ambiente de paranoia, uma vigilância em que o quê está sempre submetido ao quem, em que tudo tende ao imobilismo, a uma ordem de burocracia maníaca, que faz da identidade um fator da aparência, e que consegue encalhar a embarcação do possível numa ridícula representação de um mundo ideal. Reféns da prepotente idiotice de quem, agitando um purismo patético, em vez de defender a dissolução das diferenças, acirra-as, agravando a polarização, cerrando fileiras, abrindo fossos. Assim, em nome de uma igualdade insuportável, consegue-se uma divisão alienante, ao definir como aspetos essenciais da identidade aquilo que se pretendia fazer esquecer, as diferenças insubstanciais. E voltemos ao poema de Amanda Gorman, sobre «uma miúda negra magricela descendente/ de escravizados e criada por uma mãe solteira pode sonhar em tornar-se presidente, e logo/ ver-se a declamar para um». O poema lido em Washington fala de «compor um país comprometido com todas as culturas, cores, feitios e condições humanas», e remata: «Essa é a promessa-clareira, a colina a subir, se assim ousarmos./ Porque ser da América é mais do que um orgulho que herdamos./ É o passado em que entramos e a forma como o reparamos». Retirado do contexto, sem o lado performativo, sem a presença da bela jovem negra de 22 anos que, por ter dificuldades com a sua expressão oral, aperfeiçoou-se neste regime da spoken-word, em que o imediatismo pede uma certa efervescência dos versos, esse impacto não fica à espera da articulação sensorial de um leitor que tem diante de si desenhados os caracteres de uma certa ideia, organizada a partir de imagens e sugestões, criando um movimento antes de cair no pó que levantou e, por fim, se fundir à sua própria sombra, permitindo a quem sobre ela se debruça ainda o deleite de uma autópsia, abrindo a carcaça e tentando perceber as suas funções e o que a levou a florir de forma tão desarmante. Aqui, pelo contrário, trata-se provocar uma reação em cadeia na audiência, hastear uma bandeira como um saco de plástico que se agita de acordo com o vento que sopra de algum órgão geral cheio de emoção. Amanda Gorman não reagiu à polémica. Afinal, hoje talvez seja mais fácil escrever um poema em tom grandioso, a transbordar de termos abstratos e sonantes, para ser lido em frente ao Capitólio, e transmitido por todo o mundo, do que assumir uma posição clara frente às hordas que a todo o momento conduzem ao ridículo estas questões identitárias, exigindo uma escala de 1:1 nas representações seja do que for, o negro faz de negro, o transgénero faz de transgénero, e o mesmo serve para o paralítico e assim sucessivamente, num movimento que, idealmente, busca sósias, réplicas, etc.

Entretanto, o caso ganhou repercussão na imprensa internacional como o último episódio da série sobre os despertares para as infinitas e infinitesimais diferenças que regem este jogo do quem é quem identitário, num balanço em que, entre as questões de discriminação e representação, tende a ficar pelo caminho o que deveria respeitar à arte e à vontade dos artistas.

 

Do saxofonista de jazz ao Lago dos Cisnes

Nas águas agitadas destas controvérsias, há reivindicações mais pertinentes que outras. Recentemente, em Portugal, foi a dobragem do filme de animação Soul, da Pixar, que gerou protestos pelo facto de a personagem principal, que originalmente é interpretada por Jamie Foxx, na versão portuguesa ter sido entregue a Jorge Mourato, um ator branco. Sendo um filme que tem como protagonista um saxofonista de jazz e um elenco eminentemente negro, e sendo a questão racial um dos aspetos decisivos desta produção, é difícil passar ao lado da escolha. Na altura, nomes como Mamadou Ba, Sara Tavares, Dino D’Santiago ou Nástio Mosquito lançaram uma petição pedindo à Disney uma nova versão do filme «respeitando a intenção original e reconhecendo a importância histórica deste momento. Porque este filme não é apenas mais um filme e o que ele representa importa». Com mais de 17.500 subscritores, a petição levou a Disney a emitir um comunicado em que garante estar comprometida com a diversidade e reconhece «que há trabalho a fazer».

Nos últimos anos, contendas deste tipo têm-se sucedido a um ritmo desgastante. Quando estalou uma em França foi o Le Monde que, através do seu editorial, sentiu necessidade de pôs as coisas em perspetiva, com o seu editor, Michel Guerrin, a advertir para o perigo de o país estar a deixar-se levar «devagar mas firmemente para a estrada da América, que consiste em abrir mão dos critérios e permitir a autocensura dos artistas e programadores de forma a evitar quaisquer problemas». Esse editorial foi publicado depois de o diretor da Ópera de Paris, onde reside a maior companhia de bailado francesa, ter dado uma entrevista ao jornal em que parecia sugerir que alguns ballets clássicos deixariam de ser levados à cena por perpetuarem estereótipos racistas. «Algumas obras irão sem dúvida desaparecer do repertório», disse Alexander Neef numa entrevista à M, a revista semanal daquele diário, reagindo a um manifesto subscrito por bailarinos negros e mestiços e outros membros da companhia batendo-se por uma maior diversidade tanto na equipa como nas produções da casa. Entre os ballets que poderiam ser preteridos a favor de outros mais consensuais face aos valores hoje em voga pareciam incluir-se alguns dos mais apreciados pelas audiências, incluindo as versões de Rudolf Nureyev de O Lago dos Cisnes, O Quebra Nozes e La Bayadère.

Não demorou para que, de entre os setores conservadores da sociedade francesa, se erguesse um coro de críticas denunciando esta forma de censura da arte por parte de indivíduos e instituições que se deixam dominar pelo receio de serem alvo das críticas de ativistas anti-racismo. Naturalmente, a líder da Frente Nacional, Marine Le Pen, não perdeu a oportunidade de expor a situação como evidência do parafuso a menos que caracteriza o campo «pseudo-pregressista» num tweet que não demorou a ser amplamente partilhado. Em resposta, a Ópera de Paris tentou pôr água na fervura, assegurando que nunca esteve em causa deixar cair as obras de Nureyev do seu repertório, e que as declarações do seu diretor tinham sido mal interpretadas. O facto é que nos últimos cinco anos, além de Neef ter posto fim ao uso de ‘blackface’ (intérpretes brancos com a cara pintada de negro), e de os dançarinos negros terem passado a usar maillot e pontas da cor da sua pele, numa ‘revolução’ desencadeada por aquele manifesto inspirado no movimento Black Lives Matter, o diretor da Ópera contratou um historiador e um defensor dos direitos civis para elaborarem um plano de sugestões abrangente sobre como lidar com óperas que contenham «clichés racistas ou situações que possam ser consideradas racistas», isto integrando um grande estudo sobre a diversidade no ballet e na Ópera de Paris. Ora, muitas das recomendações – que incluem treino do pessoal, a nomeação de um diretor de diversidade, a criação de um comité de especialistas e um esforço maior no que toca à contextualização do repertório – irão obrigar a um esforço financeiro significativo e na pior altura possível. Apesar de um pacote de resgate de 61 milhões de euros recebido do Estado para fazer face aos constrangimentos da pandemia, a Ópera de Paris antecipa perdas de 29 milhões de euros até ao ano fiscal de 2022, numa altura em que não há ainda qualquer previsão de quando as salas de teatro reabrirão.

Mas um pouco por toda a parte vão sendo ensaiados aspetos mais ou menos delirantes desta ‘revolução’. Os exemplos acumulam-se e vão da decisão da HBO Max de remover da sua plataforma o filme E Tudo o Vento Levou, prometendo recuperá-lo assim que possa contextualizar o filme no que toca à questão da escravatura, até à decisão de um museu londrino de notificar os visitantes de uma grande exposição com as obras de Gauguin sobre os seus comportamentos sexualmente predatórios no Pacífico Sul.