Fátima Bonifácio: “Detesto mudanças revolucionárias, dão sempre mau resultado”

Considera-o o maior inimigo da liberdade, mas acha que o Partido Comunista tem todo o direito não só de existir como de pôr bandeiras onde quiser. Pessimista por natureza, vê ainda assim com bons olhos a emergência do Chega. Acredita que André Ventura pode transformar-se de um ‘arruaceiro’ num líder da direita clássica, democrática e…

Uma placa discreta à entrada do prédio – um bloco residencial modernista – assinala que o projeto foi distinguido com o Prémio Valmor. «Isso até foi uma ideia minha, mas não sabia que tinham posto lá a placa», comenta Maria de Fátima Bonifácio. Lá em cima, das janelas da sala de estar, avista-se o pequeno jardim das traseiras. Onde agora estão as árvores com uma floração cor-de-rosa vibrante havia outrora «um parque de betoneiras», recorda. «Comprei a casa em planta. Quando me entregaram o apartamento, o prédio não tinha porta e estava circundado por uma vedação de madeira. Estava tudo bastante selvagem, mas achei que tinha potencial». Não se enganou.

Numa pequena visita guiada ao gabinete onde trabalha – e donde têm saído alguns textos controversos –, a historiadora de 73 anos revela que doou recentemente dois terços da sua biblioteca. Mesmo assim, as estantes continuam muito bem compostas. «Sentia-me estrafegada!», desabafa. «Havia livros por todo o lado. Para que quero livros que nunca vou ler na vida?».

Outra das razões por que fez essa doação foi ter tomado a decisão de que não voltará a escrever sobre História de Portugal do século XIX, o seu campo de especialidade. A biografia do seu amigo António Barreto que publicou em 2016 (António Barreto:_Política e Pensamento, ed. D. Quixote) deixou-a «exaurida».

Agora prefere dedicar-se à leitura de livros que lhe dão prazer, como as memórias de Tayllerand, uma biografia de Churchill ou Génio e Ansiedade – Como os Judeus Mudaram o Mundo (1847-1947), de Norman Lebrecht, que tem no Kindle que a filha lhe ofereceu. Já uma biografia de Metternich, o estadista e diplomata austríaco do tempo de Napoleão, está em vias de voltar para a prateleira. «Acho que não vou chegar ao fim. É um personagem chato, e o livro também. E eu não estou em idade de ler por obrigação».

Há pouco disse-me que doou a sua biblioteca. Mesmo assim ainda vemos as estantes bem preenchidas.

Doei dois terços, uns 3500 livros.

Não teve pena?

Não. Era tudo livros que eu sabia que não iria reler, e alguns que estavam por ler, ou só vagamente folheados, mas sabia que nunca iria ler aquilo. Para quê estar a atafulhar a minha casa?

O que tem feito nos últimos tempos?

Tenho lido, escrevo para o Público… Mas só escrevo quando tenho alguma coisa para dizer. Não tenho aquela coisa de pensar ‘o que é que vou escrever esta semana?’… Já cumpri deveres durante quase cinquenta anos, it’s quite enough. Agora, se me pergunta se tenho saudades do tempo em que trabalhava de manhã à noite, digo-lhe que sim. Mas já não estou capaz disso. E quanto menos se faz, menos vontade se tem de fazer…

É a lei da inércia.

Se você precisar de uma coisa com muita urgência escolha uma pessoa que trabalhe muito, porque se pede um texto a alguém que não tem nada que fazer, o texto nunca mais aparece. [risos] Se bem que eu não funciono assim, porque tenho um feitio que é o contrário disso.

É muito cumpridora?

Tudo o que é tarefa ou compromisso despacho o mais rápido que posso. Ainda agora aconteceu com um texto que fiz para o Movimento Europa Livre, que eu nem sabia que existia. Conheci por acaso um dos dirigentes, e ele pediu-me num jantar uma ideia para Portugal. ‘Não tenho nenhuma ideia para Portugal, não sou política. Mas se quiser uma ideia interpretativa de Portugal, isso posso escrever’. Acho que o texto me saiu bem, completamente depurado, até porque tive de meter tudo em menos de 14 mil carateres.

Do que trata?

Chama-se ‘Portugal, país pobre mesmo em tempos de grandeza’. Mesmo nos Descobrimentos, já com a pimenta, o gengibre e as especiarias, o país continuou tão pobre como era antes. A Coroa, sim, enriqueceu, a fidalguia apaniguada da Coroa também, mas o camponês não melhorou absolutamente nada. Depois tivemos outras oportunidades. A última delas foi o Brasil, mas o D. João V resolveu construiu uma patriarcal e o convento de Mafra e estoirou a riqueza toda que veio do Brasil. O que sobressai no final disto tudo é que Portugal viveu sempre, sempre, sempre na dependência do Estado. A começar pelas classes dirigentes. O Marquês de Pombal, quando chegou ao poder, percebeu que não podia haver uma monarquia absoluta sem uma aristocracia. Então debruçou-se sobre os senhorios detidos pela aristocracia de corte. A fidalguia portuguesa era de uma preguiça verdadeiramente rara. Alguns morgados nem se davam ao trabalho de irem ver o senhorio que herdavam. E estavam todos falidos, porque gastavam mais do que tinham, gostavam de viver em Lisboa, em palácios, o diabo a sete. E o Marquês de Pombal fez uma coisa que diz tudo sobre a nossa aristocracia e a nossa classe dirigente. Nomeou comissões administrativas para todos os fidalgos, que eram basicamente umas quarenta famílias que viviam em Lisboa em torno da corte, e dava a essa fidalguia uma espécie de mesada, uma coisa completamente infantil. Acho que eles devem ter ficado radiantes, dada a índole muito pouco inclinada para o trabalho. Isto é o cúmulo do paternalismo estatal.

Diz que o país continuava pobre mesmo nos momentos de grandeza. E podemos fazer a inferência inversa, que os privilegiados continuavam privilegiados mesmo nos momentos de pobreza?

Sem dúvida. Aquela fidalguia que vivia de subsídios dados pelo Estado continuava na melhor, porque o Estado repartia com ela o que ia ganhando com as especiarias, mais tarde com o ouro. Acho que nós fomos verdadeiramente grandes no século XV. No século XVI, depois da descoberta da Índia e do Brasil, nunca dominámos os tráfegos comerciais internacionais. Uma expedição à Índia, para vir de lá com sedas, com pedras preciosas, com especiarias, só tinha retorno mais ou menos quatro anos depois. Era um investimento muito grande, e nós não tínhamos unhas para aquilo. O Rei começou a arrendar monopólios da pimenta, do gengibre, disto e daquilo, e os arrendatários ficaram cada um com a sua fatia. Foram esses grandes comerciantes e banqueiros, como os Welser e os Fugger, quem verdadeiramente beneficiou do comércio oriental de Portugal. Onde é que quero chegar? Nunca nos soubemos governar. Nem em democracia, nem no absolutismo, nem em tempo nenhum.

Diz isso quase como uma fatalidade…

Portugal é um país irreformável, e a continuar assim não vamos sair da cauda da Europa, para onde já nos deslocámos outra vez, depois de termos estado um pouco melhor. Enquanto o Estado em Portugal empregar 700 mil pessoas – agora ponha lá mais a mulher e o filho, ou seja, enquanto houver dois milhões ou dois milhões e meio de pessoas que dependem do Estado para viver – do que está à espera? As pessoas não vão querer mudar coisíssima nenhuma e votam de uma maneira conservadora. Se juntar a isso o politicamente correto, percebe que é muito difícil sairmos deste ciclo.

Por falar em politicamente correto: há um par de semanas houve uma palestra de uma professora numa universidade norte-americana a questionar se Os Maias seria um livro racista ou colonialista. Acha que a pergunta faz sentido ou é um anacronismo?

É uma pergunta estúpida, completamente anacrónica. É não perceber que o antirracismo é uma aquisição civilizacional muito recente. Ou o anticolonialismo. A República, por exemplo, era ultracolonialista. Podemos dizer que esse sentimento começa em 1880, no tricentenário da morte do Camões. Nasce aí uma onda patriótica, nacionalista, e uma das dimensões desse nacionalismo e patriotismo eram as colónias. A partir daí, o Partido Republicano, que se tinha formado em 1876, conseguiu conquistar o monopólio do patriotismo. O colonialismo foi ab inicio uma dimensão dessa ideologia republicana, quase tão importante como a dimensão anticlerical.

Tanto que mais tarde Portugal entra na Grande Guerra para manter as colónias…

Mais para manter o Afonso Costa no poder. [risos] Tudo junto.

Se não estou em erro, esta discussão em torno do colonialismo e do racismo começou a propósito do Museu dos Descobrimentos, que estava no programa de Fernando Medina quando se candidatou à Câmara. Veria com bons olhos um Museu dos Descobrimentos em Lisboa?

Acho que os Descobrimentos foram a única grande gesta portuguesa – de facto no século XV fomos grandes. Em abstrato veria esse museu com muito bons olhos. Mas depende depois do que punham lá dentro, como, onde e com que legendas. Sobretudo com que legendas. E depende também de como lhe chamavam, porque pelos vistos também é ofensivo falar em Museu dos Descobrimentos.

Houve uma proposta para lhe chamar Museu do Encontro…

Isso não lembra ao diabo! Mas não creio que se faça, para não ofender a esquerda. Acham que seria estar a vangloriar o colonialismo, a escravatura… Quando eu acho que os Descobrimentos são das coisas que de facto Portugal devia celebrar e são uma das poucas coisas, como portuguesa, de que me orgulho. Para mim é semelhante à NASA, que foi à Lua.

O deputado Ascenso Simões defendeu que o Padrão dos Descobrimentos devia ser demolido. Acha que o facto de os Descobrimentos terem sido muito glorificados pelo Estado Novo de alguma forma os contaminou e tornou-os tóxicos?

Ascenso Simões e muitos como ele pensam que o colonialismo foi uma invenção do Estado Novo, o que é de uma ignorância granítica. Mas de facto o Salazar instituiu uma unidade muito intensa entre a metrópole e as colónias, ou províncias ultramarinas. É possível que esta vaga de contestação e de repugnância pelo nosso passado colonial seja acirrada pelo facto de durante o fascismo as colónias terem sido muito acarinhadas.

Ao mesmo tempo que se discutia se o Padrão dos Descobrimentos devia ser demolido, o PCP celebrou o centenário da sua fundação e colocou bandeiras vermelhas com a foice e o martelo nalguns lugares emblemáticos. Incomoda-a ver as bandeiras com a foice e o martelo espalhadas pela cidade?

Detesto o Partido Comunista, acho-o o partido mais retrógrado e conservador que imaginar se possa, e acho que é um dos grandes responsáveis pela incapacidade de Portugal se reformar. Aliás, digo-lhe uma coisa: se crescêssemos 4% ao ano já não havia PC em Portugal nesta altura. O PC vive justamente da pobreza portuguesa. Mas porque é que não hão-de poder pôr as bandeiras? Não me incomoda nada. Não sei se notou um pormenor muito interessante. Quando foram as eleições presidenciais, tiraram a foice e o martelo dos cartazes do João Ferreira. Reparou nisso?

Não reparei.

Não havia foice e martelo. Significa que perceberam que o símbolo deles assusta.

Há um ano e picos o Parlamento Europeu aprovou uma resolução em que equiparava o nazismo ao comunismo, o que não foi consensual. Na sua opinião, o comunismo e o nazismo são comparáveis?

Absolutamente. O Estaline matou muito mais gente do que o Hitler.

Mas também esteve mais tempo no poder. O Hitler foi concentrado…

Seja como for. Ambos tinham um completo desprezo pelo ser humano. O Lenine morre em 24, e mal lhe sucede o Estaline faz logo uma purga, nos finais dos anos 20. E depois nos 30 foi um absoluto horror na Ucrânia. Até canibalismo generalizado existiu.

O Holodomor.

Os arquivos foram abertos há uns anos e alguns autores que sabem russo foram lá para ver. Havia cartas de pais a pedir aos filhos que quando eles morressem os assassem e comessem. Estaline foi responsável pela morte de uns trinta milhões de pessoas. E mesmo a participação da União Soviética na II Guerra é muito exaltada e gabada – e acho muito bem – mas há historiadores que defendem que não era preciso terem morrido tantos soldados soviéticos. Dizem que se o Estaline tivesse um bocadinho mais de consideração tinha orientado aquilo de maneira a poupar vidas. Não, não poupou vidas nenhumas, era carne para canhão.

Poderíamos também falar do pacto de não-agressão Molotov-Ribbentrop. Estaline começou por ser cúmplice do nazismo.

Porque lhe interessava fazer uma política de expansionismo e não queria problemas com o Hitler. Em contrapartida, o Hitler também ficou livre de ocupar a Áustria e depois apoderou-se de grande parte da Polónia. Isso é o que se chama realpolitik. Não interessa nada a ideologia, não interessa se eles são nazis e nós somos comunistas.

Há quem diga que os extremos se tocam.

É o caso. Muitas vezes os extremos tocam-se. Normalmente a extrema-direita tem coisas que tocam com a extrema-esquerda.

Mas cá em Portugal parece haver uma aceitação mais pacífica da extrema-esquerda do que da extrema-direita.

Não tenha dúvidas. Em Portugal ninguém tem licença para ser de direita. O Partido Comunista é o maior inimigo da liberdade individual e coletiva, é contra o capitalismo, contra a Europa, contra tudo e mais alguma coisa. E no entanto é aceite por toda a gente. E acho muito bem. O que não acho bem é que não possa existir um Ventura.

Pode existir…

Pode existir, mas à custa de grande resiliência, porque é atacado por todos os lados. Por que toleramos partidos extremistas à esquerda e não podemos ter partidos extremistas à direita? Explique-me se for capaz.

Ana Gomes apresentou uma participação à Procuradoria-Geral da República para ilegalizar o Chega por ser contra a Constituição.

Temos uma Constituição que diz que caminhamos para o socialismo, sabia? Há três ou quatro anos, fui a uma mesa-redonda sobre a Constituição e li-a do princípio ao fim. Aquilo é intragável, é um programa de Governo, não é uma Constituição. É uma coisa disparatadíssima, enorme, com 300 artigos, só mesmo por dever é que se lê aquilo.

Tivemos um setor da esquerda que durante talvez vinte anos liderou a agenda política a cavalgar temas como a liberalização das drogas, o aborto, a eutanásia…

Sim, as chamadas questões fraturantes.

Depois de isso ter sido conquistado, voltou-se para estas questões da história, do colonialismo, do racismo, etc.

Claro, coitados, não têm outras. O programa deles cumpriu-se e agora tiveram de inventar qualquer coisa que supostamente justifique a existência do Bloco. Na minha opinião, o que justifica a existência do Bloco é que eles têm já muitos boys e girls espalhados pelo aparelho de Estado. Conseguiram entrar. Isso é uma força. E quanto ao resto têm que inventar essas coisas.

Mas essas campanhas também geraram uma reação e vemos o Chega a ganhar força e a conquistar espaço político. A direita acordou?

Apesar de tudo ainda há pessoas com tino em Portugal, e o Ventura aproveitou esta onda crítica absurda para crescer. A direita tem sido bastante covarde – se calhar é fácil dizer isto porque estou de fora, mas é o que acho. E o Ventura percebeu que isto não ia com falinhas mansas e com festinhas no cocuruto da cabeça. Percebeu que só à bruta é que conseguia abrir um espaço à direita. E que tinha de ser extremista, se bem que não seja mais extremista do que o Bloco de Esquerda. Acho que o Chega pode ser uma espécie de pelotão da frente que abra espaço para uma direita clássica, democrática e sobretudo liberal. O Ventura é um tipo inteligente e muito esperto, e claro que não vai abrir esse espaço para depois se retirar e oferecê-lo de bandeja a outro partido ou a um colega de bancada. Ele próprio pode transformar-se de um arruaceiro – que é o que ele é um bocado – num líder democrático normal. Talvez ele possa normalizar e relegitimar a direita. Porque a direita hoje não é considerada legítima. As pessoas não se atrevem a dizer isto, mas é o que está no ar.

Há uma semana Cavaco Silva disse que a democracia estava amordaçada. Concorda?

Não é verdade que Portugal esteja amordaçado. Isso foi uma frase muito infeliz do professor Cavaco Silva. Não me sinto a viver num país amordaçado. Agora, já tenho tido chatices, e quem estabelece uma vigilância e avalia a correção política dos textos que se publicam é gente de esquerda e de extrema-esquerda para quem o politicamente correto não pode ser posto em causa.

Diz que não se sente amordaçada, mas em julho de 2019, a propósito de uma proposta de criação de quotas para minorias raciais, escreveu um artigo que muitos consideraram racista. Nessa altura não sentiu que tentaram silenciá-la?

Com certeza. Senti. E mais: faço um esforço enorme hoje em dia, quando escrevo, para não me deixar condicionar.

É o que ia perguntar. Essa controvérsia, essa barragem de críticas, não a levou depois a refrear-se, a ter mais cuidado, a medir mais as palavras?

É verdade que isso alterou as condições em que escrevo. Tenho um cuidado que não tinha antes. E isto é incómodo. Não desminto nem menorizo isso. É uma pena, é um drama, mas a verdade é que não escrevo com a mesma aisance com que escrevia.

A mesma descontração?

Escrevo com uma censura ativa na minha cabeça, mesmo que não faça o que essa censura me manda. Mas tenho mais cuidado.

Porque não quer passar pelas mesmas chatices que teve?

Tive e ainda estou a ter. Eles pediram a reabertura do processo de instrução, vai para segunda instância, mas acho que é muito difícil ganharem. Aliás, é extraordinário porque leio muitos textos em que se fala de mestiços, de pretos, de brancos, de amarelos, de verdes, e nunca ninguém foi acusado de ser racista. É quase uma perseguição pessoal. Foi um pretexto que agarraram para me criarem problemas. Não quero sobrestimar a importância da minha pessoa, mas tenho a sensação de que foi um ato de perseguição pessoal.

Porquê essa implicância, o que têm especificamente contra si?

As minhas opiniões não são politicamente corretas. Nunca foram. E o politicamente correto é verdadeiramente uma praga, um dos piores contributos que a esquerda e a extrema-esquerda deram no Ocidente para minar a liberdade democrática. Vou contar-lhe uma história que ilumina o que se passa. Aqui há pouco tempo tive oportunidade de jantar com uma reitora de uma universidade americana. E ela disse-me isto: ‘Sempre que convido alguém que não é politicamente correto para fazer uma conferência à universidade, requisito oficialmente a polícia para proteger esse convidado’. Já viu o que é isto?! Andamos sempre atrasados, mas não me espantaria que qualquer dia chegássemos a este ponto.

Existem outras formas de coação…

Nunca fui a uma rede social nem faço ideia nenhuma de como lá se vai – não sei se é a pé, de bicicleta… nunca fui. Mas às vezes dizem-me: ‘Foste insultada’. Não quero saber. Não quero deixar-me condicionar pelo processo que me puseram no ano passado e sobretudo não quero perder a minha liberdade. Mas que ela ficou um bocadinho amachucada, ficou.

O diretor do Público escreveu na altura um editorial que era uma espécie de ato de contrição. Esperava mais solidariedade?

O Manuel Carvalho escreveu esse editorial um bocado ambíguo – para dizer o mínimo – mas a verdade é que me mandou um mail a dizer que enquanto ele fosse diretor do Público as páginas do jornal estariam sempre abertas para os meus textos.

Há quem lhe chame fascista por causa das suas posições?

Nunca me chamaram fascista. Mas gozam um bocado – até eu deixar. Consideram-me uma reacionária. Fascista nunca me chamaram, mas reacionária sim.

E conservadora, considera-se?

Considero.

Vi por aí vários livros do Roger Scruton, que definia o conservador como aquele que acha que há coisas do passado que merecem ser preservadas.

Sim, o ‘papa’ do conservadorismo. Considero-me uma conservadora liberal, bem liberal.

Isso não são termos opostos?

Não vejo contradição nenhuma. Quando digo que sou conservadora não quer dizer que a vida pare, ou que as sociedades fiquem estagnadas. O que quero dizer é que detesto mudanças revolucionárias, dão sempre mau resultado. Em vez de revoluções é melhor ir fazendo reformas bem pensadas e aplicadas como deve ser. Basicamente sou anti-revolucionária. Horroriza-me. O Edmund Burke, que se tornou um dos pais do conservadorismo, em 1780 e picos, deu uma imagem perfeita na Câmara dos Comuns. Você tem uma casaca. A alturas tantas, a casaca começa a ficar com os bolsos coçados. Você manda pôr uns bolsos novos. Depois as mangas já estão um bocado velhotas – e manda pôr umas mangas novas. Depois as abas também começam a ficar gastas… Manda pôr umas abas novas. E chega ao fim e tem uma casaca nova sem ter perdido a antiga. Não creio que seja possível fazer isto em todos os domínios, nem pouco mais ou menos, mas li demasiado sobre a Revolução Francesa e sobre a Revolução Soviética para ser capaz sequer de compreender uma revolução.

E nos gostos, nos hábitos, também é conservadora?

Não! [Faz uma pausa e olha em redor] A minha casa é um bocadinho conservadora, não é?

Tem alguns móveis antigos…

Herdei uma quantidade de móveis e só não herdei mais porque não tinha onde os pôr. É a tal coisa: preservar o que merece ser preservado. Mas sou muito liberal em matérias de costumes, acho que ninguém tem nada com isso. Tudo o que é vida privada é sagrado, o Estado não tem nada que lá meter o bedelho.

Dizia-me no início desta conversa que sempre que Portugal teve grandes influxos de dinheiro, fosse do açúcar, fosse das especiarias, fosse do ouro e dos diamantes do Brasil…

E das madeiras preciosas.

…houve quem enriquecesse, mas nunca conseguimos passar da cepa torta.

Os ricos continuavam ricos e os pobres continuavam pobres.

Agora, ao que tudo indica, vamos ter mais um influxo grande.

Pois vamos, o que é perigoso. Necessário, mas perigoso. A ideia que tenho é que essa bazuca, como lhe chama o nosso primeiro-ministro, vai ser mais um meio de evitarmos reformas que seriam absolutamente indispensáveis para continuarmos a substituir como nação…

Para sermos sustentáveis?

Para isso era preciso fazerem muitas reformas. Mas suspeito que metade do dinheiro vai para subsídios disto e daquilo, não vai ser investido de nenhuma maneira produtiva, e que no fim Portugal vai ficar exatamente na mesma. É um bocadinho triste, não é?

Vejo-a um bocado pessimista.

Vejo sempre o copo meio vazio. De facto propendo para aí. Mas não vejo razões para optimismo.

Essa falta de esperança, além do seu pessimismo intrínseco, também decorre da falta de uma alternativa?

Acho que o Ventura está a criar essa alternativa. Sei que isto é chocante, que as pessoas vão dizer: ‘Ela é de extrema-direita, gosta do Ventura!’. Não gosto do Ventura nem desgosto do Ventura, é-me indiferente. Acho é que o Ventura pode ser útil. E que um dia ele próprio pode liderar uma direita clássica, democrática e liberal. É uma possibilidade teórica, ou um wishful thinking – eu gostaria que fosse assim.

Quando o homem chegou à Lua ou quando caiu o muro de Berlim, as pessoas tinham a consciência de que estavam a assistir a um momento histórico. Entretanto a palavra banalizou-se e hoje ouvimos nas notícias ‘histórico’ a torto e a direito. Na sua perspetiva de historiadora, que vê as coisas para lá da espuma do imediato, o que acha do momento civilizacional que vivemos? É mesmo histórico?

Acho que sim. Estamos a viver um momento histórico. Nada ficará como dantes.

Por causa da pandemia ou a pandemia só veio acelerar as coisas?

Por causa da pandemia. Foi uma coisa muito brusca. De qualquer maneira não sabemos como vai ser o mundo do trabalho amanhã. Possivelmente muita gente continuará a trabalhar de casa, em vez de ir para o emprego, sobretudo em funções administrativas e coisa desse género. Se calhar muita gente vai continuar com o sistema do take-away. Para usar uma linguagem marxista, acho que as relações sociais de produção se vão alterar. Se para melhor, se para pior, não faço ideia.

Dizem que a palavra crise em chinês tem um caracter que significa perigo e outro que significa oportunidade. Não acha que pode ser uma oportunidade para mudar coisas que precisavam de ser mudadas?

Teoricamente, haveria muitas oportunidades. Na prática não acredito que a gente as vá explorar. O país não tem partidos suficientemente independentes e fortes para serem capazes de levar reformas profundas por diante.

No final de fevereiro fez um ano que morreu Vasco Pulido Valente, com quem trabalhou e de quem foi amiga. Sente falta dele?

Sinto, muita. Nos últimos anos deixámos de nos dar, mas devo imenso ao Vasco e acho que ele faz muita falta a Portugal.

Embora se tivesse tornado muito amargo. Adotou uma atitude de desistência, uma espécie de niilismo.

Por aí. Ele era super-inteligente, um personagem muito complexo, tinha uma cultura extraordinária, mas dispersou-se e não foi o historiador que podia ter sido. Ele é que devia ter sido o historiador do século XIX – como ele não foi, acabei por ser eu. Durante anos, almoçávamos ou jantávamos todas as semanas, falávamos muito. E foi lendo os livros dele que percebi como se escrevia história. Era divertido e completamente desassombrado.

E não tinha problemas em ofender quem quer que fosse.

Já contei esta história. Nós começámos por almoçar na Isaura. A alturas tantas fizemos um upgrade e passámos para o Polícia. Depois fizemos um novo upgrade e passámos a ir para o Gambrinus. À medida que íamos tendo mais dinheiro íamos comendo melhor. Mas na fase ainda da Isaura, aqui na Avenida de Paris, estávamos a conversar, já não sei sobre quê, e eu disse-lhe: ‘Ó Vasco, conheces alguém que diga os seus defeitos? Mas os defeitos mesmo chatos, não é aqueles que não têm importância nenhuma’. E ele: ‘Conheço’. ‘Quem?’. ‘Eu’. ‘Tu?! Então diz lá um defeito grande teu’. E ele diz-me: ‘Sou mentiroso’. A dizer de si próprio ‘sou mentiroso’! Eu ficava fascinada. É preciso uma lata! Antes desta amargura final era divertidíssimo. Os comentários dele, as observações… Tenho saudades dele. Aliás já tinha há muito tempo.