Manual de expiação da culpa para o Homem Branco Heterossexual (HBH)

Seguindo as mais recentes correntes progressistas, este manual pretende libertar os HBH de culpas, traumas e neuroses, e ajudá-los a encontrar a plena felicidade.

por João Cerqueira
Escritor

Primeiro passo

Assuma a sua culpa! Assuma que pertence a uma maioria que desde o Cro-Magnon tiranizou as mulheres, os LGBT, os defensores do clima e dos animais, e as outras ‘raças’ – chegando a exterminar os pobres Neandertais. Poderá tentar argumentar que nasceu no século XX, que nunca escravizou ninguém, que sempre tratou bem as mulheres, os LGBT e os animais, que plantou uma árvore, que não come carne, adora tofu e separa o lixo,  que até correu uma maratona por uma causa solidária. E eu respondo-lhe que o Hitler era vegetariano, o Estaline estudou para ser padre e a Martha Goebels  era filha de um judeu – e depois foi o que se viu. Logo, os HBH, e algumas mulheres brancas, são mestres no disfarce. Por outro lado, se os próprios HBH defendem ser absurdo apagar a História, reclamando com orgulho a epopeia dos Descobrimentos, então, para serem coerentes, devem também assumir a herança de violência contra os povos colonizados.

 Logo, não se arme em esperto: dê-se por culpado e peça desculpa. E, se quiser inspirar-se num dos raros episódios dignos da História, faça como  Egas Moniz: ponha uma corda ao pescoço.

Segundo passo
Tenha vergonha de gostar de mulheres! Bom, de gostar apenas de mulheres. Se está convencido de que só se sente atraído pelo sexo feminino, então lamento dizer-lhe que o enganaram bem (os seus pais). Como a ciência já demonstrou, a identidade sexual é uma construção social e familiar. Ou seja, os meninos são educados para gostarem de meninas e vice-versa. Felizmente, alguns e algumas, heroicamente, resistem a tal imposição. Por isso caro senhor, chegou a altura de descobrir a sua verdadeira identidade sexual – que pessoas bem-intencionadas, mas ignorantes, lhe roubaram. Não estou a afirmar que se deve tornar gay. Deve, sim, abrir a mente (e o corpo) a novas experiências. Além de ter relações com mulheres deve, pelo menos uma vez, experimentar dormir com alguém do seu sexo. Não custa nada, ou só custa a primeira vez, e a segunda – segundo dizem. E se a ideia não o seduz, ou mesmo lhe causa vómitos, pense na beleza das estátuas da Grécia Antiga, no David de Miguel Ângelo ou até no Desterrado de Soares dos Reis. Quem poderá resistir àqueles corpos?

Mas, se realmente quer libertar-se dessa educação patriarcal, homofóbica e racista, então dê o passo final para a sua libertação sexual. Ame os bichos. Mas vá mais longe do que Santo António, o padroeiro dos animais, e não se limite a dar sermões aos peixes. Com o devido consentimento dos próprios, estenda o seu afecto ao reino animal tendo sexo com o seu Pitbull, a sua gata siamesa ou, para quem gosta de adrenalina e tem seguro contra todos os riscos, sexo com um daqueles burros de Trás-os-Montes que estão em risco de extinção. Solte a besta que há em si. Rosne, dê coices, arranhe. E, para criar um clima romântico, acenda velinhas e ponha a música de Lou Reed Walk on the wild side.

Último passo, apenas para quem venceu os dois primeiros.

Caro senhor, parabéns! Conseguiu! Neste momento já não é um desgraçado dum HBH, um pobre diabo que só gostava de mulheres, um analfabeto sexual. Neste momento é um ser humano pleno, feliz e holístico que expurgou as toxinas culturais que tanto mal lhe fizeram. O mundo é agora um lugar melhor e renasce a esperança para o futuro. Portanto, vá por aí e espalhe a boa nova. Converta, liberte e resgate do sofrimento essas almas brancas perdidas que não encontraram a sua estrada de Damasco.

Pela minha parte, invejo-o, mas infelizmente não o posso ajudar. Porque, por muito que tente, nem sequer o primeiro passo consigo dar, quanto mais o resto.