A porta sem tranca

Depois da Holanda, da Bélgica, da Suíça e do Luxemburgo, foi a vez da vizinha Espanha legalizar a eutanásia, precisamente na mesma semana em que, em Portugal, o Tribunal Constitucional (TC) declarou desconformes à Constituição várias normas do diploma que pretende despenalizar a morte medicamente assistida.

Depois da Holanda, da Bélgica, da Suíça e do Luxemburgo, foi a vez da vizinha Espanha legalizar a eutanásia, precisamente na mesma semana em que, em Portugal, o Tribunal Constitucional (TC) declarou desconformes à Constituição várias normas do diploma que pretende despenalizar a morte medicamente assistida.

Não obstante a declaração de inconstitucionalidade, cantaram de galo os defensores da eutanásia com as leituras mais imediatistas do acórdão proferido esta semana pelo TC, regozijando-se com o pressuposto de que, apesar do reconhecimento da inconstitucionalidade de quatro das normas às quais o Presidente Marcelo suscitara reservas, a maioria dos juízes conselheiros antecipou a pronúncia pela conformidade da morte medicamente assistida em casos extremos – e a definir pela lei que visará ultrapassar os obstáculos agora erguidos pelo TC – com o princípio da inviolabilidade da vida humana consagrado na Constituição.

Isto porque, em sede de declaração de voto, apenas quatro dos doze juízes conselheiros (Maria José Rangel de Mesquita, Maria de Fátima Mata Mouros, Lino Rodrigues Ribeiro e José António Teles Pereira) divergiram do entendimento expresso no acórdão, pese embora a questão (inteligentemente) não tenha sido suscitada pelo Presidente constitucionalista.

Pretendendo os defensores da eutanásia que este acórdão dispensa nova e futura pronúncia do TC, arrumando definitivamente a questão.

Com efeito, pode ler-se no acórdão que «[a] vulnerabilidade de uma pessoa originada pela situação de grande sofrimento em que se encontre pode criar uma tensão relativamente ao artigo 24.º, n.º 1, da Constituição devido à vontade livre e consciente de não querer continuar a viver em tais circunstâncias. E a uma tal tensão, a proteção absoluta e sem exceções da vida humana não permite dar uma resposta satisfatória, pois tende a impor um sacrifício da autonomia individual contrário à dignidade da pessoa que sofre, convertendo o seu direito a viver num dever de cumprimento penoso. Por isso mesmo, o legislador democrático não está impedido, por razões de constitucionalidade absolutas ou definitivas, de regular a antecipação da morte medicamente assistida».

Ora, dizem os quatro juízes conselheiros subscritores da declaração de voto conjunta: «A admissão da eutanásia – e particularmente a admissão nestes termos – conduz inelutavelmente ao seguinte encadeamento de asserções caracterizadoras de um novo paradigma de ‘convivência’ com o princípio da inviolabilidade da vida humana decorrente do artigo 24.º, n.º 1 da CRP: (A) O direito à vida inclui o direito de não ser morto; (B) Esse direito envolve, todavia, enquanto opções protegidas do próprio titular, a opção de viver e a opção de morrer, com as quais (no caso da segunda opção, nas condições fixadas pelo Estado) os outros não podem legitimamente interferir; (C) Assim, se alguém decide morrer, está a renunciar, no quadro das suas opções válidas, ao direito à vida. E, ao renunciar a esse seu direito – este é o problema central criado pelo Decreto n.º 109/XIV –, está a libertar outros (especificamente está a libertar o Estado) do dever de não o matar. E o Estado está a afastar a proibição/a punibilidade de matar nesse caso».

«Afastando-se decisivamente daquele paradigma, entendem os subscritores deste voto existirem matérias que estão ‘fora do alcance de maiorias’ (beyond the reach of majorities), sendo esse o caso da legalização da eutanásia, não dispondo o legislador […] de credencial constitucional para esse efeito».

Obviamente, a discussão jurídica, filosófica, científica e ética vai muito para além do que o extenso acórdão e as declarações de voto encerram e – por maioria de razão – da argumentação aduzida neste ponto.

Mas este é ‘o ponto’: a Constituição consagra a inviolabilidade da vida humana, ponto de exclamação.

O acórdão desta semana, se não pode dizer-se que abre a porta à legalização da eutanásia – ao contrário do que se apressaram a dizer os defensores do suicídio assistido e da morte medicamente assistida –, a verdade é que tira-lhe a tranca.

A porta ainda está fechada. Mas deixou de estar trancada.

E se esta porta chegar a abrir-se, dificilmente voltará a fechar-se.

Nessa altura, a vida, porque bem disponível e já não inviolável, deixará definitivamente de poder ser considerada um bem supremo.

E – se e quando assim for – o que nos restará?

Esta sociedade, à beira do abismo, insiste em não querer recuar.