Quanta poesia cabe num golo?

Houve quem quisesse demonstrar que Quintana nunca partira ou partirá. O tal golo vitorioso a cinco segundos do final foi marcado por Rui Silva, cujo braço que eleva a mão que remata a bola exibe uma tatuagem recente de Quintana. GOLO! Rapidamente, Rui olha para cima e dedica-o – julgo – ao seu amigo. Ora,…

por Henrique Pinto de Mesquita

No passado dia 14 de março, a Seleção Nacional de Andebol bateu a francesa por 29-28, apurando-se assim – pela primeira vez na sua história – para os Jogos Olímpicos. A vitória foi selada por um golo nos últimos cinco segundos. Eu, que aqui me confesso, vi o vídeo em loop pela madrugada de segunda-feira adentro. A típica reviravolta ao cair do pano que cimenta as razões pelas quais o desporto é, muitas vezes, mais epopeico do que uma epopeia. Contudo, desta vez foi-se além do típico golo ao cair do pano: foi-se à poesia, foi-se à metafísica. Foi-se – e fez-se – à história.

Alfredo Quintana, guarda-redes da equipa de andebol do (meu) FCP e da Seleção Nacional, morrera cerca de duas semanas antes do jogo na sequência de uma paragem cardiorrespiratória durante um treino. País em choque, desporto em choque, e uma ou outra pessoa há de ter acordado para a loucura que é a efemeridade da vida. Quintana faria 33 anos no sábado em que esta crónica foi publicada. Pobre Quintana e pobre família. Sortudos os que continuamos.

Acontece que, entre os últimos, houve quem quisesse demonstrar que Quintana nunca partira ou partirá. O tal golo vitorioso a cinco segundos do final foi marcado por Rui Silva, cujo braço que eleva a mão que remata a bola exibe uma tatuagem recente de Quintana. GOLO! Rapidamente, Rui olha para cima e dedica-o – julgo – ao seu amigo. Ora, se já antes do jogo se falava de uma presença espiritual de Quintana, como havemos nós de reagir ao sucedido naqueles segundos finais? É algo violentamente bonito. Quanta poesia cabe neste golo? É um canto d’Os Lusíadas que se materializa. Pertence mais ao mundo mitológico do que ao real. Uma imanência num campo de andebol.

Saiam da caixa e pensem comigo: guarda-redes de uma Seleção morre nas vésperas de um jogo importantíssimo desta; amigo e colega de clube e Seleção decide homenageá-lo com uma tatuagem no braço; o mesmo braço marca um golo no segundo final e conquista um feito histórico para o país; dedicam a vitória ao que partira. Se isto não é poesia, não sei o que será. Se isto não vos abana a metafísica, não sei o que abanará. Se isto não vos estilhaça o ennui, não sei o que estilhaçará. Enfim: se em 1543 foi grande a epopeia que nos levou ao Japão, em 2021 não foi diferente.

E aqueles, que por obras
valerosas
Se vão da lei da morte
libertando;

E se Quintana já se havia libertado da lei da morte por esta chegar-lhe num pico de carreira, chocando um país inteiro e sobrevivendo ao esquecimento que a vida prega aos vivos, Rui Silva fá-lo também: com uma obra em forma de golo, com um golo em forma de poesia. Desta forma tão mágica quanto heroica, Rui Silva e Quintana dão nova vida à lírica camoniana, carregando um país às costas – ou no braço direito – e escrevendo uma das estrofes mais bonitas do desporto em Portugal.

Guimarães,

17 de março de 2021