Contra as comemorações

As comemorações da revolução vão celebrar o 25 de Abril que conquistou a liberdade mas colocou boa parte do poder nas mãos do PCP, ou o 25 de Novembro que no dizer da esquerda repôs a ‘ordem burguesa’?  É que Ramalho Eanes é visto como um homem de Novembro e não de Abril…

Foi com estupefação que li as notícias sobre a nomeação de uma comissão para organizar as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril. Porque faltam dois anos e meio para o acontecimento e porque a comissão se estende por dois anos para além dele.

E, depois, não se trata de uma única pessoa. É essa pessoa – e mais um vice, mais secretários, mais adjuntos, mais assessores, mais um motorista, etc. Doze estimáveis pessoas que durante cinco longos anos se vão dedicar à piedosa tarefa de glorificar a revolução.

Note-se que não está em causa, para mim, o nome do comissário. Apesar de ser militante do PS – e não ser um independente, como seria mais adequado –, é um homem esperto e que procura pensar pela sua própria cabeça, assumindo por vezes posições divergentes em relação à linha oficial do partido. Ainda agora, no caso da CML, defendeu que Fernando Medina deveria ter assumido a ‘responsabilidade política’ pelo que aconteceu, e discordou frontalmente da intervenção de António Costa sobre o assunto.

Não está, portanto, em causa a pessoa de Pedro Adão e Silva.

Nem está em causa a pessoa de António Ramalho Eanes, que preside superiormente às comemorações.

Conheço-o há muitos anos, tenho por ele um grande respeito e estima, devo-lhe honrosos convites (um dos quais, na sua primeira Presidência, para escrever a história do Palácio de Belém), e é uma figura incontestável.

Acontece apenas que sou avesso a comemorações.

Como escreveu certeiramente o meu filho José no Inevitável, nestas celebrações do 25 de Abril não se vai comemorar a liberdade, nem sequer a democracia – vai celebrar-se um regime. São estes políticos, no fundo, que vão celebrar-se a si próprios. Vão elogiar-se a si próprios. Vão condecorar-se a si próprios. E isso não tem interesse nenhum.

As comemorações de atos revolucionários – e não apenas deste mas de todos – têm um denominador comum: glorificam o regime nascido da revolução e diabolizam o regime que ela derrubou. Um tem todas as virtudes, o outro tinha todos os defeitos. Um é branco e o outro era preto. Ora, as coisas não são assim. Nem o 25 de Abril só trouxe coisas boas nem o Estado Novo só tinha coisas más.

O 25 de Abril restaurou as liberdades e trouxe a democracia, pôs fim à guerra colonial, aproximou Portugal da Europa, contribuiu para uma maior descentralização do poder e combateu o isolamento do interior. As pessoas, de um modo geral, vivem melhor.

Mas também teve aspetos negativos. Destruiu milhares de empresas, fez nacionalizações selvagens e permitiu uma reforma agrária atrabiliária; perseguiu pessoas que não tinham praticado nenhum crime e foram obrigadas a emigrar; cometeu erros na descolonização, contribuindo para o drama dos retornados; possibilitou o assalto do PCP ao aparelho do Estado e a partidarização das Forças Armadas, instalando a indisciplina nos quartéis.

Isto é objetivo.

Ora, nas comemorações falar-se-á destes aspetos? Pressinto que não.

E depois há um problema sensível a resolver.

O presidente das comemorações, António Ramalho Eanes, não é visto como um homem do 25 de Abril mas sim como um militar do 25 de Novembro. É o próprio ‘símbolo’ do 25 de Novembro. Do 25 de Abril, o símbolo é Otelo Saraiva de Carvalho. Perante isto, fica a dúvida: o que se vai comemorar – o 25 de Abril, o 25 de Novembro ou ambos?

Não se trata de um jogo de palavras.

Há apoiantes do 25 de Abril que são contra o 25 de Novembro – logo à cabeça, os militantes comunistas, contra os quais o 25 de Novembro em boa parte foi feito, e a extrema-esquerda, que entre o 25 de Abril de 1974 e o 25 de Novembro de 1975 dominou as ruas, instalou o caos nos quartéis, pôs Portugal à beira da guerra-civil.

Mas também há apoiantes do 25 de Novembro que são contra o 25 de Abril, ou seja, que no 25 de Novembro viram a reposição da ordem, a hipótese de reconstrução do Estado, o afastamento do PCP e da extrema-esquerda da área do poder.

Portanto, repito: o que se vai comemorar em 2024: o 25 de Abril que conquistou a liberdade mas colocou boa parte do poder nas mãos do PCP, ou o 25 de Novembro que no dizer da esquerda repôs a ‘ordem burguesa’?

Tenho curiosidade em saber como a comissão vai resolver este imbróglio, tendo em conta que a figura de Eanes remete para Novembro e não para Abril.

Olhar para o passado é interessante quando é feito com olhos de historiador e não com olhos de celebrante.

É enriquecedor perceber o passado, ver as suas zonas de sombra e de luz, as suas glórias e os seus fracassos; tem pouco interesse olhar para ele com óculos de quem quer encontrar heróis e vilões, de quem trocou a independência pela militância e o espírito do historiador pelo espírito do panfletário.

Pelo que conheço de Pedro Adão e Silva – que é muito pouco – admito que tivesse independência mental para olhar para o 25 de Abril (e o 25 de Novembro, já agora) com um olhar isento, vendo os ganhos e as perdas, os prós e os contras, as virtudes e os defeitos.

Mas duvido que a engrenagem em que está metido lhe permita essa isenção.

A comemoração do 25 de Abril vai, portanto, ser um panegírico. Um rosário de elogios. Um monótono alinhamento de louvores. A glorificação de um regime feita pelos seus protagonistas ou pelos seus diletos descendentes.

Ora, elogio em boca própria é vitupério…