Covid-19. Governo alarga crime de desobediência

Governo incluiu violação da proibição de circular depois das 23h e para fora da AML nos atos passíveis de participação por crime de desobediência. Ordem dos Advogados fala de ‘eufemismo para recolher obrigatório’, sem base constitucional legal. E volta a defender figura dos recursos de amparo ao Tribunal Constitucional.

Covid-19. Governo alarga crime de desobediência

Não são só as medidas que apertam este fim de semana nos concelhos de risco elevado e muito elevado: não cumprir as novas regras pode ser alvo de uma participação por crime de desobediência. O Governo alargou o âmbito das participações e ao que o Nascer do SOL apurou, as instruções são para fiscalizações nos acessos e, perante grandes ajuntamentos, começar pela ordem para dispersar. Mas quem não cumprir pode ser detido e a constitucionalidade das decisões do Governo é mais uma vez questionada.  No terreno, em plena época de férias, antecipa-se outro problema. A polícia municipal, que intervém no patrulhamento local, não tem competência para intervir, tendo de chamar PSP ou GNR.

Na quinta-feira, a ministra do Estado e da Presidência anunciou a limitação de circular a partir das 23h, para já imposta em 45 municípios, que vem juntar-se à proibição de circular de e para a Área Metropolitana de Lisboa ao fim de semana sem um certificado digital covid-19.

Não se falou então de sanções. Mariana Vieira da Silva sublinhou que se trata de uma medida para evitar ajuntamentos noturnos, que o Governo ter «condições de tomar». A resolução publicada em Diário da República acabou no entanto por ir mais longe do que nas últimas semanas: passou a incluir não só a regra da AML, aplicada pelo terceiro fim de semana consecutivo, mas também a proibição de circulação noturna nos atos cuja violação passam a ser passíveis de participação por crime de desobediência, punível com uma pena até um ano de prisão ou 180 dias de multa. Além destes, continuam a ser passíveis de participação pelo crime de desobediência a violação do confinamento obrigatório, das regras impostas para casamentos e batizados e o não encerramento às horas definidas ou das instalações que têm de fechar quando um concelho passa a risco elevado, como casinos, parques aquáticos, spas ou praças de touros.

No caso da limitação à circulação à noite, decidida esta semana, apesar de a formulação da resolução ser considerada ambígua por alguns constitucionalistas – determina que os cidadãos devem devem abster-se de circular em espaços e vias públicas (…) e permanecer no domicílio – a leitura do bastonário da Ordem dos Advogados é que com o alargamento do crime de desobediência, «fica claríssimo que é um dever que pode ser sancionado criminalmente» e que não se pode falar de uma «mera recomendação».

Para Luís Menezes Leitão, «substancialmente» está em causa um recolher obrigatório, e as formulações não passam de um «eufemismo», diz ao Nascer do SOL, considerando que mais uma vez a decisão não tem base constitucional legal: por um lado, porque não pode haver limitações a direitos fundamentais fora do estado de emergência e por, outro, porque a tipificação de novos crimes compete à Assembleia da República e não ao Governo. «Se a Ordem tivesse a competência de pedir a fiscalização do Tribunal Constitucional, já o teria feito. No Brasil tem, cá não. Só se houvesse uma intervenção das entidades com competência é que o TC se pronunciaria, que são o PR que já disse que não vê problema nenhum, o primeiro-ministro ou o presidente da Assembleia da Republica, a procuradora-geral da República ou a Provedora da Justiça. Se nenhuma entidade suscita, não chega ao Tribunal Constitucional, a não ser que haja uma intervenção de um particular, mas aí só chega ao TC num recurso de ultima instância», explica. Menezes Leitão lembra que já houve casos em que os tribunais consideram que o crime de desobediência como vem sendo aplicado é ferido de inconstitucionalidade orgânica. Foi a decisão do Tribunal de Sintra, em março, quando aceitou o um pedido de libertação imediata ‘habeas corpus’ de uma advogada a quem as autoridades de saúde obrigaram a ficar 14 dias em isolamento profilático em casa, quando regressava do Brasil. O bastonário lembra ainda o caso das quarentenas preventivas nos Açores, que viriam a ser consideradas inconstitucionais pelo TC, lembrando que a Ordem já defendeu no passado a introdução da «recursos de amparo» na ordem jurídica portuguesa, uma figura que permitiria aos cidadãos fazer ‘queixas de constitucionalidade’ diretamente ao Tribunal Constitucional. Sem estes recursos ou vontade de clarificar o assunto, a indefinição permanece. «O TC não tem poder de iniciativa», resume.

 

E depois o juiz decide

Nos últimos meses, encontram-se casos levados até aos tribunais superiores. Em novembro do ano passado, o Tribunal da Relação de Guimarães determinou que a violação do confinamento obrigatório não podia constituir crime de desobediência. No acórdão, de 9 de novembro, pode ler-se que a criação de tipos de ilícitos criminais é, «nos termos do art. 165 n.º 1 c) da CRP, matéria da reserva relativa da Assembleia da República ( AR), podendo competir também ao Governo, mas apenas com autorização da AR». Em causa estava na altura a violação do recolhimento domiciliário durante um período de vigência do estado de emergência. Os juízes consideraram que se o agente da GNR tivesse advertido o queixoso de que se persistisse em não retornar ao domicilio poderia incorrer na prática do crime de desobediência, seria diferente mas considerar o simples facto de o indivíduo estar ausente do domicílio crime de desobediência «não é admissível», apreciação que resultou em absolvição. Se já houve outras decisões neste mesmo sentido, num acórdão recente da Relação de Lisboa, consultado pelo Nascer do SOL, um recurso de uma condenação foi considerado improcedente: «É manifesto que o recorrente não tem razão. E desde logo porque não foi condenado por estar na rua, mas porque, advertido pela PSP que não poderia estar na rua devido ao dever geral de recolhimento e não se verificando qualquer das exceções legais, sob pena de incorrer na prática de crime de desobediência, o arguido se recursou a acatar a ordem legítima da autoridade», fundamentaram os juízes.

O Governo anunciou esta semana a criação de uma comissão técnica para revisão do quadro jurídico de resposta a pandemias, mas 48 horas depois as medidas voltaram a ser reforçadas com o atual enquadramento. E sem estado de emergência, que o Presidente da República afasta, não se pronunciando sobre a constitucionalidade das novas medidas, que descreveu como um caminho alternativo ao confinamento. Em outubro de 2020, defendeu que eram uma recomendação.

Com a situação epidemiológica a agravar-se, na próxima semana a proibição de circular a partir das 23h poderá ser estendida a mais 21 concelhos que esta semana ficaram em alerta. Até aqui, as medidas para conter o avanço da 4.ª vaga têm tido pouco impacto na trajetória de aumento de diagnósticos, que esta semana acelerou também no Norte. Os especialistas ouvidos pelo Nascer do SOL admitem que a situação não terá uma resolução rápida. Só com medidas de confinamento é que o país conseguiu colocar o R abaixo de 1, pelo que os especialistas apontam para que os casos continuem a aumentar, mesmo que mais lentamente, até que se o efeito das vacinas ou maior adesão a testagem ajudem a achatar a curva. A bomba atómica do confinamento é encarada como último recurso, caso houvesse uma pressão desmedida nos hospitais ou um aumento de óbitos ao nível dos piores meses da pandemia mas ideias como aplicar um confinamento curto, circuit-breaker, podem vir a ganhar força, dependendo da evolução. A epidemia a continua a crescer em todo o país, agora com mais força no Norte e no Algarve, onde o RT está acima de 1,20.