Os putos que comiam terra no recreio

As mãos dos putos andavam cheias de terra e atormentavam qualquer pessoa que se aproximasse. 

Tu não és tu quando tens fome. Mas serás tu tu quando estás FeLiZ? Ou serás tu mais tu quando estás triste? Ou será que tu nunca és tu? Ou será que tu nem sequer és? Jogar à bola com ontologia nunca foi tão divertido. Somos, na vida, o que os putos que comiam terra eram no recreio: acinzentados, cheios de pó e evitáveis na hora de brincar ou conversar.

As mãos dos putos andavam cheias de terra e atormentavam qualquer pessoa que se aproximasse. A nossa cabeça anda cheia de terra e atormenta qualquer pessoa que se aproxime: «O gajo é meio estranho» – diz a Tota que estuda no IPAM e acha que terá algo a acrescentar ao marketing para além da sua futilidade. Somos os putos que comiam terra no recreio.

Agora comemos em adultos, através de pensamentos escabrosos. A tristeza apresenta-se-nos num Cubo Cinzento Austero e Maciço que contém um letreiro a dizer: T R I S T E Z A. Olhamo-lo e facilmente reconhecemos: «Oh, se não é a Senhora Tristeza». Sentimos-lhe as arestas afiadas e reconhecemos a agudeza dos seus vértices.

Não obstante o seu tamanho – que tantas vezes nos rebenta as costuras da alma – conseguimos segurá-la na mão e não ter dúvidas que se trata de… tristeza. Já a felicidade, essa cabrita esguia, é absolutamente incapturável. Ela existe, atenção!

Só que nem a cauda lhe apanhamos. Líquida, torna-se impossível segurar: «Terá isto sido felicidade?» – perguntamo-nos após termos sido ‘felizes’. Após! – pois parece que no momento em que a identificamos ela deixa de existir. Como água e azeite, felicidade e consciência não se misturam.

Sempre que estamos felizes e nos consciencializamos disso, a consciência esfaqueia a felicidade e prostra-a na mesa das garrafas de gin. Mas atenção, não a todos: apenas àqueles que comiam terra no recreio. Somos os putos que comiam terra no recreio. 

Agora comemos em adultos – e não nos mata a fome. Quando faminta, uma pessoa geralmente está triste e, segundo a Snickers, não é ela própria. Ou seja, considerando que quando temos fome estamos tristes, mas que, por outro lado, não somos nós próprios, quererá com isto a Snickers fazer um statement ontológico de que a tristeza não pertence à natureza humana? Tudo indica que sim… (afinal, toda a gente sabe que contestar os cânones da metafísica foi sempre o objetivo deste perigoso chocolate).

Contudo, eu, um confesso come-terra e jamais um come-snickers, não só discordo como acredito no seu contrário: a tristeza é o mais profundo elo de ligação à nossa alma e, por isso, imprescindível ao conhecimento e crescimento pessoal. (Por isso, Tota, em vez de fazer uma Viagem de Autodescoberta à Índia, devia era passar um ano em casa com vertigens existenciais – verá que é mais barato e que ficará a conhecer-se supê melhor).

Só na tristeza insuportável conseguimos arranhar as paredes da nossa alma ou sentir o seu hálito. Só quando mergulhados em agonia conhecemos o nosso mais profundo ser. E apenas quando voltamos à tona nos apercebemos do significado e da relevância que esse sofrimento teve. Não teria feito sentido a nossa vida não ter passado por tão negras estações.

Nessas estações, encontramos outros come-terra: e há muita empatia – afinal, é maravilhoso quando alguém entende a nossa dor. Mais maravilhoso é quando um come-terra-master se propõe a ajudar um come-terra-mini na travessia do túnel da angústia.

Depois de tantas estações, depois de tanto desesperar, depois de tanto chorar, finalmente se encontra luz e sai-se na estação com as flores mais bonitas do planeta – que, sem terra, não teriam crescido. Por isso – por acreditar na necessidade de comer terra para nos tornarmos flores – brado: Comedores de Terra de todo o mundo, Uni-vos!