Os comedores de livros

O que podem ter em comum um famoso intelectual do século XII e uns bichinhos cinzentos, mais pequenos que formigas?

Pierre Le Mangeur (1100-1173), Petrus Comestor na versão latina, foi um homem da Igreja e intelectual francês do século XII, autor de uma História Eclesiástica que viria a ser uma espécie de best-seller da Idade Média, «um dos manuais de base para o ensino universitário no século XIII», como escreveu o medievalista Jacques Le Goff. Para essa obra, Comestor ‘digeriu’ todos os livros da Bíblia, além de tradições hebraicas que recolheu junto de sábios judeus.

A História Eclesiástica será hoje lembrada e estudada apenas por uns quantos especialistas, mas o nome do seu autor continua bem vivo entre a seita dos amantes da palavra impressa – Petrus devia o seu epíteto à «sólida reputação» (a expressão, mais uma vez, é de Le Goff) de «devorador de livros».

Hoje, porém, pretendo falar de outro tipo de devoradores de livros. Cinzentos, irritantes, nada intelectuais e mais pequenos que formigas: refiro-me, evidentemente, a insetos papirófagos, comedores de papel. Comecei a detetá-los aqui e ali, num móvel antigo, no computador, a despontar numa estante. Agora vejo-os a toda a hora, passeiam-se pelas capas, surgem sem aviso entre livros e até dentro deles. Se ao início pareciam tímidos, frágeis, inofensivos, agora estão cada vez mais gordos, mas também mais rápidos e descarados.

A proliferação é de tal ordem que eu, que literalmente não matava uma mosca (até aprimorei uma técnica para as expulsar de casa ilesas), tornei-me um carrasco sem remorso destes insetos minúsculos. Que história é essa de quererem comer os meus livros? Quando se trata de defender a minha biblioteca posso ser impiedoso…

Mas claro, no caso de uma praga as carnificinas pontuais não chegam, por isso orquestrei uma solução mais sistemática: declarei-lhes guerra química.

Antes de partir para as férias pulverizei todas as estantes, todos os recantos, todos os montes e montinhos de livros com dois tipos diferentes de sprays para matar insetos. Quando regressei a expectativa era moderada, pois tenho idade suficiente para saber que muitas vezes os organismos mais pequenos são os mais resistentes. E, de facto, parece haver menos, mas os papirófagos continuam por aí.

Antes de morrer, Petrus Comestor redigiu para si próprio um epitáfio bem-humorado:

‘Eu fui Pedro que a pedra cobre
dito o devorador, agora devorado.
Em vida ensinei e morto não deixo de ensinar
para que aqueles que me veem reduzido a cinzas digam:
O que nós somos ele o foi;
um dia nós seremos o que ele é aqui.’

Cá por casa, não consegui exterminar os minúsculos papirófagos. Aliás, acabo de ver um precisamente a passear-se por Os Intelectuais na Idade Média, a tal obra de Jacques Le Goff que fala de Petrus Comestor. O_relógio marca meio-dia e meia, – talvez aquelas saborosas páginas fossem o almoço do bicho. Olhem que é preciso um grande atrevimento para querer devorar o livro sobre o devorador de livros!