A maldição da pág. 300

Quebrar as regras não deu grandes resultados. Pela primeira vez nas férias não li um único livro completo.

H avendo nas férias mais tempo disponível para a leitura, a escolha dos livros que levamos na bagagem é sempre um momento solene e de gozo por antecipação. Podemos escolher qualquer coisa que nos apeteça, sem obrigações nem compromissos. Mas, para garantir que é mesmo uma leitura prazerosa, estabeleci três ou três regras que presidem a essa escolha: ser uma história com princípio, meio e fim; ser uma edição portuguesa; e o livro não ter notas de rodapé.

Este ano, pela primeira vez, quebrei todas essas regras. A primeira escolha recaiu sobre o volume I de O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico no Tempo de Filipe II, de Fernand Braudel (certamente não é uma história com princípio meio e fim, pois há o segundo volume, e tem profusas notas de rodapé); a segunda escolha, para servir de ‘escape’ caso a leitura de Braudel se revelasse demasiado densa, foi Dark Star Safari, de Paul Theroux, uma viagem por terra de uma ponta à outra de África, do Cairo à Cidade do Cabo (que obviamente não é em português, embora exista uma edição portuguesa).
O volume de Braudel, que queria ler há vinte anos mas nunca tinha tido coragem ou disponibilidade para ‘atacar’, revelou-se de uma riqueza prodigiosa. É um daqueles livros que nos enchem de admiração pelo autor (como foi possível reunir e organizar tanta informação? como pode um homem dominar tantas áreas de conhecimento? como lhe resta ainda capacidade para colocar novas hipóteses, para ser criativo?). Mas talvez ainda mais importante do que isso, abre-nos os olhos para coisas que não víamos antes.

Claro que toda esta informação e estes estímulos exigem algum esforço por parte do leitor. De modo que, a meio das férias, atingindo a página 300, decidi mudar para algo mais ligeiro – a segunda escolha – para retomar o clássico de Braudel mais tarde. Será um pouco o equivalente do princípio da rotação de culturas: para manter o nível de produtividade, cultiva-se outra plantação quando o solo começa a ficar cansado.

Depositava grandes esperanças (não totalmente correspondidas, devo dizer)no livro de Theroux. E, depois das páginas substanciais sobre o Mediterrâneo, foi agradável deparar-me com o tom descomplexado das suas peripécias por África.
Mas fiz as mal contas e, quando dei por mim, apesar do ritmo acelerado da leitura, percebi que não conseguia chegar ao fim da viagem. Andava pela página 300 quando chegou o dia de regressar a casa.
Foi a primeira vez em anos e anos em que quebrei as regras de ouro das leituras de férias – e tenho de concluir que o resultado não foi o melhor. Tudo somado, as 600 páginas lidas não perfazem sequer um livro completo. OMediterrâneo de Braudel parece dirigir-me olhares acusatórios… Se não consegui dar conta dele durante as férias, não estou muito bem a ver como conseguirei fazê-lo enquanto estiver a trabalhar.