Vão cancelar macacos

Na última década, o mundo das fadinhas frustradas da academia pós-moderna saiu da bolha para alimentar os autómatos que levam a vida demasiado a sério: aqueles que promovem a cancel culture no humor.

Podemos fazer piadas sobre tudo: sobre o bebé esquartejado aos pedacinhos para caber na caixa da Telepizza, sobre o bebé atropelado ou sobre o bebé violado. Horrível, eu sei. Continuemos. Podemos fazer piadas sobre, mesmo, tudo: homossexuais, africanos, indianos, judeus e gordos. Podemos, mesmo, fazer piadas sobre tudo: sobre a vontade de nos suicidarmos e sobre o desaparecimento da Maddie. Desde o século XIX que já não é pecado fazer piadas sobre Jesus e o seu amigo invisível. Um familiar pode morrer e, se a piada for boa, não há motivo para não ser feita. Vale tudo: as piadas são anárquicas. Agora: convém é terem piada. É, aliás, este o passaporte que as definirá. Se tiverem piada, rimo-nos e aceitamos. Se não tiverem piada, não nos rimos e aceitamos na mesma. Cancelar é que não.

Na última década, o mundo das fadinhas frustradas da academia pós-moderna saiu da bolha para alimentar os autómatos que levam a vida demasiado a sério: aqueles que promovem a cancel culture no humor. Pergunto-vos: porque não vão antes cancelar macacos? Quem é que não se ri das piadas sobre pedofilia do Louis C.K? Rir-me de piadas sobre pedofilia não faz de mim tolerante à pedofilia. Faz-me, apenas e só, tolerante a piadas sobre pedofilia. Rir-me de piadas sobre indianos não faz de mim intolerante aos indianos. Faz-me, apenas e só, tolerante a piadas sobre xenofobia. Não porque sou xenófobo, mas sim porque – surpreendam-se! – gosto mesmo muito de rir. Ou somos adultos e sabemos distinguir as coisas, ou não passamos de girinos intelectuais. Estais com medo de quê? De piadas? Não será já hora de voltar a sentar o ocidente na mesa dos adultos? Não foi para fugir deste jugo moral que matámos Deus? Não era suposto isto agora ser uma orgia de pensamento livre? Desde quando é que o ocidente se tornou num grande baby shower?

Deixem-me rir, pá. Piadas sobre machismo e homofobia? Sim, se tiverem piada. Piadas sobre pedofilia? Sim, se tiverem piada. Piadas sobre antissemitismo? Sim, se tiverem piada. Viremos a chapa. Discurso homofóbico e machista? Não. Discurso pró-pedofilia? 1968 já lá vai. Discurso antissemita? Redondamente não. Piadas sempre, discurso nunca.

Dir-me-ão: «e QuAl É a LiNhA qUe SePaRa?». A linha que separa, apesar de ténue, é traçável. O objetivo de uma piada é somente o de, naquele momento, fazer rir. Acaba ali. Já o objetivo de um discurso é passar uma ideia no intuito de lhe dar músculo. A piada é um ilhéu: está isolada, aconteceu ali, e desapareceu. O discurso é um grande continente: está ali, com terreno e raízes, e procura expandir-se. A piada quer uma gargalhada, o discurso quer um Lebensraum. A piada é uma goma, o discurso uma refeição. Um é uma brincadeira, outro não.

E insistem: «mAs Ao fAzEr UmA pIaDa EsTaMoS a PeRpEtUaR eStErEóTiPoS». Têm razão. Contudo, o humor tem mudado e já quase não se vê humoristas consagrados a fazer piadas ordinárias sobre grupos oprimidos. Apesar de concordar que piadas perpetuam estereótipos, isso não deve ser razão para cancelá-las. Naturalmente, as piadas com graça prevalecerão, enquanto as piadas sem, simplesmente, não. Quem é que em 2021 se ri de um piada sobre o Tibúrcio? (quem é que, aliás, se ria dessa treta em 2006?). Se achamos que uma piada não a tem, abandonemo-la e, se quisermos, critiquemos o seu autor. Mas só isso.

Quantas piadas terão ficado no papel por os seus autores terem medo de serem cancelados? Galhofar e maldizer faz parte da essência humana. Uns riem-se de umas coisas, outros de outras. Sejamos adultos e permitamos qualquer piada, mesmo que isso nos doa na medula. Libertemo-nos de seriedade e de moralismos. As piadas servem para fazer rir, tudo o resto é fumaça. Garantam, sobretudo, é que nenhuma gargalhada fique por dar – e não cancelem: ou, se preferirem, vão cancelar macacos.