Todos somos circunstâncias

Gouveia e Melo teve uma daquelas afirmações que nos fazem refletir a propósito das importâncias (relativas) das pessoas, ao relembrar que «todos somos circunstâncias».

1.Um destes dias, Gouveia e Melo teve uma daquelas afirmações que nos fazem refletir a propósito das importâncias (relativas) das pessoas, ao relembrar que «todos somos circunstâncias», corroborando a célebre frase popular dos «cemitérios estarem cheios de gente importante». No entanto, desta vez, dito por alguém a quem devemos toda a logística e planeamento da vacinação covid, tem outra relevância.

Instintivamente pensamos na classe política e nas importâncias que se auto-atribuem em Portugal. Os exemplos são diversos, surgindo em factos bem comezinhos, como não se saber a velocidade do carro do ministro Cabrita quando do acidente da A6 em que um operário faleceu. Ou, ainda, nas velocidades excessivas dos carros dos vários membros do Governo, sempre alegando situações de ‘urgência’ para justificar o injustificável.

Nas autarquias, também conhecemos todos exemplos de políticos que, ao chegarem aos cafés em interações populares, são atendidos à frente de toda a gente, sendo raros aqueles que esperam a vez para serem atendidos. O mais grave é que isso é (quase) considerado normal por quem está nas filas… Na Suécia, onde os políticos andam muitas vezes nos transportes públicos, isso seria impensável, sobretudo porque há uma consciência que ‘ser político’ é uma profissão como qualquer outra.

Fez bem Gouveia e Melo ao relembrar as importâncias relativas de cada um. Mas não surpreende ter sido ele a dizer isso, dada a educação militar recebida onde se privilegia o coletivo, onde todos somos parte de um todo que funciona como tal. Neste país, onde tantos sem qualquer importância se colocam em ‘bicos dos pés’ para ter direito a cinco minutinhos de fama, quantas vezes dizendo os maiores disparates para serem ouvidos, estas palavras ficam para memória futura.

2.Ricardo Araújo Pereira (RAP) é, atualmente, um dos melhores comediantes portugueses, com o seu humor fino e mordaz, marcando muitas vezes a atualidade com críticas a sorrir, ditas no momento certo (pese um ou outro exagero escusado, mas que não tira mérito ao autor). No seu regresso desta semana, RAP foi bem direto nas autárquicas, fazendo sobressair uma compilação de mensagens políticas, transmitidas sobretudo por António Costa que, em diversos municípios, propagandeou o PRR, induzindo-o como arma de eleição do candidato local socialista.
Dando de barato à confusão entre as figuras de secretário-geral do PS e primeiro-ministro, entendo que não ficou bem a Costa aludir a um programa que a Europa erigiu para a recuperação da economia portuguesa e que deve ser transversal à sociedade, jamais para ser brandido como bandeira eleitoral autárquica. Veremos se não terá efeito boomerang.

3.Um destes dias ouvimos falar um pouco da realidade dos Médicos de Família, um tema introduzido pelo ministro Manuel Heitor (Ciência, Tecnologia e Ensino Superior) ao referir que a sua preparação académica poderia ser menos exigente que a de qualquer outra especialidade médica. Não se ficando por aqui, deu como exemplo o caso britânico, prontamente desmentido pela respetiva associação inglesa.

Compreendo o problema do ministro – faltam médicos com essa especialidade, como se pode constatar facilmente, dado que haverá cerca de 1,1 milhões de pessoas sem médico de família (pese embora as promessas de todos os governos), além de existirem concursos que não têm candidatos suficientes, pelo que é preciso acelerar a sua formação. Mas se calhar, o problema também residirá na falta de condições (leia-se ‘financeiras’) oferecidas a esses médicos. Como se costuma dizer ‘casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão’.

Aquilo que mais me preocupou no ministro que deveria ser o guardião da exigência universitária, porque só com quadros de elevada qualidade (em todos os setores) o país poderá progredir, foi exatamente o pactuar com o nivelamento por baixo da formação. Pressurosamente, a seguir, veio referir que as suas afirmações forem descontextualizadas e que todos entendemos mal as suas palavras ou, como sói dizer-se, ‘pior a emenda que o soneto’. Fiquei com pena, por ele, que não tivesse assumido que ‘se exprimiu mal’, que ‘errou’ na verbalização da ideia, porque realmente demonstraria a humildade que todos devemos ter.

4.Há cerca de um ano, o PSD lançou a ideia de transferir quer o Tribunal Constitucional quer o Supremo Tribunal Administrativo para Coimbra. Como a votação no Parlamento irá ocorrer em cima das eleições autárquicas, aqui d’El Rei que isto resulta de uma medida demagógica, inserida na campanha autárquica da cidade (como refere sobretudo o PCP, já que o PS, entalado pela iniciativa, aparentemente se irá abster). 

Está o ‘caldo entornado’, os juízes em causa entendem um desprestígio por irem para ‘a província’ e os méritos da ideia não se discutem. A iniciativa de existirem serviços públicos fora dos grandes centros (sobretudo fora do litoral) poderia ser um motor interessante de desenvolvimento, mais do que os milhões que se injetam e há que começar por qualquer lado. Continuarmos como estamos, é contribuir para adiar o interior. 

Portugal, no seu pior, sempre capturado por interesses particulares, neste caso do TC, fortemente políticos.