O definhar do regime

A demissão de um governo com maioria parlamentar estável, facto inédito em democracia, não resultou de qualquer ausência de legitimidade daquele, mas tão só de uma embirração presidencial para com o chefe do governo, tendo aproveitado uma conturbada demissão de um ministro para justificar a dissolução do Parlamento.

O regime engalanou-se para se despedir de um dos seus filhos predilectos.

No entanto, ao contrário do que seria expectável na mente daqueles que ocupam a cúpula do Estado, o povo não se associou às cerimónias fúnebres que conduziram à sua última morada o terceiro presidente eleito por sufrágio universal nesta decrépita república.

Com excepção de escassas centenas de pessoas que fizeram questão de prestar uma derradeira homenagem a Jorge Sampaio, os portugueses alhearam-se, por completo, do tributo com que o regime agraciou postumamente o seu antigo presidente.

Sampaio, ao longo do seu percurso político, não gerou ódios, mas também não cativou paixões.

Para a História, como acções de importância relevante, fica, sobretudo, o registo de duas controversas decisões, ambas com efeitos nefastos para a vida dos portugueses: a demissão de um governo legítimo e a coligação com toda a esquerda totalitária.

A demissão de um governo com maioria parlamentar estável, facto inédito em democracia, não resultou de qualquer ausência de legitimidade daquele, mas tão só de uma embirração presidencial para com o chefe do governo, tendo aproveitado uma conturbada demissão de um ministro para justificar a dissolução do Parlamento.

Como consequência desta atitude, Sampaio entregou de mão beijada o poder executivo a Sócrates e seus acólitos, pelo que o seu nome ficará para sempre associado ao socratismo e, consequentemente, à temporária perda significativa da soberania nacional por via da rendição aos interesses da finança internacional.

A coligação, para a Câmara de Lisboa, com toda a esquerda radical, na qual coabitaram  comunistas, troskistas, marxistas-leninistas e maoístas, quebrando uma regra até então inviolável, a de não se pactuar com partidos extremistas e anti-democráticos, afirmou-se como um exemplo percursor da geringonça mais tarde ensaiada por Costa, seu afilhado político.

O legado de Sampaio resume-se, pois, a Sócrates e a Costa!

Como homem, Sampaio reune quase unanimidade quanto à sua integridade e genuína entrega a causas humanitárias.

Como político, a Pátria deve-lhe pouco ou nada!

No entanto, não foi esta contradição entre o estadista e o ser humano que conduziu à apatia popular durante o enterro de Sampaio. A razão é bem mais profunda e nada lisonjeira para a nossa classe política: o povo, pura e simplesmente, há muito que não se revê neste regime.

Os portugueses, ao virarem as costas a um cortejo fúnebre que o Estado queria grandioso, mais não fizeram do que manifestar a sua desilusão e revolta para com o regime que teima em os manter entre os mais pobres da Europa e sem nenhumas perspectivas de, com o tipo de governação a que têm estado sujeitos, acalentarem qualquer esperança de melhorar o seu estilo de vida.

Sinal de cariz idêntico tinha já sido deixado bem vincado aquando do enterro do padrinho do regime, há apenas quatro anos.

Na nossa memória estão ainda gravadas as imagens do féretro com os restos mortais de Soares a percorrer as ruas quase desertas de Lisboa, numa clara demonstração de absoluta indiferença popular para com o regime que o então defunto simbolizava.

Foi o primeiro aviso de que os portugueses se estão a borrifar para o destino dos políticos que os desgovernam, não se envolvendo no luto com que o Estado distingue, na morte, os seus mais altos dignitários.   

É a república de Abril que está moribunda, incapaz de manter vivos os laços que a deveriam ligar ao povo que tem por obrigação servir.

Nem o Estado Novo presenciou, alguma vez, esta completa dessintonia entre as populações e os seus governantes, não se devendo o seu derrube à ausência de uma base de apoio popular, que sempre houve, mas sim a um conflito corporativo com uma parte significativa dos oficiais do quadro permanente das Forças Armadas.

Prova disso forem as genuínas manifestações de consternação durante os enterros de Carmona e de Salazar, principalmente deste último, com o povo a encher as ruas para uma derradeira despedida aos seus líderes.

Vivia-se em ditadura, dirão alguns que se recusam a um juízo não faccioso sobre o período salazarista, mas o que é uma verdade indesmentível é que esse mar de gente que se associou ao luto do antigo regime não foi, obviamente, obrigado a sair de suas casas para se inclinar perante os cortejos fúnebres em questão.

Já em democracia, Sá Carneiro, na hora da morte, juntou multidões que inundaram todas as artérias de Lisboa desde os Jerónimos até ao Alto de S. João, o seu último percurso imediatamente antes de ser sepultado, numa clara exibição de afecto por parte do cidadão comum.

As trágicas circunstâncias em que o seu desaparecimento ocorreu, aliadas a uma efectiva esperança que nele a maioria dos portugueses de então depositaram, contribuíram, sem dúvida, para aquela que foi a última autêntica e inequívoca manifestação de pesar de cariz popular prestada a um político em Portugal.

Outros tempos. A partir daí cavou-se um fosso sem fundo entre o povo e este regime, que lentamente definha em constante agonia, tomado de assalto por uma classe política medíocre, inculta, corrupta e anti-patriótica.

Hoje, mais de metade dos portugueses já nem se dá ao trabalho de se deslocar às assembleias de voto, para escolher livremente os seus representantes, porque neles perdeu toda a confiança!

É o xeque-mate à partidocracia de Abril!

  

Pedro Ochôa