O golpe de génio de Sampaio

À hora de almoço recebo uma chamada no telefone direto do meu gabinete. Podia não ter atendido, pois costumava almoçar fora. Atendo. Era Jorge Sampaio.

Como é usual  nestas situações, a morte de Jorge Sampaio deu origem a uma catadupa de elogios ao homem e ao político. É compreensível: não calha bem atacar-se alguém que acaba de falecer. Por todas as razões e por mais uma: porque já não se pode defender.

Acontece que já fui várias vezes criticado por ter cometido esse ‘pecado’. E isso resulta de uma circunstância para mim inelutável: não sou capaz de escrever o que não penso. Escrevendo semanalmente nos jornais há 40 anos, nunca elogiei nem critiquei alguém ou alguma coisa sem estar convicto do que fazia. Posso não escrever tudo o que penso – mas jamais escrevi ao contrário do que penso.

Também não escrevi por ‘encomenda’ um único artigo que fosse. E nunca usei a escrita como vingança. O meu foco são os leitores, é para eles que escrevo, e não seria honesto usá-los para fazer retaliações.

Pelo que fica escrito, não sou capaz de dizer que Sampaio foi um grande político. Teve um golpe de génio que o catapultou para a Presidência da República – no qual, por acaso, também participei.

A história começou em 1989, quando Sampaio era líder do PS e o partido estava tão falho de convicção que nenhum ‘general’ se disponibilizou para ser candidato à Câmara de Lisboa. Perante isso, Sampaio não teve outra saída senão candidatar-se ele próprio. E ganhou – inesperadamente – contra Marcelo Rebelo de Sousa. Aí começou a sua improvável ascensão.

Seis anos depois, em 1995, nas vésperas das eleições para a Presidência da República, o PSD entrou em crise. Cavaco Silva anunciara que não se recandidataria à liderança, sendo substituído por Fernando Nogueira, estando a ser pressionado para se candidatar a PR.

É nessa altura que recebo uma chamada  no telefone direto do meu gabinete no Expresso. Ainda não havia telemóveis e podia nunca ter atendido o telefonema: eram horas de almoço e normalmente eu ia almoçar fora. Mas por qualquer razão que não recordo, tinha ficado a trabalhar.

Atendi. Era Jorge Sampaio. Estava combinada uma entrevista com ele para essa tarde na Câmara de Lisboa e ele começou por me perguntar qual era o âmbito da entrevista. Estranhei a pergunta. Respondi que seria com certeza sobre o seu trabalho e os problemas de Lisboa. Adiantou, então, se não lhe fariam perguntas sobre política geral, designadamente sobre as presidenciais. Admiti que sim.

Depois deste telefonema, chamei o jornalista que ia fazer a entrevista, o Fernando Diogo – hoje já falecido – e disse-lhe que Sampaio tinha algo a dizer sobre as presidenciais. Que explorasse o assunto.

Umas horas depois, o jornalista aparecia-me no gabinete com ar alvoroçado:

– Diretor, já temos manchete! O Sampaio diz que terá muito prazer em defrontar o Cavaco na corrida a Belém. É um pré-anúncio de candidatura à Presidência.

Seria essa, de facto, a manchete do Expresso no sábado seguinte. Mas a história não acabou aqui.

Nas vésperas de a entrevista ser publicada, recebi outro telefonema de Jorge Sampaio. Soubera que nessa semana, por coincidência, havia uma sondagem sobre possíveis candidatos presidenciais, que o colocava na primeira posição. E a questão dele era esta: a publicação da entrevista e da sondagem no mesmo número induzia a ideia de que ele se disponibilizava a ser candidato por ter conhecimento daqueles resultados. Ora, eu sabia que isso não era assim. Eu era testemunha de que ele dera a entrevista sem saber da sondagem.

Achei que tinha razão, e adiei a publicação da sondagem para a semana seguinte.

Ora, o efeito conjugado da declaração da disponibilidade de Sampaio para concorrer a Belém, e, uma semana depois, de uma sondagem que o colocava em vantagem, funcionou como um xeque-mate ao líder do PS, que nessa época era António Guterres. Apanhado de surpresa, não teve outro remédio senão aceitar a disponibilidade de Sampaio. A apresentação de outro candidato abriria uma ferida grave no partido. Aceitou pois a candidatura – a contragosto, adianto eu.

E foi este o golpe de génio de Sampaio. Em Janeiro seguinte, venceria um Cavaco fragilizado após a saída do Governo e com o PSD em guerra.

Depois, Jorge Sampaio fez uma Presidência esforçada e, no geral, séria. Teve um papel relevante na independência de Timor e promoveu o diálogo interpartidário. Há quem o ataque fortemente por ter usado a ‘bomba atómica’, demitindo Santana Lopes. Não o critico por essa decisão. Quem o diz esquece-se de que antes Sampaio tinha empossado Santana Lopes como primeiro-ministro (na sequência da saída de Durão Barroso para Bruxelas) sem fazer eleições – como exigia o PS. Foi isso, aliás, que levou à demissão de Ferro Rodrigues da liderança socialista.

O maior defeito que encontro na Presidência de Sampaio resulta da sua falta de gosto pelo concreto. Falava muito, e muito depressa, mas tinha um discurso redondo, dava muitas ‘voltas à ilha’ e acabava muitas vezes por não chegar ao destino. Escrevi uma vez que ele falava melhor em inglês do que em português, talvez por o inglês ser uma língua mais direta. Mais concisa. Esse texto irritou-o bastante, a ponto de o referir (sem me nomear) numa homenagem de que foi objeto em 2017, há quatro anos.

Tivemos outros desencontros. Como um pequeno texto biográfico que escrevi para o livro O Palácio de Belém, de que ele não gostou – e por isso o livro não foi atualizado nem reeditado. Mas tal não se passou só comigo. Também rejeitou uma primeira versão do retrato que lhe fez Paula Rego para a Galeria dos Retratos dos Presidentes. A diferença é que ela fez um segundo retrato (que por sinal também é horrível) e eu não escrevi um segundo texto.

Não me custa reconhecer, porém, que esse meu texto era fraquinho. Talvez pelo facto de a personagem não me inspirar grandemente.