Barcelona. A espinha de Berna

Nunca convencidos com a derrota na final da Taça dos Campeões, os catalães não descansaram enquanto o Benfica não lhes deu a desforra.

Nem toneladas de sais de frutos seriam capazes de aliviar a azia com que os jogadores, dirigentes e adeptos do Barcelona saíram de Berna no dia 31 de maio de 1961, após a final da Taça dos Clubes Campeões Europeus. O Benfica ganhara o jogo por 3-2, sucedera aos cinco títulos consecutivos do Real Madrid, e o Barça, que se convencera de que a competição talvez fosse uma espécie de Taça de Campeões Espanhóis, com lugar para mais uma equipa de Espanha na lista que tivera, até então, um único nome, procurou desvalorizar ao máximo a dor dessa derrota excruciante. «La final de los palos cuadrados», escreveram os jornais da Catalunha. Quatro bolas nos postes da equipa portuguesa: Kocsis, Kubala (duas vezes no mesmo remate) e Czibor. Três húngaros, a mesma sorte. Ou falta dela.

Os espanhóis agarram-se aos postes. Parecia que, com eles, explicavam tudo: a derrota e a fuga da taça dos campeões que demoraria mais de trinta anos até arranjar lugar em Camp Nou. A fortuna de um lado, o lado dos portugueses, o azar do outro, o lado dos catalães. Quem os ouvia falar ou lia a escrever, parecia que nem sequer tinha havido 90 minutos de jogo. E, segundo vários críticos que seguiam o dia a dia do clube, tanta lamechice só servia para camuflar um problema muito mais sério. Tal como hoje acontece, a três dias de visitar o Estádio da Luz para a Liga dos Campeões, o grande Barcelona mergulhara numa crise financeira impressionante, apresentando um défice de muitos e muitos milhões de pesetas, tal como asseguravam os correspondentes dos jornais portugueses em Espanha.

Claro que, para o Benfica, era um assunto pouco interessante. Recém-coroados campeões da Europa, os encarnados recebiam convites dos mais diversos quadrantes para se apresentarem com o seu onze de heróis, ainda por cima acrescido, entretanto, por um jovem moçambicano de talento e força sem iguais: Eusébio da Silva Ferreira. Mas, a verdade é que os telefones da Rua do Jardim do Regedor continuavam a tocar ininterruptamente: a direção do Barcelona solicitava, pedia, exigia ou suplicava, conforme os momentos, para que Camp Nou recebesse a desforra do jogo do Wankdorf Stadium de Berna. Aí sim, se confirmaria, preto no branco, qual dos dois era a melhor equipa do continente.

O Benfica era melhor

Ao fim de muitas discussões, do estabelecimento de um cachet bastante razoável para os portugueses, e da promessa feita pelos catalães que todas as despesas do programa ficariam por sua conta, o Benfica acedeu. E no dia 22 de novembro de 1961, a sua equipa mágica estava em Barcelona para onde lhe fora prometido um inferno e uma derrota por goleada que provaria que a Taça dos Campeões fora entregue por mera displicência do destino.

30 mil dólares tinham entrado nos cofres encarnados. Esperavam os da casa receber muito mais do que isso só de bilheteira. Era um momento fundamental para alterar o curso das finanças do clube. Não havia como não se estar otimista. E, para criar ainda mais expectativas que excitassem o público, aproveitou-se para lançar mão da especulação: o encontro, meramente particular, passara a ser a hora da vingança. O Barcelona entraria em campo como se a Taça dos Campeões voltasse a estar em jogo. E que era a altura exata para mostrar ao mundo quem era quem. Claro que a taça não estava em jogo, mas perante tanto ruído, os benfiquistas sentiram-se tocados no seu prestígio. 

É um novembro terrível em Barcelona. E não, não tem nada que ver com futebol. É um novembro terrível de frio e chuva. Segunda e terça-feira o tempo agrava-se. A água cai do céu em bátegas. Bem podem os jornalistas catalães acenar com o jogo do século, com a definitiva reposição da verdade dos factos, com o confronto que ditará, desta vez é que sim!, qual a melhor equipa da Europa. Em Lisboa discute-se: valerá a pena pôr em causa a vitória do Benfica? Há motivos que justifiquem o aceitar de um convite deste género, jogando em casa do adversário, dando-lhe de mão beijada todas as vantagens? Há: 30 mil dólares! O futebol já é um universo de dinheiro; um mundo de compra e venda.

A intempérie frustra o Barcelona: só 40 mil adeptos num estádio com capacidade para 100 mil. O Benfica frustra o Barcelona: nem em sua casa, perante o seu público, os catalães conseguem a vitória. A primeira parte do Benfica é brilhante de classe e de clareza no seu futebol ofensivo. O Barça vê-se dominado, controlado, incapaz. Santana e Coluna enchem o campo: um é fino, recortado, requintado até à filigrana; o outro é forte, possante, avassalador. As pérolas negras do Benfica: Eusébio é a terceira. Santana faz 1-0; Eusébio, jogando como ponta esquerda, quase faz o segundo.

Evaristo fez o 1-1; por muito pouco está a beira do 2-1. A bola bate no poste. Malditos ‘palos’! Na segunda parte, Guttmann defende. Lança jogadores novos: Simões, Torres, Mário João.
O Benfica tem uma aura de campeão da Europa a conservar, e sai com ela intacta do terreno do rival. A desforra de Berna não existiu. Béla Guttmann sorri e promete: «Para a próxima cobraremos 35 mil dólares». É mais do que justo!