Jean Moulin: A mulher que traiu o homem que desenhava

Durante 50 anos, a prisão pelos nazis de uma das mais altas figuras da Resistência Francesa manteve-se um mistério. Hoje não restam dúvidas que a trama passou por uma mulher luciferina, amante do lugar-tenente de Klaus Barbie, Lydie Bastien, que se infiltrou na organização seduzindo um dos seus membros.

Se as dúvidas permaneceram voláteis durante alguns anos, hoje o nome sinistro de La Femmelle Diabolique, Lydie Bastien, uma figura macabra que se julgava possuidora de poderes intelectuais superiores, personagem dupla que enganou toda a gente durante quase todo o tempo, está definitivamente ligado à traição de Jean Moulin, o primeiro presidente do Conselho Nacional da Resistência Francesa, barbaramente torturado pelo canalha Klaus Barbie, da Gestapo, e que acabaria por morrer perto de Metz, dentro do comboio que o conduzia à Alemanha nazi, a 8 de Julho de 1943.

Lydie foi amante de Harry Stengrit, o ajudante-de-campo de Barbie e convencida pelo próprio Stengrit a seduzir René Hardy, uma das personalidades mais fortes da Resistência, de forma a infiltrar-se e a obter informação importante para a Gestapo. A brasserie des Archers, em Lyon, começou por ser o local de encontro com Hardy. Contou o jornalista Pierre Pean, que escreveu um livro a seu respeito, que se tratava de uma mulher de «beauté luciférienne».

René nunca teve hipóteses. Caiu de borco no poço dos seus encantos e foi tratado com um boneco de trapo por essa besta de traços calipígios. Num abrir e fechar de olhos, Lydie Bastien tinha sacado ao pobre infeliz os nomes e os pseudónimos dos principais chefes da Resistência. Entre os quais o de Max, ou seja Jean Moulin. E ficou a saber das divisões severas que existiam dentro da organização, sendo a presidência de Moulin fortemente atacada por Henri Frenay e por Berty Albrecht, que o acusavam de querer colocar a Resistência ao serviço exclusivo de Charles de Gaulle e das suas ideias.

Hardy teve, como seria de esperar, um triste fim. Ao pilhar-lhe muita quantidade de correspondência, sobretudo a trocada com o general Delestraint, Lydie entregou-a diretamente a Klaus Barbie e preparou a viagem do seu desgraçado companheiro de cama de Lyon para Paris onde seria capturado pela Gestapo. Uma viagem que, inventou ela, seria de dois entes absolutamente apaixonados, passeando-se de mãos dadas à beira Sena.

Num documento encontrado mais tarde, a sádica rapariga registava a forma como destruíra René: «Esse imbecil estava convencido até ao último minuto de que eu iria viajar com ele. Tive de acompanhar até à estação de táxi e permanecer na carruagem quase até à hora de ela partir. Era um cretino completamente à minha mercê».

Este naco de prosa definia bem o caráter de Lydie. Quanto ao cretino Hardy foi preso logo no início da viagem por dois soldados nazis e entregue aos cuidados pessoais de Klaus Barbie que percebeu rapidamente que tinha na mulher que se julgava parecida com Cleópatra uma arma tremenda para minar de vez todo o edifício da Resistência.

Jean Moulin já tinha sido apanhado pelas malhas da Gestapo no dia 21 de Junho de 1943. Encontrava-se em casa do médico Frédéric Dugoujon, em Caluire-et-Cuire, nos arredores de Lyon, na companhia de outros líderes da organização, tal como Dugoujon e Henri Aubry (conhecidos por Avricourt and Thomas), Raymond Aubrac e Bruno Larat (Xavier e Laurent Parisot), André Lassagne (Lombard), pelo coronel Albert Lacaze e por outro coronel de nome Émile Schwarzfeld (Blumstein).

René Hardy encontrava-se igualmente entre eles mas escapou por razões nunca bem esclarecidas, mas que terão ficado a dever-se à convicção de Lydie que poderia sacar dele ainda muita informação e não chegara a hora de o caçar. Klaus Barbie tinha um ódio especial a Jean Moulin. Encarcerou-o na cadeia de Montluc, em Lyon, e torturou-o de forma brutal quotidianamente até perceber que a boca de Moulin não se abriria para desvendar o nome de mais nenhum dos membros da Resistência.

Os torcionários da Gestapo arrancaram-lhe as unhas uma a uma à custa de agulhas em brasa, partiram-lhe os dedos das mãos entalando-os em portas e apertaram-lhe as correias em redor dos punhos até os tendões cederem por completo. A cara de Jean Moulin ficou irreconhecível tal a barbaridade com que foi esmurrada e pontapeada, as costelas deram de si à custa de socos até que o infeliz entrou em estado de coma.

De guerra em guerra

Jean Moulin sempre foi um combatente. Durante a I Grande Guerra foi mobilizado para o Regimento de Engenheiros de Montpellier. Tinha apenas 19 anos e foi colocado na região dos Vosgues. Fora um medíocre estudante de Direito da Faculdade de Montpellier e, embora não tenha entrado em conflito direto com os alemães, teve a oportunidade de ver de perto o horror e a devastação dos campos de batalha.

Era pau para toda a obra: carpinteiro, sapador, telefonista. Boiou entre o 7º e o 9º Regimentos. Depois de ter sido desmobilizado, regressou ao confortável emprego de secretário na prefeitura de Hérault. Dava-lhe tempo de sobra para se dedicar à grande paixão da sua vida: desenhar.

Ao mesmo tempo que recuperava os estudos, concluía o curso de Direito, subia na carreira até chegar a subprefeito de Albertville e iniciava a vida de casado com Margueritte Cerruti na pequena cidade de Betton-Bettonet – Margueritte cedo se cansou dessa união com um homem com mais 19 anos do que ela, fugindo para Paris para se tornar cantora de cabarets.

Moulin começou a publicar caricaturas políticas para o jornal Le Rire sob o pseudónimo de Romanin. Quem quiser saber algo mais sobre esta faceta de um homem que dividia os seus interesses pelas mais diversas áreas da cultura tem, neste momento, em Lisboa, uma exposição realizada por um grupo de amigos (João Paulo Cotrim, João Soares, Jorge Silva, José Manuel Saraiva e Manuela Rêgo) que se prolongará entre 27 Setembro a 10 Outubro com o nome de «Quinzena Jean Moulin», contando com o apoio da Casa da Imprensa e que inclui exposições (Casa de Imprensa, abysmo Galeria), um ciclo de cinema (Cinema Ideal, uma lápide evocativa (São Pedro de Âlcantara), edições e debate.

Não são muitos os que conhecem Jean Moulin por Romanin. Romanin foi a sua versão de colecionador de arte, galerista e artista, com um estilo muito próprio, de traço elegante, fino e, ao mesmo tempo, irónico. Já designado como chefe da Resistência Francesa sob delegação do general De Gaulle, Moulin instalou-se em Saint-Andiol.

A Galeria Romanin foi inaugurada em Nice no dia 9 de Fevereiro de 1943. Apresentava, alem de obras suas, quadros de pintores como Soutine, Dufy ou Friesz. Usava, com essa finalidade, o pseudónimo de Jacques Martel. Não tardaria muito a ser apanhado pela Gestapo.

A sua primeira experiência nos ergástulos nazis data de 1940. Foi preso no dia 17 de Junho por se recusar a assinar um documento no qual atirava sobre três atiradores senegaleses a culpa do assassínio de vários civis na zona de La Taye. Na verdade, o massacre tinha sido cometido pela Luftwaffe, e Moulin, alicerçado na sua imponente coragem física sujeitou-se a espancamentos brutais que o levaram ao desespero de uma tentativa de suicídio com um naco de vidro que lhe deixou um enorme cicatriz no pescoço que ele, mais tarde, passou a esconder por debaixo do lenço de seda que se tornou parte da sua personalidade. Manteve-se vivo por causa de um guarda que o conduziu ao hospital enquanto se esvaía em sangue.

Pouco tempo depois, o Governo de Vichy, liderado pelo general Pétain, demitiu-o do cargo de vice-prefeito, considerando-o um esquerdista radical e incluindo-o numa limpeza dos quadros governativos. Jean Moulin estava novamente no epicentro do combate contra o fascismo e contra o nazismo.

A traição do homem que desenhava

Chamaram-lhe, com certa dose de romantismo, o Enigma de Caluire ou o Mistério do Quarto Amarelo. Durante cerca de cinquenta anos, a traição de Jean Moulin foi estudada por profissionais e meros curiosos. O fascínio da figura de Moulin juntou-se à necessidade de fazer justiça a um dos maiores heróis da Resistência.

Naquele dia 21 de Junho de 1943, fora ele a convocar a reunião de algumas das grandes figuras da organização sulista da Resistência. Havia a necessidade de discutir a recente prisão pelos nazis do general Delestraint, responsável pela conhecida Armée Secréte.

A Gestapo irrompeu pela casa onde estavam concentrados e procedeu à prisão de todos eles menos, como já vimos, de René Hardy que viria, mais tarde, a ser julgado pelos seus camaradas, em 1947 e 1950, como um dos responsáveis pela fuga de informação que chegou aos ouvidos de Klaus Barbie.

Hardy tornou-se um dos rostos mais asquerosos da traição. A investigação levada a cabo de forma profundamente pormenorizada por Pierre Péan, trouxe à superfície que o canalha não passava, nessa altura, de um joguete nas mãos dos alemães por causa da sua paixão incontrolada por Lydie Bastien.

René não era apenas um traidor; era um farrapo humano sem qualquer tipo de personalidade, reduzido a um mero títere pelos encantos lucíferinos de uma mulher sem escrúpulos. Com apenas 20 anos, Lydie, que morreu em Paris em 1994, tornava-se em poucos dias a responsável pela queda dos dois principais responsáveis pela Resistência – o chefe da parte militar e o chefe da parte política – Delestraint e Jean Moulin.

Depois de ter escrito Vies et Morts de Jean Moulin, Péan foi contactado misteriosamente por Victor Conté, um homem que se apresentou como executor testamentário de Lydie com a responsabilidade de estabelecer a sua verdadeira responsabilidade nos terríveis acontecimentos de Junho de 1921.

A víbora morrera com problemas de consciência, vá lá acreditar-se nesse súbito golpe do destino, e Conté estava disposto a entregar a Pierre as últimas confissões dessa figura feminina amoral que ganhara, entretanto, o cognome de La Diabolique de Caluire. Dona de uma alma ondulosa e glacial de réptil, Lydia nasceu no dia 20 de Agosto de 1922, em Paris, sob o nome de Lydie Jeanne Françoise.

Também seria conhecida, ao longo da sua vida canalha, por Béatrice et Ananda Devi. Conté afirmou a Péan que Lydie foi paga pelo nazis através de uma grande quantidade de pedras preciosas que fizeram dela uma mulher muito rica.

Apesar disso, tirou partido do seu charme para, após o final da II Grande Guerra, engazopar uma série de milionários e homens poderosos que lhe permitiram nunca ser confrontada com a justiça, entre os quais o padre Ernest de Gengenbach que escreveu sobre ela um livro com um título revelador: l’Expérience Démoniaque. Antes de se instalar nos Estados Unidos durante os anos 70, viveu na Índia com um marajá e acabaria por fundar em Paris, sob os auspícios de André Maurois, o Centre Culturel de l’Inde, além de se juntar a Jackie Kennedy para abrir o Jacky’s Saloon, na rua Jules-Chaplain, que mudaria o nome para Jacky’s Farwest Saloon. A sua vida continua envolta em mistério.