O 11.º mandamento

O empréstimo de livros é um assunto delicado. Normalmente, quando saem de casa, já não voltam.

U m destes dias recebi uma chamada de um amigo que não vejo há algum tempo. Depois da habitual troca de cumprimentos, explicou-me que estava a fazer um trabalho para a universidade sobre uma importante figura histórica do século XVIII. Poderia eu emprestar-lhe uma biografia recentemente publicada da tal figura? Evidentemente, respondi-lhe que sim.

Devo dizer que o empréstimo de livros é um assunto delicado que me deixa dividido. Por um lado, gosto que um livro que está parado na minha estante possa ter utilidade para outra pessoa; agrada-me a ideia de ele poder ser lido mais de uma vez. Por outro lado, sei que os livros que saem muitas vezes já não voltam. Em especial se os emprestarmos a pessoas que não vemos com tanta frequência.

Fosse como fosse, neste caso nem hesitei e até sugeri ao meu amigo levar-lhe uma segunda biografia da mesma personagem, publicada há uns anos. Pensei que, se lhe levasse as duas, talvez as hipóteses de as recuperar aumentassem. Em contrapartida, se ele não mas devolvesse, ia ter um problema a dobrar. Dilemas de um emprestador de livros…

Optei por jogar pelo seguro. No dia combinado, lá lhe levei a biografia solicitada. Só essa – até porque o meu amigo não mostrou assim tanto interesse na outra.

Aparentemente foi a decisão mais sensata: alguns meses volvidos, nada de devolução ou qualquer referência a isso. E, vá-se lá saber porquê, não tenho muita lata para pegar no telefone e pedir-lhe o livro de volta.

Por essas e por outras, tenho para mim que deveria estar consagrado nas Tábuas da Lei um 11.º mandamento: ‘Não pedirás livros emprestados’. Seria uma maneira de evitar estes constrangimentos.

Mas é preciso notar que por vezes a iniciativa do empréstimo parte do próprio emprestador, que gostou tanto de alguma coisa que quis partilhá-la com outros.

Aconteceu-me com um documentário da BBC sobre o grande pianista Alfred Brendel. Passou uma vez na televisão e fiquei tão entusiasmado que um dia o apanhei à venda e não perdi a oportunidade. Vi-o de novo em casa, e voltei a sentir o mesmo entusiasmo. Por isso decidi um dia levá-lo a um colega do trabalho. Evidentemente, arrependi-me.

O que para um homem é o seu tesouro e a sua sabedoria, soa para o outro sempre como uma tolice», escreveu Herman Hesse em Viagem ao País da Manhã. O problema de emprestarmos a alguém aquilo que consideramos um «tesouro» é que o depositário dificilmente lhe atribuirá o mesmo valor – e o mais provável é considerá-lo mesmo «uma tolice». Assim, o livro (ou documentário, ou outra coisa qualquer) que tanto acarinhamos e que tanta falta nos faz acaba num canto qualquer de uma casa estranha, esquecido e desprezado.

Durante algum tempo fiquei chateadíssimo por ter tomado a iniciativa de emprestar o precioso documentário. Depois passou-me. Quando o tal colega me anunciou que ia assumir outro desafio profissional, já eu tinha deitado o coração ao largo.

No seu último dia de trabalho, aproximou-se da minha secretária. Achei que ia despedir-se.
– Lembras-te do Brendel? – perguntou-me. Trazia na mão a caixa com o DVD que eu dava por perdido. Lembrava, pois… se lembrava! Apeteceu-me abraçá-lo ali mesmo.

«Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate», dizia uma inscrição à entrada do Inferno. Nós, emprestadores, poderíamos adotar por divisa uma variação do famoso verso de Dante: ‘Deixai toda a esperança, ó vós que emprestais’. O mais certo é que o objeto que sai de casa nunca volte. Mas que alegria quando isso acontece! Não é apenas o regresso desejado – é também a sensação reconfortante de que ainda há gente honesta à superfície da Terra.