Vieira teve cúmplices no Benfica para vender ações a Textor

Escutas intercetaram instruções para o negócio ser tratado com máxima confidencialidade, com promessa de comissões de 3,5 milhões de euros para colaboradores de Vieira, que seriam pagas pelos acionistas da SAD enganados no valor das ações. José Guilherme, um deles, diz ao Nascer do SOL não se sentir traído. 

Por Felícia Cabrita e Marta F. Reis

Na tentativa de, secretamente, reunir 25% do capital da Benfica SAD para o vender ao investidor norte-americano John Textor, o ex-presidente do clube, Luís Filipe Vieira – cérebro da operação, segundo o Ministério Público (MP) –, arregimentou a cumplicidade de dois colaboradores próximos dele e da instituição, aos quais estavam prometidas elevadas comissões depois de o negócio se concretizar – soube o Nascer do SOL de fonte conhecedora da investigação ao processo Cartão Vermelho, que em julho motivou a detenção de Vieira, atualmente com a medida de coação de proibição de contactar com administradores da SAD e restantes arguidos do processo e passaporte apreendido.

Os colaboradores em causa eram Hugo Ribeiro, diretor do Departamento Internacional do Benfica e detentor, nessa qualidade, de uma vasta rede de contactos estrangeiros privilegiados, e Carlos Janela, assessor de comunicação da Benfica SAD. Pela sua intermediação no negócio de venda a Textor de 25% das ações da Benfica SAD, pelo valor já acordado de 50 milhões de euros, receberiam 7% (3,5 milhões de euros), a repartir entre ambos em partes iguais. A venda foi no entanto frustrada pela detenção temporária de Vieira na primeira semana de julho último, sob suspeitas de crimes de abuso de confiança, burla qualificada, falsificação, fraude fiscal e branqueamento de capitais.
O rosto da operação clandestina, que só foi tornada pública com a deteção de Vieira, era o maior acionista individual da Benfica SAD (16,33%), o empresário José António dos Santos (conhecido como ‘O Rei dos Frangos’, por ser dono do maior grupo económico de produção aviária em Portugal, a Avibom, com sede em Torres Vedras), mas que o MP suspeita ter atuado como mero testa-de-ferro de Vieira, de quem é amigo de longa data. Era a José António dos Santos que competia reunir, sob sua titularidade, a quarta parte do capital da Benfica SAD (incluindo as ações do próprio Vieira – 3,28%), para depois proceder à sua venda ao empresário norte-americano, sem sequer o presidente do clube aparecer como protagonista do negócio. 

 Violando as disposições legais, a operação estava a ser concretizada sem a obrigatória comunicação à Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), podendo por isso redundar em prejuízo do Benfica, que desta forma não podia exercer o direito de preferência que lhe assistia. Por isso, apesar da sua integração nas estruturas benfiquistas, tanto Hugo Ribeiro como Carlos Janela intermediaram os contactos em estrita confidencialidade, para que nada transpirasse para os meios encarnados. Aliás, numa das escutas telefónicas levadas a cabo pelos investigadores judiciais, Janela referiu a Ribeiro a importância de manter o segredo do negócio, especificando, nomeadamente, que ninguém dentro do Benfica poderia saber do que estava em curso. Solicitado pelo Nascer do SOL a confirmar estes factos, Hugo Ribeiro apenas afirmou: «Isso é completamente falso, mas não vou fazer mais comentários». Confrontado pelo Nascer do SOL sobre que trabalho fez neste processo para receber comissão tão elevada e se, como colaborador do Benfica, considera ético envolver-se nesta negociação nas costas do clube, Carlos Janela até ao fecho da edição não respondeu.
Para conseguirem totalizar 25% do capital da Benfica SAD, o ‘Rei dos Frangos’ e Vieira quiseram ainda agregar as participações dos empresários José Guilherme (um construtor civil da Amadora, conhecido pelos seus negócios em Angola e por ter ‘oferecido’ a Ricardo Salgado, ex-presidente do Banco Espírito Santo, uma suposta prenda de 14 milhões de euros) e Pedro Martins, da Quinta de Jugais (especializada na produção de cabazes de Natal). Mas, além de comunicarem a ambos que todas as ações deveriam passar para a titularidade de José António dos Santos, informaram que Textor pagaria por cada título 5 euros. Mas o negócio proposto não foi o mesmo para os dois nem foi tratado da mesma forma – e teria outra intenção, garantir o pagamento das comissões a custo zero para Vieira e Santos.
No caso de Pedro Martins, da Quinta de Jugais, o contacto foi feito por parte do ‘Rei dos Frangos’ no sentido de o levar a vender cada ação por 4,5 euros, com o argumento de que seria preciso descontar uma comissão de venda de 10% (7%a pagar a Ribeiro e Janela e ainda 3% destinados a um intermediário inglês estabelecido em Londres, Laurie Pinto, que promoveu o contacto inicial com o investidor norte-americano). Já no caso de José Guilherme, foi Vieira que foi ao encontro do empresário da Amadora para elaborarem o contrato de promessa de compra e venda que passava as suas ações para o nome de José António dos Santos, neste caso por 5 euros cada ação – ou seja, sem lhe imputar a taxa da comissão. Ora, de acordo com a investigação, José António dos Santos e Vieira tinham acordado com Textor que este pagaria próximo de 8,7 euros por ação, o que daria um negócio de 50 milhões de euros pelos 25% da SAD, valor que não foi comunicado aos acionistas que iam ceder, no caso de José Guilherme, 3,37% e no caso da Quinta Jugais, 2%. O diferencial resultante do engano aos outros acionistas daria a Vieira e José António dos Santos uma mais-valia de cerca de 5 milhões de euros, o que correspondia praticamente ao valor a pagar aos comissionistas. Isto porque, ao todo, seriam 3,5 milhões a dividir por Ribeiro e Janela e 1,5 milhões para Laurie Pinto.

José Guilherme não se sente traído
Contactado esta semana pelo Nascer do SOL, José Guilherme encarou com naturalidade a circunstância de o então presidente do Benfica não lhe ter comunicado o verdadeiro valor que Textor pagaria pelos títulos da SAD: «Eu vendo a quem me aparecer com o dinheiro à frente, para pagar as dívidas que tenho aos bancos. Até agora isso não aconteceu. Fiz um contrato-promessa de compra e venda com o Luís Filipe Vieira, mas era para vender a outro senhor. O contrato é até 30 de outubro, e, como sou um homem de palavra, vou aguardar. O Luís Filipe Vieira até me fez um favor – nunca ninguém me tinha oferecido antes um preço tão alto pelas ações. Disseram-me que era isso [5 euros] que o americano pagava, mas não me sinto traído. Anda-se nesta vida para ganhar dinheiro».

As minutas do contrato-promessa de compra e venda, que seriam subscritas por Textor e José António dos Santos, estavam prontas a 11 de junho último, chegando o norte-americano a Portugal logo quatro dias depois, para se alojar no Hotel Ritz, na capital. Ribeiro e Janela estiveram presentes no Ritz no encontro de Textor com o ‘Rei dos Frangos’ para a assinatura dos papéis, mas Vieira, devido à importância de manter a confidencialidade da venda das ações, não compareceu. O presidente do Benfica apareceria apenas numa reunião mais discreta, no dia seguinte, nas instalações da Avibom em Torres Vedras, onde, além do dono do grupo e de Textor, também estariam, de novo, Ribeiro e Janela.
Esta não foi a primeira vez que Luís Filipe Vieira jogou ao gato e ao rato com a CMVM. No ano passado, Vieira iniciou um processo de OPA (Oferta Pública de Aquisição) em que o Benfica pagaria 5 euros por ação do capital da SAD (representando um encaixe significativo para José António dos Santos, por exemplo, assim como para outros grandes acionistas), mas a comissão reguladora encontrou irregularidades na operação e acabou por chumbá-la.
Em alternativa, o presidente do clube e o ‘Rei dos Frangos’ resolveram procurar no estrangeiro um investidor interessado em adquirir uma participação qualificada na Benfica SAD, mas de forma confidencial, para que – suspeita o MP – fossem os únicos a lucrar com a operação. Houve contactos com empresários russos e com o grupo chinês Alibaba, mas Textor acabou por ganhar a corrida, depois de Laurie Pinto, funcionário de um banco londrino, que já conhecia Hugo Ribeiro, comunicar aos homens de Vieira a disponibilidade de o norte-americano investir no futebol europeu (tendo começado por se tornar coproprietário do clube inglês Crystal Palace).

Comissões nunca vistas

John Textor, que na passada quinta-feira se encontrou em Lisboa com a nova direção, recém-eleita, do Benfica, presidida por Rui Costa (antigo vice-presidente de Vieira), para estudar a possibilidade de avançar com o negócio, desconhecia o valor exorbitante das comissões que estavam a ser planeadas. Numa entrevista dada ao Nascer do SOL no passado mês de julho, o milionário afirmou que «habitualmente, as comissões vão de 1% a 6%. E se o valor de uma transação for muito elevado a percentagem diminui». Na altura, o empresário justificou também não ter comunicado o negócio e os contratos assinados com José António dos Santos pela convicção de que só se poderia concretizar com o aval do Benfica, visto ter interesse noutros clubes. Textor viria posteriormente a remeter a informação à CMVM. 

Textor vai à bola e ações do Benfica batem recordes

Esta semana, o empresário conseguiu finalmente o encontro com o Benfica, que reclamava há vários meses, e assistiu ao Benfica-Bayern Munique. Foi convidado para um camarote mas, ao que o Nascer do SOL apurou, optou por ver o jogo no meio dos adeptos. «O encontro decorreu de forma cordial e o sr. John Textor ficou de enviar informação adicional sobre as intenções que tem para o Benfica, para posteriormente serem objeto de avaliação e análise por parte da direção. Não está prevista, por agora, qualquer nova reunião com o sr. John Textor», informou o clube, que quer em concreto mais informação sobre os planos do americano para cotar a SAD benfiquista na bolsa de Nova Iorque. 

Na entrevista ao Nascer do SOL em junho, Textor disse acreditar que as ações do Benfica podem valorizar para os 65 e 70 euros com a negociação em Wall Street, onde acredita que os investidores veriam no Benfica uma «grande história». Na altura, as ações do Benfica estavam cotadas a 4,12 euros na Euronext, valor que subiu entretanto para os 5,42€ – o dobro do que valiam no início do ano. As ações da SAD benfiquista estão mesmo em níveis máximos históricos desde que o clube entrou na bolsa em 2007, à época com as ações a valer 3.05 euros. Chegaram a cair abaixo de 40 cêntimos há nove anos, com um mínimo histórico de 32 cêntimos a 12 de dezembro de 2012.

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