José Cid: “Sou provocador, mas mentiroso não sou, é por isso que as pessoas gostam de mim”

José Cid abriu-nos as portas da sua Quinta em Mogofores, Anadia. É na tranquilidade da sua casa, e ao lado da mulher, Gabriela Carrascalão, que viajamos pelos seus quase 80 anos de vida e mais de 60 de carreira. Continua a sonhar com palcos e música, aquela que nunca deixou de encher as principais salas…

Quais são as recordações que tem da sua infância, primeiro na Chamusca e, mais tarde, aqui, na Anadia, para onde se mudou com 11 anos?

Nasci no Ribatejo, na Chamusca, e quando o meu avô morreu viemos para aqui, para esta área, para Mogofores, mas eu continuo a ir com muita frequência à Chamusca. Tenho lá muitos amigos. As recordações que tenho da minha infância na Chamusca são com os meus amigos, eu não brincava com os meninos lá da terra, brincava com os rapazes da rua, diziam asneiras e brincavam muito mais, corriam muito mais, jogávamos à bola… Quando havia cheias – agora estão muito mais controladas, mas naquela altura havia três cheias por ano – nós fazíamos jangadas de cana e íamos até ao Tejo… Olha, uma vez íamos morrendo…

Tinham que idade?

Éramos muito miúditos. Nessa altura 9 anos, 10…

Havia muita liberdade?

Muita. No sentido de correr na rua, de brincar na rua… 

E depois mudaram-se para aqui [Anadia]…

Aqui fiz novos amigos, ainda tenho alguns desse tempo de infância… Agora são rapazes com 75, 80 anos. Vemo-nos por aí nos cafés da terra e com alguns falo com frequência.

E como foi essa mudança na altura?

O meu pai tinha ido casar à Chamusca com uma senhora Cid, e ali fez a sua vida. Fez uma fábrica de concentrados de tomate – vendeu na guerra concentrados de tomate para os alemães, Portugal era neutro e o negócio era esse. Depois, quando o meu avô morreu, em 1950, herdou esta casa, que era uma casa agrícola bastante considerável – talvez a maior aqui do concelho – e veio para aqui trabalhar, com a minha mãe, a repor as vinhas e a adega. Vim com eles…

Mas foi durante quatro anos para o Colégio Jesuíta, em Santo Tirso.

Onde também estava o Pinto da Costa.

Foi aquilo que se costuma chamar ‘menino de colégio’. Era bom aluno?

Era muito bom aluno em letras. E em desporto também era dos melhores. Mas em ciências… era muito complicado: era muito mau aluno a matemática, em física… Era bom nas línguas: falava muito bem francês. Também era ótimo aluno na disciplina de história.

Então não deu muitas dores de cabeça aos seus pais…

Não. Não dava. Nenhumas. Era um miúdo que andava sempre fora, de bicicleta, nas árvores… Mas não criava problemas. 

E mais tarde vai para a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Ainda antes, já em Coimbra, faço o 5.º, 6.º e 7.º anos [atuais 9.º, 10.º e 11.º anos, não havia então 12.º ano]. 

Como foi viver a adolescência em Coimbra no início da década de 1960?

Já era o vocalista das bandas, já era a coqueluche…

[José Cid vai-nos mostrando os vários cantos da sua quinta, e destaca as duas árvores Sycamore, cada uma «com mais de 200 anos». Segue-se a apresentação de uma das grandes paixões da sua vida: os cavalos]

– «Olhem, aqui está a Nicky, a égua com pedigree superior à Rainha de Inglaterra», atira. «Tem 15 anos». 

[Enquanto a égua Nicky recolhe novamente a cabeça para dentro da cavalariça, Cid desvia a nossa atenção para o terreno verdejante do lado contrário]

– «Ali está o irmão do melhor cavalo do mundo, o Pop Cornet Cid. Tem dois anos e meio. É um rapazito. Aos quatro anos começam a vida desportiva».

[Apanha maçãs e dá a ambos, apresentando-nos de seguida os faisões, os patos e gansos, os pavões, os galos e as cadelinhas que por nós vão passando]

– «Os simpáticos e engraçados são os patos. São os bichos mais engraçados que há. São amigos. Todos comem maçãs. Estas são muito baratas».

Relembrando ainda a vida em Coimbra…

Ah, era fantástica! Música, música, música, música… E desporto. Mas estudar… está quieto. Estudei quatro anos em Direito e fiz duas cadeiras.

Porquê Direito? Influência dos pais?

Foi, foi… Epa, eu não tinha jeito nenhum para aquilo. A vida era mais boémia. E desporto. Vivia numa República com amigos.

É lá que, aos 17 anos, compõe a primeira canção?

Escrevi o Coimbra Antiga, o tema era bem interessante. Quando estou com amigos daquela geração ainda toco alguns desses temas. 

E como é que os pais reagiram?

Proibiram-me, não queriam que eu cantasse. Eu cantava nas festas universitárias. E tive que mentir aos meus pais. Mais à minha mãe, que era mais critica. Dizia que o dinheiro que ganhava era para ajudar pessoas necessitadas e para a caridade. Então lá a convencia de que era boa ideia. Mas não era nada. Nós os cinco [Os Babies, grupo musical que criou em 1955, aquele que marcou o início da sua carreira] tínhamos uma casa onde já sustentávamos uma rapariga que trabalhava para nós [gargalhada]. Mais ou menos três anos depois integro o… 

Conjunto Orfeão.

Com o Zé Niza, o Rui Ressurreição, que era um pianista extraordinário, e com o Daniel Proença de Carvalho.

Tinha 18 anos, mas já sabia bem que o seu caminho teria obrigatoriamente que passar pela música.

Sim, os meus pais tinham mesmo que ‘tirar o cavalinho da chuva’. 

Foi um desgosto muito grande para os seus pais?

Foi um desgosto. A única pessoa da minha família que esteve sempre ao meu lado, do princípio ao fim, foi a minha irmã mais velha [Maria de São João], que morreu este ano. Escrevi-lhe uma música, que está neste meu novo álbum de rock sinfónico, Vozes do Além. [Pausa] Mas entretanto deixei Coimbra…

… E deu um novo rumo à sua vida, tendo integrado o Instituto Nacional de Educação Física. Como aconteceu essa mudança?

Eu adorei o curso de Educação Física. Fiz esse curso no antigo INEF [Instituto Nacional de Educação Física]. Fui aluno do professor [Mário] Moniz Pereira, que gostava muito de mim porque eu fazia triplo salto razoavelmente, lançava o martelo razoavelmente, corria os 100 metros razoavelmente… Mas nunca fui bom, bom, bom em praticamente nada [risos]. Este [curso] praticamente terminei. Faltaram-me duas cadeiras no fim, peguei-me com o examinador na altura, achei que estava alcoolizado, e não aceitei estar a ser examinado por uma pessoa assim… Estive três anos na área do desporto, através da Força Aérea. Depois veio o 25 de abril. Mas vamos para dentro [de casa] que o sol está muito perigoso.

[O relógio marca 13h49min e o termómetro 30ºC apesar do calendário garantir que estamos a 19 de outubro]

– «Vou mostrar-vos uma coisa engraçada». No hall da entrada, José Cid senta-se numa de duas cadeiras iguais: «Esta cadeira onde estou sentado – e aquela – são históricas. O meu bisavô casou com uma senhora Lebre. Em 1810, os Lebre eram a família mais poderosa da Mealhada, eram monárquicos. Estas duas cadeiras eram da casa dos Lebre. Na parte detrás tem escrita a história destas cadeiras. Para terem uma ideia, na altura, o bispo de Coimbra pediu dinheiro ‘emprestadado’ aos Lebre para ir cumprimentar Napoleão a França. 

[Convida-nos a passar à divisão situada à esquerda, a sala, onde salta à vista a lareira em Arte Nova e revela que é o espaço da casa onde passa a maior parte do tempo com a sua mulher, Gabriela Carrascalão, ex-jornalista e pintora]

– «Não encontras em casa nenhuma uma lareira como esta, Arte Nova. Mas nós nem acendemos, que esta casa é toda em madeira, se deita uma fagulha, vai a casa toda atrás. Olha, ali em cima uma fotografia da minha irmã de que te falei. A minha outra irmã, que era embaixatriz, andava sempre de Chanel e de pérolas, contestava-me sempre, ela [aponta novamente para a moldura onde tem a fotografia de São João] esteve sempre do meu lado, sempre. Ela é que foi verdadeiramente a minha mãe.

Seguimos guiados por José Cid para nova assoalhada, e entramos no salão, onde tem o piano e o órgão. Não demora a presentear-nos com algumas canções e improvisos. Explica ainda que o espaço tem sido aproveitado para gravar um programa que já propôs às televisões.

– «Chama-se Lusco-Fusco. A Gabriela é a apresentadora e tocamos ao vivo. O primeiro programa foi feito com o Luís Represas e o Paulo Praça. Cantei com eles e cantei sozinho. É um programa musical, cultural, enriquecedor, divertido até. Sem qualquer tipo de socialite. Vamos ver se aceitam e se aprovam a ideia, até agora não tivemos respostas».

Cada passo que damos, cada canto com uma história para contar, fosse um quadro,uma escultura ou uma fotografia. E o sofá amarelo do lado oposto do salão não foge à regra. Bem-disposto, Cid recorda a célebre fotografia, tirada há mais de 25 anos, quando posou nu para uma revista social, apenas com um disco de ouro a tapar as partes íntimas.

– «Ali está o sofá daquela célebre fotografia. A fotografia em que me despi… de preconceitos. Agora não me dispo, tenho uma ‘barriguça’. Ali estava um atleta», diz, divertido.

Volta para o piano.

 – «Escrevi uma música muito bonita sobre isto: 
Amor/ Despido de preconceitos/ Com todos os meus defeitos/ De braços caídos não sei ficar/ Talvez conseguisses agarrar/ Talvez conseguisses agarrar/ A ideia que eu quis deixar no ar/ A nú/ A criança que há em mim/ Adormeceu no jardim/ E sonhou que ainda é possível amar/ A nú/ Acordei homem já feito/ Num mundo que eu não aceito/ Onde os rios é que nascem no mar/ Onde os rios é que nascem no mar.

– «Nunca a cantei ao vivo. Chama-se A Nu, precisamente por causa do choque [da fotografia]. Metade da população em Portugal achou engraçadíssimo e rebelde. Outra metade achou um escândalo. E eu expliquei que não estava nu, mas que estava, sim, despido de preconceitos».

Aproveitando este momento musical, na sexta-feira [15 de outubro] deu um concerto no Campo Pequeno e era impossível não reparar na variedade do público, o verdadeiro dos 8 aos 80 anos. Cantou durante mais de duas horas e meia. Onde vai buscar tanta energia a menos de quatro meses de celebrar 80 anos?

O Júlio Isidro – que estava na primeira fila – mandou-me uma mensagem incrível, a dizer que estava de boca aberta com a [minha] resistência… Eu disse-lhe: «Cantar para mim é como tu fazeres um programa de televisão». Eu no dia a seguir fazia um concerto igual. Não tenho problemas vocais. Além disso, nunca fumei, nunca me droguei, nunca bebi álcool, sempre fiz desporto… Durmo imenso, no mínimo 11/12 horas, e às vezes ainda vou dormir a sesta. Recupero muito bem. Isso é essencial. 

Como vê a música em Portugal?

Metade dos cantores aqui em Portugal não cantam, usam o Auto-Tune. Lá fora, igual. Em Portugal há 20 cantoras nos subúrbios do Porto e de Lisboa que cantam melhor do que a Madonna. Tem a voz trabalhada em estúdio até às orelhas. Em Portugal há alguns que não têm uma super-voz, mas que têm tanta expressão e dizem as coisas tão bem… Depois há aqueles que são considerados artistas e não são, não são poetas nem nunca o serão… A grande diferença nos cantores, na minha opinião, está entre os que são poetas e os que não são. Os que escrevem a sua própria poesia é de louvar. É um patamar artístico muito alto. Há muitos que cantam bem e tocam bem, mas não são poetas. O caso do Rui Veloso, por exemplo. Tem grandes canções, mas não é poeta. Poeta é o Carlos Tê. O Elton John não é poeta. Poeta é o Bernie Taupin. Mas em Portugal também há quem seja. Mas, por exemplo, o Zeca Afonso, como é que nunca recebeu um prémio mundial? Devia ter sido nomeado na altura Prémio Nobel da Música, da Arte ou da Poesia, e já foi nomeada gente com muito menos valor do que ele.

Acha que também já devia ter sido distinguido com outro tipo de prémio, além do Grammy Latino de Excelência Musical que venceu em 2019 [foi o segundo português a ser distinguido, depois de Carlos do Carmo]?

Não, não… Há muita gente em Portugal com muita qualidade e que também podia ter recebido esse Grammy Latino. Recebi esse Grammy por causa da minha obra gravada em castelhano, em honra à poesia de Federico García Lorca, e o álbum 10.000 anos depois entre Vénus e Marte. As pessoas perceberam que está ali alguém que canta. Gravações completamente analógicas. Não há cá playback, backing vocals… As pessoas que estão ali percebem que não estão a ser aldrabadas. Que o que está ali a ser disparado é nada mais do que os músicos a tocar e o cantor a cantar, cada um a fazer o melhor possível. 

É o JC7 da música portuguesa?

Tenho a maior admiração pelo Ronaldo. É um homem que se fez por si. Mas teve uma mãe que sempre o ajudou. Eu nunca tive. Antes pelo contrário. Vou contar uma história que nunca contei antes. A Amália nunca foi muito simpática comigo na Valentim de Carvalho. Nem ela nem o grupo dela. Eu era muito jovem, vendia mais do que ela, tinha outro protagonismo, tinha os discos de ouro que ela não ganhava. E não encaixou isso muito bem. Um dia a Amália veio aqui para casa, passar quatro dias, porque estávamos a gravar um programa os dois para a televisão francesa. A minha mãe, que nunca gostou de me ouvir cantar e que contestou sempre a minha carreira, ficou cúmplice da Amália e contra mim. Quando a Amália se foi embora, a despedir-se, disse-me: «Onde é que eu teria chegado se tivesse tido uma mãe como a sua». E eu respondi: «Oh Amália, mais longe é impossível. Nunca ninguém foi mais longe no mundo do que a Amália na sua geração. A Amália deve ter a noção que é a cantora número 1 da sua geração no mundo inteiro. Agora, se fosse filha desta senhora que está aqui ao seu lado, e lhe dissesse aos 17 anos que quer ir para Lisboa cantar fado, levava um enxerto de pancada, mas daqueles, e era fechada a sete chaves no terceiro andar da casa e estava lá um ano fechada que não conseguia sair de lá». Que era o que a minha mãe poderia fazer se eu não andasse de bicicleta e fugisse no cavalo da carroça. Só aparecia à noite para tomar banho. A minha mãe sempre contestou a minha carreira. O Ronaldo teve essa vantagem. Sempre teve uma mãe amorosa, que sempre gostou dele, sempre o apoiou. A minha mãe talvez tenha apanhado um filho mais teimoso do que o Ronaldo. 

Nunca, em nenhum momento, a sua mãe se arrependeu e mostrou orgulho na carreira que foi construindo?

Nunca, nunca. Nem ela, nem a minha irmã embaixatriz. 

E a relação com a Amália nunca se apaziguou?

A Amália não gostava de mim, mas eu gostava dela. Ainda me pediu dois temas, que fui a casa dela entregar – A Rosa Que Te Dei e o Junto À Lareira – mas teve os temas dois anos em casa e nunca os gravou. E também nunca me deu satisfações. Mais tarde gravei-os e foram dois êxitos. Mas acho que só a Amália poderia cantar os meus temas melhor do que eu. Por exemplo, o Tony De Matos gravou o Junto À Lareira… Foi bem mas não foi o meu patamar. Só a Amália poderia fazer melhor do que eu. Amália é… única, única. Mas tive outras amigas incríveis: a Hermínia Silva era muito minha amiga, no meu último álbum faço-lhe uma homenagem. A Natália Correia… também lhe faço uma homenagem. Adorava-me. Ao contrário de Ary dos Santos porque eu nunca gravei nada dele. Eu achava-o genial. Mas era demasiado: eu dou-te os meus poemas, mas estou a fazer-te um favor. Não gostava. A Natália não. Era culta e interessante. Às vezes tinha que lhe pedir para me explicar outra vez porque não alcançava. Ao Ary agradecia, mas dizia-lhe que tinha a minha própria poesia, e que a Natália me dava vários poemas, e que tinha quatro ou cinco colegas que cantavam tanto ou mais do que eu. Não levou isso a bem. Era genial, mas tinha um feitio…

Poemas da Natália Correia que também podem ser encontrados neste novo álbum Vozes do Além, o regresso ao rock sinfónico passados 43 anos sobre a edição do álbum Dez Mil Anos Depois Entre Vénus e Marte.

O Vozes do Além é um álbum também sobre a poesia ser mais forte do que a morte, a possibilidade de deixar um legado… Logo na abertura do álbum. O primeiro tema é da Natália Correia e o segundo da Sophia de Mello Breyner. A ideia é que todas têm uma opinião muito concreta e diferente sobre a vida depois da morte. São 20 temas escritos por 15 poetas geniais a falarem sobre isso – a vida depois da morte e o regresso à vida depois da morte. Todos opinam, e eu também, mas eu sou um dos cinco mais rebeldes. Digo que não há inferno…

Aos 80 anos, estes temas assaltam os pensamentos de forma inevitável e mais regularmente?

Acho que sim. Mas eu penso que não pode ser passar disto ao zero. Tem que haver outra coisa qualquer. Mas Deus não revelou isso, a Igreja Católica também não quer revelar – em vez de proibir violentamente a pedofilia na Igreja pensa noutras coisas… 

Como viveu a pandemia, nomeadamente os períodos de confinamento mais severos?

No estúdio, maioritariamente a gravar o Vozes do Além. Venham ver o estúdio. 

[Já depois de uma passagem rápida pela cozinha para forrar o estômago, com direito a tostas de patê e leite, subimos ao 2.º andar, contando quase 50 degraus, uma espécie de fisioterapia que José Cid faz todos os dias, quase sempre três vezes por dia. Mostra-nos o espaço onde tudo acontece e onde são produzidos vários dos seus temas].

Falemos de outro trabalho que está cada vez mais próximo de ver a luz do dia: Tozé Cid, o álbum que irá dividir com o amigo de longa data Tozé Brito.

– «Vai ser um projeto com temas do Quarteto 1111, temas menos conhecidos, e alguns que foram censurados».

À saída do estúdio, Cid agarra o cachecol do Benfica para levar para o carro, e justifica-se.

– «É para não me esquecer. Amanhã vou ao estádio ver o jogo com o Bayern [jogo a contar para a fase de grupos da Champions, disputado na última quarta-feira, dia 20 de outubro]».

Gosta de ir ver os jogos ao estádio?

É das poucas vezes que vou. Fui mais uma ou outra, mas não costumo ir.  

Passamos por um corredor comprido, repleto de quadros de Gabriela Carrascalão, e Cid conduz-nos numa espécie de exposição caseira – com direito a explicações detalhadas sobre algumas das obras expostas -, antes de contar uma nova história caricata. 

– «Ali, no 3.º andar, é só o campanário… e as bruxas. A malta timorense tem um pavor das bruxas… Esteve cá o José Ramos-Horta [Prémio Nobel da Paz em 1996, ex-Presidente da República Democrática de Timor-Leste  e primo da mulher Gabriela], naquele quarto [aponta para um dos quartos] e diz-me assim no dia a seguir: «Eu não consegui dormir, estive sempre com as luzes acesas à noite, porque ouvi barulhos e os fantasmas…». E eu respondi-lhe: «Fantasmas? Tomara eu que me aparecesse a minha avó!».

E a conversa segue com um dos prazeres pessoais do cantor: peças Bordallo Pinheiro. 

– «Como sou um pequeno colecionador de peças de Bordallo Pinheiro, um dia disse numa entrevista que a minha tia tinha um peru antigo de Bordallo Pinheiro, lindíssimo, nem tinha a peça na sala, tinha numa copa, antes da cozinha. Não ligava nenhuma àquilo. Então eu propus-lhe uma troca de duas peças de prata que eu tinha – até mais valiosas – por este peru. Mas a minha tia disse-me: «Não, não que isto dá-me um jeitão para por aqui velas e fósforos…». E eu disse: «Mas eu dou-lhe uma caixinha muito linda, com dourados e tudo, para a tia pôr isso e trocamos». Não, não, não… E assim ficou. Certo dia eu recebo uma chamada da Vista Alegre a dizer que iriam buscar aos arquivos de molde, nas Caldas da Rainha, o peru e que iriam voltar a fazer novamente a peça e que o primeiro que fizessem que me ofereciam. E assim foi.

O que mudaria no sistema português se tivesse esse poder?

Era preciso que eu fosse ministro da Cultura para pôr as coisas na ordem, para pôr o IVA sobre os discos e os instrumentos musicais mais baixo, a aprendizagem de coisas interessantes nas escolas, para que os rapazes e as raparigas se interessassem por música, para perceberem que temos uma alma que é nossa, mas que está perdida por um sistema acultural. Apoios musicais e culturais não são suficientes. São precisos apoios de base, de raiz. Esses apoios não têm acontecido. Falta-nos um ideal cultural, que era preciso defender intransigentemente. Eu defendo ideais das novas gerações. Eu protegeria as novas gerações de uma forma completamente diferente. Somos o melhor público e o melhor povo do mundo. Temos direito a ser geridos de outra forma. A democracia portuguesa tem que ser empurrada para os sistemas do norte da Europa. São os países com menos corrupção, mais nível cultural e melhor nível de vida.

É também conhecido por alguns comentários polémicos – um que fez correr muita tinta foi em 2016, com uma referência aos transmontanos; ou com os comentários que chegou a fazer sobre o Salvador Sobral -, mas apesar disso não deixa de ser uma pessoa que gera consenso. Qual é o segredo?

Sou provocador, mas mentiroso não sou, é por isso que as pessoas gostam de mim! Eu pedi desculpa e houve gente que até disse que nem tinha que pedir. Em relação ao Salvador Sobral, é um extraordinário cantor. Falta-lhe escrever boa poesia. Faz poesia mas a poesia não é tão sublime como a voz dele. A poesia é algo que nasce com as pessoas. Há pessoas que têm as musas do outro lado do rio a tomar banho nuas, mas que depois não têm nem barquinho a remos, nem têm binóculos, nem sabem nadar para ir ter com as musas. É o que acontece a muita gente. Acontece muito ao Salvador. Que tem uma voz e uma musicalidade espantosas, mas falta-lhe escrever uma grande poesia. Precisava de uma poesia mais à frente, mas é realmente uma pessoa que eu admiro imenso. O Salvador fez agora uma versão de um tema meu, do meu primeiro álbum, um tema que tinha sido proibido em 1970. Fez uma versão interessante, mas não é tão boa como a minha. Assim como o Jay-Z [incluiu excertos da música Todo o Mundo e Ninguém, do grupo Quarteto 1111] no álbum 4:44, também fez algo interessante, mas também não é tão bom como o nosso. É interessante sobretudo pelos direitos de autor que vamos [José Cid e Tozé Brito] receber dele. Mas ele não percebeu que estava a cantar um génio que se chama Gil Vicente. Não percebeu, nem lhe passou pela cabeça. Os portugueses ainda não perceberam que Gil Vicente é muito mais interessante do que Shakespeare. Gil Vicente é muito mais atual, muito mais contundente, muito mais rebelde…

 E…

Ah, e recentemente um concorrente do reality show da TVI decidiu inventar que eu era homofóbico. A última coisa que eu sou. Sou a única pessoa em Portugal – e talvez no mundo – que escreveu sobre essa ideia. Tenho um tema, o Lobos e Andorinhas, em que defendo a ideia de que todas as pessoas têm o direito de se realizarem afetivamente como entenderem, desde que subam as escadas e fechem as portas. Agora há certas coisas que o lobby gay quer impor e com que eu não posso estar de acordo. Relativamente à adoção de crianças, sou mais aberto se se tratar de uma relação entre duas mulheres. As mulheres são mais maternais, mais cuidadoras. Os homens vão ter que levar as crianças  às escolas e as crianças são terríveis, quando perguntarem: ‘Onde é que está a tua mãe?»… Destroem essas crianças. Claro que pode haver exceções. Mas o que eu acho que é heróico é um homem e uma mulher casarem e terem um filho e lutarem a trabalhar, desalmadamente, para sustentar e dar um futuro ao filho. Isso para mim é que é heróico.

Passaram mais de 60 anos de carreira e com eles muitas fases diferentes. Como foi viver desde a censura – que sentiu – até aos dias de hoje?

Através destas transformações todas vim percebendo até onde é que eu ia e onde eu queria chegar se tivesse saúde, e Deus deu-me essa saúde. E foi um bocadinho perverso até. Muita coisa só tinha que esperar, e com um sorriso na boca. Porque há uma coisa que ninguém me tira: o público.

Muito perto de completar 80 anos, tem algum grande sonho ainda por cumprir?

Celebrar 80 anos com saúde e fazer um grande concerto nesse dia. E lançar um novo álbum que se vai chamar Depois Logo Se Vê… É um bom título para um álbum, não é?! l