Marcelo Rebelo de Sousa é uma espécie de Branca de Neve dos tempos modernos

Tudo tem uma explicação, até nas histórias de encantar. Cada um de nós tem dentro de si um instinto que o impele a lutar pela vida. 

Marcelo Rebelo de Sousa é uma espécie de Branca de Neve dos tempos modernos. Não passa sem os beijos dos príncipes mas não é qualquer maçã, por mais vistosa que seja a sua aparência, que lhe passa pelo estreito sem ser devidamente vistoriada.

António Costa, ou o Encantador de Serpentes, levou-lhe este mês uma tão bela peça de fruta que até o rei mais esquisito folgaria em comer. Mas o beija-mão, que costuma adormecer os sentidos do presidente, provocou-lhe de imediato um galopante eczema, o olho afundou, a íris azulada deu, num segundo, trezentas voltas na órbita, e o olfato de perdigueiro farejou a peçonha.

No dia seguinte, o Presidente, como é seu hábito, recorreu aos jornais para pôr termo aos devaneios perigosos do primeiro-ministro. Era uma quarta-feira, e pode-se considerar que aquele dia treze de outubro foi mesmo azarado para o Governo PS, quando numa notícia do Observador o presidente fala pela primeira vez na hipótese de o país ter de ir para eleições antecipadas caso o orçamento do Estado para 2022 fosse chumbado enquanto avisava que era contra a solução de governar o país em duodécimos. Talvez ainda lá chegue, mas por ora o presidente não é bruxo. Quem lhe teria apresentado essa “solução” a não ser o próprio primeiro-ministro?

Tudo tem uma explicação, até nas histórias de encantar. Cada um de nós tem dentro de si um instinto que o impele a lutar pela vida. Logo a seguir às autárquicas, António Costa percebeu que não podia mais contar com o PCP que, nos seis anos de “ménage à tróis”, perdera a força muscular do eleitorado tradicional e agora ou vai a banhos ou se obriga a fazer um retiro para se tentar recompor das modernices. Com o Bloco de Esquerda, cada vez com menos carnes, a relação com o primeiro-ministro não só já não existia como azedara havia um ano. Não podia contar com os antigos parceiros nem nos sonhos mais promíscuos.

E aí, com pezinhos de lã, e armado das suas subtilezas políticas o Encantador de Serpentes lembra-se da maçã e da Branca de Neve. Queria tudo menos uma crise, queria tudo menos deixar de governar, queria tudo menos eleições antecipadas e sopra-lhe a ideia de um Governo em duodécimos. O presidente não viu nesta tentativa de forçar o desvio do destino coisa de gente com siso e deixou o alerta que poucos perceberam.

Duas semanas deste aviso, no desfecho do discurso do primeiro-ministro no encerramento do debate parlamentar do Orçamento, quando já não havia dúvidas sobre o destino do diploma, escutou-se a flauta, dançou a serpente.”Cá estará o Governo para garantir condições de governabilidade, mesmo em duodécimos”, afirmando António Costa mesmo sabendo que o presidente não alinharia. 

Desde daí a flauta não tem descanso. Até os sete anões parecem atoleimados. À esquerda, como se as incandescências do álcool lhes tivessem subido ao cocuruto, os partidos que retiraram a confiança ao governo querem agora que fique, que governe seja lá qual for o modelo desde que não os comprometa, e acusam o presidente de ingerência. Foi com ideias destas que António Costa venceu em tempos. Dos partidos à direita pouco há para dizer: só lhes falta a liga, a faca, o alguidar e encomendar o responso.

Marcelo Rebelo de Sousa de tanto merecer, nem merecia