Aqui estamos prontos para o sacrifício

Não se pode relativizar o envolvimento de tropas de elite nacionais em redes de tráfico de diamantes, ouro e droga internacionais

É demais. E o que é demais é moléstia. E a moléstia maior é das Forças Armadas e, em consequência, do Estado e da Nação.

Por mais que o Presidente da República e o Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas (CEMGFA) procurem relativizar o envolvimento de militares portugueses em missão no estrangeiro numa rede internacional de tráfico de diamantes, ouro e droga, trata-se de um caso gravíssimo, com inevitáveis consequências para a imagem de Portugal e da Defesa Nacional.

Marcelo Rebelo de Sousa e o almirante Silva Ribeiro podem enaltecer os feitos heroicos dos militares portugueses integrados nas forças da NATO e da ONU, os salvamentos da Marinha portuguesa em águas internacionais, tudo e mais um par de botas.

Mas não podem relativizar a gravidade e o impacto negativo do caso Miríade.

O que se passou com tropas ditas de elite de Portugal integradas nas forças das Nações Unidas na República Centro Africana não pode deixar de envergonhar os mais altos responsáveis da hierarquia militar, a começar pelo Comandante Supremo das Forças Armadas (o Presidente) e pelo CEMGFA. 

Porque nos envergonha a todos.

Um caso isolado, argumentam.

Nada de mais errado.

Primeiro, nos últimos anos têm vindo a suceder-se os ‘casos isolados’ com dimensão de escândalo nas Forças Armadas portuguesas.

A começar pelo surreal caso do roubo de material de guerra de Tancos, que desacreditou o país e as suas forças militares perante os seus aliados, pela manifesta incapacidade de estas assegurarem a inviolabilidade dos seus paióis de armas nacionais. 

Quando os militares de um país não conseguem garantir a segurança das suas próprias armas e do seu material bélico e de guerra, estamos à espera de quê? Responder que o material roubado é obsoleto é tão absurdo – e prejudicial para a Defesa Nacional (por que estarão os paióis nacionais cheios de material obsoleto?) – como pretender menorizar comportamentos criminosos de militares portugueses no exercício das suas funções e utilizando os meios e prerrogativas das forças e missões em que estão integrados, neste caso dos Capacetes Azuis.

Depois, deu-se a farsa do ‘achamento’ das armas e munições roubadas em Tancos – patética encenação que envolveu altas patentes da Polícia Judiciária Militar.

Mas houve mais: o caso escandaloso das messes com o envolvimento de altas patentes (incluindo um general, condenado a seis anos de prisão) num mega esquema de corrupção e fraude às FA’s e ao Estado.

Já para não falar de casos como o que envolve o Hospital Militar e muitos outros, bem mais significativos, como os da compra de submarinos, ou de viaturas militares, ou de armas, de munições e até de fardas.

E em todos eles há uma constante: tanto as hierarquias militares como as políticas, nomeadamente quem tutela a Defesa Nacional e a Casa Militar do Presidente da República, prestam o mínimo possível de esclarecimentos públicos.

Sucedem-se, aliás, os casos de falta de comunicação entre as próprias cadeias de comando, tanto militares como políticas, e, em última análise, ninguém sabe de quase nada.

Enfim, fica a ideia de que, por todos eles, se fosse possível, abafava-se tudo.

Não será por acaso que até os cânticos e ‘gritos de guerra’ foram proibidos às tropas de elite. Sejam paraquedistas ou comandos.

E também não deixa de ser curioso que os comandos, que agora se veem manchados pelos diamantes, ouro e droga da República Centro Africana, tenham como um dos seus principais símbolos, além da boina vermelha, o grito ‘Mama sume’: uma expressão de África que significa ‘prontos para o sacrifício’.

O problema é que, nos dias que correm, tentar abafar o que quer que seja resulta sempre como a emenda em relação ao soneto, pior.

E não se resolve apenas com punições exemplares dos criminosos.

A desresponsabilização das chefias, militares e políticas, fragiliza as cadeias hierárquicas e, consequentemente, o comando. E com líderes fracos ou fragilizados, sem comando, o resultado é o que já salta à vista.

Nos últimos anos, não faltam os casos polémicos de abusos nos comandos pela violência física das suas provas de seleção ou recruta.

Ora, o perfil de um militar não se mede apenas pela sua força e capacidade de resistência física.

E é manifesto que a falta de perfil ou inaptidão começa exatamente em quem são os responsáveis pela seleção.

É um mal geral. Veja-se o exemplo noticiado há semanas pelo Nascer do SOL sem que tenha havido uma única reação pública: um bombista condenado a mais de 14 anos de prisão acabou jurado na seleção dos futuros juízes e magistrados do Ministério Público.

Daí o título desta crónica. Porque, aqui que ninguém nos ouve, bem podemos dizer todos o grito dos comandos: ‘Mama sume’!