“Um trabalhador estrangeiro é contratado para receber 800 euros e só recebe 400 euros. O restante vai para os angariadores”

Sindicato da Construção de Portugal diz que setor precisa de 80 mil trabalhadores e face à escassez da mão-de-obra há quem recorra a trabalhadores estrangeiros que chegam ao país através de redes ilegais. Estes trabalhadores recebem metade do salário ou nem recebem nada.

A falta de mão-de-obra é transversal a todos os setores, mas só a construção garante que precisa de 80 mil trabalhadores. Uma escassez que está a obrigar “muitas obras públicas e privadas a não avançarem” e a originar “situações de trabalho precário, clandestino e à criação de redes de angariadores”. A garantia é dada ao i pelo presidente do Sindicato da Construção de Portugal, Albano Ribeiro. “Já fui a obras, em que 70% da mão-de-obra são operários não qualificados e que vêm para Portugal através de angariadores com ramificações em vários países da União Europeia e não só. E esses trabalhadores são explorados face aos portugueses”.

E vais mais longe: “Um trabalhador estrangeiro é contratado para receber 800 euros e só recebe 400 euros. O restante vai para os angariadores”, acrescentando que há cada vez mais denúncias desta situação a chegar ao sindicato e há casos em que os trabalhadores nem sequer recebem nada. “Chegou-nos um caso a dizer que assinou um contrato com um angariador em cima de um capô de um carro e nunca recebeu nada. Se não se fizer nada vamos entrar numa situação selvática”.

Em causa estão, de acordo com Albano Ribeiro, trabalhadores que vêm da Índia, do Paquistão, do Brasil , entre outros. E não hesita: “Não há nenhum setor que tenha tanta falta de mão-de-obra como o nosso e a fileira da construção tem cerca de 450 mil trabalhadores, mas depois aparecem estas redes mafiosas a darem cabo do mercado”.

O presidente do Sindicato aponta o dedo não só à Autoridade das Condições do Trabalho (ACT) como também ao Governo, uma vez que, de acordo com o mesmo, continuam de braços cruzados apesar dos alertas feitos pela estrutura sindical. “A Autoridade para as Condições de Trabalho vai apenas às grandes obras, onde há engenheiros, arquitetos e uma direção de obra para serem recebidos. Não vão às pequenas, onde existe o trabalho precário, clandestino e isso fomenta esta situação.  Estamos quase perante um cenário de escravatura contemporânea no setor da construção e que ameaça aumentar vertiginosamente”. E dá mais exemplos: “Há trabalhadores brasileiros, por exemplo, que estão a trabalhar com os portugueses e os portugueses recebem o salário e os brasileiros não. Há uma empresa que chegou a enviar o recibo para o trabalhador e que ia fazer a transferência e o dinheiro nunca chegou”, refere ao i. 

Já os pedidos de reunião feitos ao ministro das Infraestruturas e do Trabalho não tiveram até à data qualquer resposta. “Já pedimos várias reuniões e nunca nos atenderam. Estão de olhos fechados para esta situação dos angariadores que exploram até à medula os trabalhadores que vem para aqui trabalhar”. E acrescenta: “400 euros na Índia é muito dinheiro, mas eles estão a viver em Portugal e têm de pagar pelos bens, alimentação e alojamento o mesmo que um trabalhador que ganhe dois mil euros. Esses trabalhadores estão a ser duplamente explorados”. 
A denúncia desta situação também já chegou à Embaixada da Índia e do Brasil, mas se a primeira mostrou-se recetiva em tentar perceber o problema, do lado brasileiro, “a resposta foi zero”.

Portugueses fogem A agravar ainda mais esta situação está o facto de os trabalhadores portugueses que são qualificados optarem irem para países onde pagam mais. “Antigamente falava-se em emigração, agora há um nome mais pomposo para isso: mobilidade”. 

E as diferenças salariais são significativas. “Os trabalhadores portugueses vão trabalhar para os países ricos, onde ganham quatro vezes mais do que aqui. Por exemplo, um engenheiro em Portugal ganha 960 euros, vai para Espanha e ganha 4500 euros. Um carpinteiro em Portugal ganha 720 euros, em Espanha ganha 2000 euros e na Alemanha 4500 euros. Além dos salários mais elevados têm também voos de baixo custo, em que saem de Portugal à segunda-feira e regressam à sexta-feira. Antigamente isso não era possível. E se na década dos finais da década de 80 e 90 havia muitos trabalhadores do Leste no nosso país, agora não há nenhum porque vão todos para a Alemanha, França, Bélgica e para todos os países que pagam mais”, refere ao i. 

De acordo com as contas do responsável, só nos últimos seis anos emigraram cerca de 300 mil trabalhadores, sendo que 15 mil são engenheiros e arquitetos. Para Albano Ribeiro, a par do aumento salarial, o setor tem também de acabar com as empresas “vão de escada” para acabar a concorrência desleal do setor e atrair o regresso dos trabalhadores portugueses. “Não são os empresários que ganham dinheiro são os ‘patrões’ que não cumprem as leis, não pagam subsídios, não têm meios de proteção nem individual, nem coletiva e, como tal, são a maior fonte do maior número de acidentes de trabalho. E por ano desviam milhões de euros ao Estado, alguns nem têm alvará, nem sede, nem número de telefone. O que precisamos para ‘salvar’ a atividade é ter empresários de pequena, de média e grande dimensão”.

E lembra que para fazer uma obra é preciso ter no local engenheiros, arquitetos, encarregados e técnicos de segurança, mas isso só acontece nas empresas que cumprem a lei. “Sabe quem vai pagar isso? Quem for consumir o produto final. Por exemplo, uma ponte que seja feita por essas pessoas não qualificadas não vai ter a durabilidade do que se fosse feita por pessoas especializadas. A mão-de-obra portuguesa que tem qualificação de muitos anos está muito envelhecida e o setor não é atrativo para os mais novos pelos salários que pratica”.

E estas ilegalidades acabaram também por ter reflexo durante a pandemia. “Muitos trabalhadores estiveram na linha da frente da covid. E morreram muitos a trabalhar para os ‘patrões’ e para angariadores. Não morreram a trabalhar para os empresários. Os patrões é que não cumprem com o Estado, nem com ninguém. Houve uma obra pública que parou 15 dias com dezenas de trabalhadores porque havia vários casos de covid. Desde a primeira hora que defendemos a realização de testes gratuitos, mas o primeiro-ministro também não respondeu . Foi por isso é que morreram tantos trabalhadores da construção. Se tivesse havido testes como pedimos se calhar podíamos ter evitado muitas mortes”, acrescenta ao i. 

Obras ameaçadas Face a esta falta de trabalhadores, Albano Ribeiro garante que muitas das obras que estão previstas não podem avançar. “O primeiro-ministro fala no novo aeroporto, fala em novos hospitais, mas está a mentir ao país porque não há trabalhadores para isso. E se não se tomarem medidas, também o Metro de Lisboa e outras infraestruturas estão ameaçadas por falta de mão-de-obra. Só há omeletes se existirem ovos”, conclui.