Todos estiveram mal

Nenhum militar pode desejar um lugar aberto pela demissão a trouxe-mouxe de um camarada de armas. Aí, Gouveia e Melo deveria ter dito: muito obrigado pela diligência, mas nunca aceitaria ser chefe do Estado-Maior nestas condições.

O magnífico trabalho feito pelo vice-almirante Gouveia e Melo à frente da task force da vacinação pôs os políticos – e os partidos – em xeque.

Mostrou que o responsável por uma exigente tarefa pública pode fazer melhor trabalho se estiver livre de amarras partidárias e apenas focado no interesse nacional.

Foi por estas e por outras que se deu o golpe de 28 de maio de 1926, que iniciou uma longa ditadura.

E a postura do vice-almirante fazia jus àquela ideia.

Recusava frontalmente a hipótese de vir a desempenhar cargos políticos, afirmando que recolheria aos quartéis quando concluísse a sua missão.

Acontece que, terminada a missão, Gouveia e Melo não regressou propriamente aos quartéis.

Começou a dar entrevistas a torto e a direito, a fazer declarações polémicas, a aparecer nos jornais e nas televisões.

Até à Web Summit foi.

Não parecia um militar mas uma estrela de rock.

E aí percebeu-se que queria alguma coisa mais do que o seu posto militar.

Os militares, por regra, são pessoas discretas, recatadas, avessas à exposição mediática e ao brilho das luzes.

Até que surgiu a insólita notícia da destituição do chefe do Estado-Maior da Armada para colocar Gouveia e Melo no seu lugar.

Ora isso não era digno.

Nenhum militar pode desejar um lugar aberto pela demissão a trouxe-mouxe de um camarada de armas. 

Aí, Gouveia e Melo deveria ter dito: muito obrigado pela diligência, mas nunca aceitaria ser chefe do Estado-Maior nestas condições.

Mas não disse nada.

Calou-se.

E agora veio a confirmação da ‘golpada’: em época natalícia, quando todo o país estava com a atenção focada noutros temas que não na política, António Mendes Calado foi sorrateiramente destituído da chefia da Armada, sendo nomeado para o seu lugar Henrique Gouveia e Melo.

E a cerimónia de posse foi bem a imagem do golpe: apressada (nem durou dois minutos), sem discursos, sem sequer a presença do chefe do Governo que o havia proposto. 

Um homem que todo o país aclamara viu-se empossado no novo cargo de forma quase clandestina.

Nesta novela, todos estiveram mal. Esteve mal Gouveia e Melo, pelas razões aduzidas. 

Esteve mal o Governo, pela instrumentalização que fez das Forças Armadas, usando-as numa manobra até hoje obscura.

A verdade é que a mudança apressada de chefe de Estado-Maior da Armada não se deveu a razões de interesse militar, como seria suposto, mas a outras, mal esclarecidas.

Foi para calar Gouveia e Melo, com medo que fizesse declarações politicamente inconvenientes?

Foi para o Governo se promover a si próprio, premiando um homem que tinha a simpatia do país?

Mas, se foi isto, não se percebe a ausência do primeiro-ministro na cerimónia. 

Aliás, em qualquer caso, essa ausência é inexplicável: não deveria a data da posse ter sido acertada previamente entre os principais protagonistas, de modo a poder estar presente o chefe do Governo?

Não se entende…

Esteve também mal o Presidente da República.

Perante a primeira tentativa de consumar esta substituição, em setembro, Marcelo deveria ter ficado de pé atrás.

E após a dissolução do Parlamento e a consequente queda do Governo, o mínimo que se exigia era esperar pelas eleições e pela posse do próximo Executivo para proceder àquela mudança.

Faz algum sentido que uma alteração na cúpula das Forças Armadas seja feita por um Governo com os dias contados e na prática já em gestão?

Faltou a Marcelo coragem para dizer «Não».

E por isso sai mal desta história.

Pode ter sido o momento em que perdeu o respeito dos militares – que gostam de firmeza dos líderes nos momentos decisivos.

Neste aspeto, o almirante Gouveia e Melo também dificilmente virá a ter a solidariedade e o apreço dos seus pares.

Quem assume o cargo assim, por sacrifício de um camarada, não pode ser muito apreciado.

Ironicamente, Gouveia e Melo, tendo-se imposto pelo contraste que estabeleceu entre ele e os políticos, deixou-se afinal envolver numa trama política montada por eles.

Finalmente, o Governo. Se pensava tirar alguns louros desta nomeação, também o tiro lhe saiu pela culatra.

A forma pífia, envergonhada, obscura como tudo se passou, acabou por ser vista como mais uma trapalhada em que o Governo desnecessariamente se meteu – funcionando contra ele.

Todos aqui estiveram mal – e vão sofrer por isso.