O programa abre com o jornalista José Carlos Megre, de cigarro na mão e óculos da época, a anunciar os moldes do debate. Seguiram-se as perguntas, introduzidas pela mão – que também não dispensava o cigarro – de Joaquim Letria. Estávamos em novembro de 1975: sem limite de tempo – “não poderemos estar aqui por muito mais do que, no máximo, vá lá, duas horas” -, o debate entre Mário Soares e Álvaro Cunhal, transmitido pela RTP nas barbas da revolução, tornou-se numa espécie de saint graal da história política portuguesa: dois homens de esquerda – um socialista, outro comunista – a deixarem bem claras as linhas que os separavam (numa altura em que os portugueses suplicavam por essas linhas). As tais duas horas ‘limite’ rapidamente passaram a 3 horas e 40 minutos, tendo o debate, que começara às dez da noite, acabado por volta da 01:40 da manhã (e porque as bobines de gravação esgotaram). Segundo uma estimativa do JN da época, três milhões de portugueses assistiram-no pela televisão e pela rádio, estando as ruas “completamente despovoadas” – relata o jornal A Luta – e as salas de cinema de Lisboa praticamente esgotadas. Toda uma situação que “não deslumbrou” Joaquim Letria, revela o jornalista ao i, passados quase 50 anos.
Entretenimento ou esclarecimento? À época, o país sentava-se para ouvir longos discursos da democracia. Hoje, a democracia fala em frases mais curtas. Dos 32 debates que serão transmitidos na televisão no âmbito das eleições legislativas, 29 rondarão os 25 minutos (são exceção o debate entre PS e PSD, que terá 75 minutos, e os dois debate interpartidários, com 120 minutos cada). Um número – 25 – que se torna ainda mais pequeno se comparado com o tempo de antena dado a programas de entretenimento: na RTP, na sequência dos 25 minutos atribuídos ao debate entre António Costa e Rui Tavares, foram atribuídos cerca de 180 minutos ao programa de entretenimento The Voice Portugal, ou seja, mais do que um séptuplo do tempo que foi dado à democracia. Note-se que a RTP não é caso único: a mesma disparidade de tempo de antena entre o entretenimento e o esclarecimento democrático é idêntica nos canais privados.
Os números não enganam: entretenimento Quanto a audiências, a discrepância é ainda maior. O segundo debate da noite de segunda-feira, às 22h45, na SIC Notícias, entre a Catarina Martins e André Ventura – que não é de importância menor, uma vez que disputam o terceiro lugar – contabilizou 192 200 espetadores. Ao mesmo tempo, a TVI fazia o seu pico de audiência, com quase dois milhões de espetadores a assistirem ao Big Brother Famosos, a SIC terminava o Hell’s Kitchen – que teve cerca de 1 264 300 telespetadores – e a RTP transmitia o The Voice Portugal, com 551 700 espetadores (fonte CAEM/GfK e Mediamonitor). Por outro lado, o debate entre Costa e Tavares, na RTP, teve maior audiência – 599 200 espetadores – do que o de André Ventura e Catarina Martins. Note-se, todavia, que este aconteceu logo após o Telejornal (sendo integrado no seu final) e nunca contemporaneamente a um programa de entretenimento em canal aberto.
“Os debates deviam ser mais interessantes” Joaquim Letria moderou inúmeros debates nos tempos mais fervilhantes da democracia portuguesa. Em conversa com i, o histórico jornalista discorda da ideia de hoje de estes terem de ser maiores – “para um bom debate, mais de meia hora é excessivo” -, embora note que deveriam ser mais “interessantes” e “ter muito mais churro”. “Depende muito de quem participa. Há debates e debates. Há gente que sabe debater e outros que mais-valia não debaterem porque não sabem”, acrescenta, com risos. A seu ver, os políticos de hoje “têm muito menos qualidade do que antigamente”, na “cultura, na educação, no conhecimento – em tudo”, remata. “Não quero estar a menosprezar os de agora, mas os políticos de antigamente eram de longe muito superiores aos de hoje. Basta fazer uma visita ao Parlamento e fica-se esclarecido. Comparar os debates daquele tempo e de agora é espantoso”, desabafa ao i.
É, ainda, crítico dos programas de entretenimento – no conteúdo e no tamanho. Dando o exemplo de segunda-feira na RTP, Letria observou que colocar um programa de entretenimento em cima de um debate – neste caso, o de António Costa e Rui Tavares, que considerou “merecedor de mais tempo” -, é “dar cabo de tudo”. Agora “despeja-se em cima disso aquilo”, notando que “tanto tempo de entretenimento faz mal a qualquer pessoa” e salvaguardando que os programas de entretenimento que realizou “não iam para o exagero” dos de hoje. Apesar de tudo, realça ser “um erro” pensar que os “portugueses são burros ou que não se interessam”, afirmando que as pessoas “estão informadas e sabem o que estão a ver”.
“Era uma nação a querer ouvir aqueles dois senhores” Letria rejeita, também, a ideia de hoje os portugueses estarem menos ligados à política do que em 1975. Admite, contudo, estarem “menos informados”, explicando que o icónico debate que moderou “aconteceu em circunstâncias particulares”: “Era uma nação a querer ouvir aqueles dois senhores. Duas pessoas muito interessantes e muito importantes para o país, a dizer tudo o que fariam se votassem neles. Foi uma coisa muito particular, muito sui generis”. Passados quase 50 anos, conta ao i que “não pensa muito nisso” e que, na altura, não foi nada que o tenha “deslumbrado”: “Foi uma coisa que fiz, fiz outras melhores, fiz outras piores. Não senti mais nada além disso. Apesar de muito interessante, foi um trabalho normal”.
“A RTP podia ser muito melhor” Letria aproveita ainda para deixar a sua opinião sobre a RTP, onde trabalhou. O jornalista nota que, apesar das “muitas falhas que não tinha há mais tempo”, a RTP é “uma excelente televisão” e “muito superior às outras”, destacando-lhe o segundo canal. A seu ver, a estação pública “podia ser melhor se fosse mais bem dirigida e administrada”, sendo “uma pena” não andar “taco-a-taco” com as restantes televisões públicas pelo mundo. Por fim, observa ainda que a “RTP, durante a ditadura, tinha excelentes programas e fazia ótima televisão”, salvaguardando, contudo, que “em democracia é melhor e é para esta que cá estamos”.