Qual era a pressa (take 2)?

Em suma, como é habitual quando não há soluções melhores, invocou-se o ‘abstracto interesse nacional’ com a certeza de que pouca gente, incluindo o líder da oposição, colocaria em causa tal sacrossanto princípio.

Quando há umas semanas nos interrogámos sobre ‘qual é a pressa?’ pensávamos na pre-anunciada dissolução da Assembleia da República e da inevitável marcação de eleições legislativas antecipadas.

Nunca podia estar em causa, depois da irracionalidade dos três partidos da defunta ‘geringonça’ que rejeitaram a proposta orçamental para 2022, a necessidade de devolver a voz aos cidadãos eleitores.

O que tinha de ser questionado era a pressa que o Governo e o Presidente da República (PR), mostraram em dissolver o Parlamento e marcar, como a Constituição exige nestes casos, as eleições seguintes para um período adequado às suas conveniências políticas.

É óbvio que quando não se verifica o normal funcionamento das instituições democráticas, o parlamento tem de ser dissolvido. E é óbvio também que o chumbo de um Orçamento e a inexistência de expectativa de corrigir essa situação, a curto prazo, configuram uma situação de ‘anormal funcionamento das instituições democráticas’.

O que não se compreende, até porque nada o obriga, é que, vivendo o país uma situação anormal, por causa da pandemia em curso, e havendo boas ‘evidências científicas’, conhecidas em tempo adequado pelo PR e pelo primeiro-ministro (PM), de que a situação se agravaria no início de 2022, se tenham marcado as eleições para um período onde, seguramente, por razões sanitárias, uma parcela considerável da população portuguesa, não poderá usar o seu direito de voto.

Mas a ironia é ainda maior quando se verifica que à pressa do PR e do partido do Governo, não correspondeu o dever ético de o primeiro-ministro apresentar, em coerência, a sua demissão, passando o executivo a funcionar em regime de gestão.

Argumentou-se nessa altura que o país precisava rapidamente de um orçamento para 2022 para operacionalizar os recursos financeiros provenientes da UE e um governo legitimado para prosseguir as políticas públicas que se encontravam em curso.

Em suma, como é habitual quando não há soluções melhores, invocou-se o ‘abstracto interesse nacional’ com a certeza de que pouca gente, incluindo o líder da oposição, colocaria em causa tal sacrossanto princípio.

E realmente assim foi. No espaço público, apenas a ministra da Justiça do governo de Passos Coelho ousou interrogar-se sobre a valia política e social desta decisão.

Mas o que torna a situação ainda mais estranha e irónica é que, não tendo havido demissão do PM (e isso sim era um motivo poderoso para apressar o acto eleitoral) o Governo acaba por estar numa situação mais confortável, pois deixou de prestar contas à AR e apenas tem como limite o escrutínio mais geral do Presidente da República.

Dir-se-à que na ausência de orçamento, o governo terá o incómodo de recorrer ao regime de duodécimos, mas o executivo já revelou, por palavras e actos, que essa solução não o aflige (desde que o modelo se não eternize) e ainda não se queixou, bem pelo contrário, da situação.

Ora foi precisamente esse argumento (duodécimos) que o PR e o PM escolheram para marcar eleições para o fim de fevereiro, quando nada os impedia que a data escolhida fosse, por exemplo, abril ou maio, meses em que, segundo as tais ‘evidências científicas’, é de esperar que a crise sanitária esteja substancialmente mais amenizada.

Mas voltando à questão de fundo e abdicando de lembrar situações semelhantes noutros países, recordemos que o Governo já anunciou o aumento do salário mínimo nacional que aumentará a despesa no setor público e na parte da ajuda a ‘certas’ empresas privadas, já resolveu (directamente ou com engenho) a questão das pensões, tem vindo a aplicar, com algum sucesso, a dinamização da utilização dos fundos estruturais do quadro comunitário anterior e, especialmente, já anunciou compromissos (ainda nebulosos) para a utilização dos fundos do PRR.

Foi precisamente o PRR, (não está sujeito a duodécimos) que o Sr Presidente da República utilizou como argumento mais forte para a pressa que imprimiu às eleições. Estranhamente o PRR nunca ou raramente é referido pelos candidatos e muito menos pelas dezenas de comentadores avençados na comunicação social que nos ‘explicam’ o que ouvimos, o que não ouvimos ou o que devíamos ter ouvido.

Tudo visto e somado e sabendo-se o que hoje se sabe, sendo certo que muito já era sabido há, pelo menos, três meses, a defesa do interesse nacional à pressa foi, adaptando Mark Twain, manifestamente exagerada.

Mas pronto, os jogos estão feitos, os portugueses resignam-se a votar sem informação adequada e o que resta da campanha vai servir para discutir como votarão, se votarem, os 400 000 isolados e todos os outros que, por receio ou simples cautela, vão ficar sossegados em casa.

Quem beneficia com esta situação? A democracia não é concerteza.

Entretanto, também na UE haverá mudanças. O novo presidente do PE será eleito na próxima terça-feira. A maltesa Roberta Metsola do PPE tem a eleição praticamente garantida. Em fevereiro (estranha coincidência) saber-se-à se o liberal belga Charles Michel cumpre os 5 anos de mandato de Presidente do Conselho Europeu, como sucedeu com os dois presidentes que o antecederam (Van Rompuy e Donald Tusk) ou é obrigado a abrir vaga para um ou outro dos figurões que nos últimos tempos não pensam noutra coisa.

Claro que seria insólito, mas o insólito não está proibido nos tratados, e se a mudança fosse para melhor (Mário Draghi por exemplo) todos ficaríamos satisfeitos.

Afinal, sr. Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, para que foi necessária tanta pressa?

P.S. – Um abraço de saudade para o meu amigo e ex-colega David Sassoli que acaba de falecer uma semana antes de ser substituído como presidente do PE.