Socialismo sem ‘geringonça’…

António Costa venceu folgado, apesar da campanha péssima, aos ziguezagues, sem alma nem rasgo, errático na estratégia e incerto nas convicções

O ‘empate técnico’ das sondagens resultou na segunda maioria absoluta do PS em quase meio século de democracia. A expressão da vitória de António Costa equivaleu a mais uma derrota dos institutos especializados, que ou são incompetentes ou manipuladores. Não a mereceu, mas alcançou-a e em política é o que conta.

Costa ‘vingou-se’ de Sócrates, que o aconselhara «a não desmerecer a única [maioria] que o Partido Socialista teve na sua história». Depois, foi a bancarrota paga pelo país ‘com língua de palmo’.

Afinal, um desastre que o eleitorado fez por esquecer, no doce embalo da ‘estabilidade’ e dos dinheiros da ‘bazuca’ que hão de chegar, trazidos de bandeja por um novo ‘rei mago’, com ‘juras de amor’ a um ‘Presidente-Rei’.

Ficou convocada a felicidade dos portugueses, amedrontados com a covid e atrasados pelo crescimento medíocre, ditado por uma produtividade anémica longe da média europeia.

Se até aqui fomos ultrapassados pelo crescimento consistente de países do leste europeu, recém-chegados à UE, não tardará que outros nos deixem para trás, cabendo-nos, em breve, a ‘lanterna vermelha’ entre os mais pobres da comunidade a 27.

António Costa venceu folgado, apesar da campanha péssima, aos ziguezagues, sem alma nem rasgo, errático na estratégia e incerto nas convicções.

Do outro lado, Rui Rio esteve melhor na campanha, mas não apagou a lembrança de um líder da oposição ausente, a pretexto do ‘interesse nacional’, uma manta esfarrapada que dá para tudo. Perdeu o país, quando sonhou ganhá-lo e vai perder o partido, a cuja direção deveria ter renunciado na noite eleitoral.

Em contraste com o PSD – e o desaire da fixação de Rio na sua recentragem à esquerda –, à direita houve festejos, com o salto quantitativo de deputados do Chega e da Iniciativa Liberal, à custa da transferência de votos do PSD e do CDS, este em vias de extinção. 

Correspondem a duas realidades distintas, entre um eleitorado zangado com o ‘sistema’ e outro, mais jovem e urbano, desejoso de encontrar horizontes confiáveis portas adentro, em vez da alternativa de emigrar. 
À esquerda, os comunistas radicais do Bloco e os ortodoxos do PCP saíram-se mal, com perdas pesadas, e estão assustados. 

Os bloquistas regressaram ao estatuto de partido menor, com um trambolhão indisfarçável, superior ao de 2011, com Louçã. E o PCP agravou a sua erosão, apenas sustida pela ‘resistência’ de um eleitorado envelhecido. A ‘geringonça’ foi para ambos uma armadilha em que caíram redondos.

Em consequência, Catarina Martins vai perder o palco – com a cabeça já posta a prémio pelo ‘tutor’ Boaventura de Sousa Santos –, o que para uma atriz é o pior castigo, e Jerónimo de Sousa, cansado e debilitado, passará o testemunho, sabendo que entrega um partido centenário à beira do fim.

Finalmente, na recomposição do Parlamento, ainda à esquerda, dois deputados solitários: no Livre, Rui Tavares, que rende Joacine Katar, um erro de casting oportunista que lhe valeu alguns ‘amargos de boca’, enquanto no PAN, Inês Sousa Real, ficou sozinha a meditar, talvez, nos insondáveis desígnios das touradas que quer proibir. 

Já à direita, avultou o afundamento do CDS, partido histórico da democracia portuguesa, vítima das suas dissensões internas e fortemente penalizado pela migração dos seus eleitores tradicionais para o Chega e, principalmente, para a Iniciativa Liberal. Francisco Rodrigues dos Santos quis corrigir os erros de Assunção Cristas, mas acrescentou outros e foi inconsequente. 

Ao lograr a ‘sua’ maioria absoluta, António Costa comprometeu ou adiou aspirações internacionais – a menos que entregue o partido a um dos seus putativos herdeiros, entre Fernando Medina e Pedro Nuno Santos, ambos, porém, na ‘mó de baixo’.

Em contrapartida, adivinha-se uma ‘dieta’ prolongada em Marcelo Rebelo de Sousa, que, não tendo feitio para lançar ‘presidências abertas’ ao estilo de Mário Soares, ficará cada vez mais confinado e refém do protocolo de Belém.
Ao sagrar-se vencedor, Costa prometeu não confundir o governo de maioria com o poder absoluto, para logo acrescentar, num óbvio recado, que «o primeiro garante de que não pisaremos o risco sou eu próprio». Em Belém, o ‘árbitro vigilante’, capaz de corrigir qualquer desvio, ficou… ‘despromovido’.

Com um país ‘funcionalizado’, tributário da terceira maior dívida pública da Europa, e com um PIB per capita também longe da média europeia, Costa tem pela frente um ‘desafio bíblico’. Se o perder, perdemos todos. 

Poderá formar um novo governo ‘enxuto’, mas se incluir logo a regionalização entre as prioridades – fazendo ‘tábua rasa’ do referendo de 1998 –, Portugal corre o sério risco de converter-se num anacronismo socialista na periferia da Europa. Onde a direita somou mais votos, mas o país empobrece à esquerda.