Trapalhada obriga à repetição em todas as mesas de voto

Votação por correspondência até 23 de março pode empurrar instalação da AR e tomada de posse do Governo para abril. Orçamento aprovado em julho, na melhor das hipóteses.

O Tribunal Constitucional (TC) decidiu na terça-feira, por unanimidade, declarar a nulidade das eleições legislativas em 151 assembleias de voto do círculo da Europa e a repetição do ato eleitoral. Este processo irá decorrer em todas as assembleias de voto – ou seja a votação foi também alargada às mesas cujos votos não tinham sido anulados pelo TC e irá abranger os 900 mil eleitores recenseados neste círculo – a 12 e 13 de março, duas semanas depois do que estipula a lei, sendo que os votos por via postal terão de ser recebidos em Portugal até dia 23 de março, confirmou a Comissão Nacional de Eleições (CNE), esta quarta-feira.

Segundo a lei eleitoral, a repetição das eleições deveria acontecer no segundo domingo posterior à decisão do TC, ou seja a 27 de fevereiro. Mas a CNE entendeu que, para cumprir todos os requisitos legais e por forma a ser garantido o voto por correspondência, era necessário mais tempo, dada a magnitude da operação que implica a impressão dos boletins de voto, o envio, receção e a contagem dos mesmos, algo impraticável em apenas duas semanas. Note-se que para as eleições de 30 de janeiro, os envelopes começaram a ser enviados aos eleitores com seis semanas de antecedência.

“De acordo com o que foi apurado junto da Secretaria-Geral do MAI, o tempo mínimo necessário à produção de todo o material eleitoral para que os eleitores possam manifestar a sua vontade por via postal é de sete dias, e acrescem mais quatro dias para a expedição e nove dias para garantir a distribuição postal nos países de destino”, explicou Vera Penedo, da CNE, em conferência de imprensa.

Acresce também, agora, que no voto por correspondência será mesmo estritamente obrigatório um documento de identificação a acompanhar o voto. 
 
Plano do pr deitado por terra Três vezes “não”, foi esta a resposta do Presidente da República, há menos de uma semana, sobre se o recurso para o TC relativo ao voto dos emigrantes não iria alterar os prazos para a posse do Governo e o início dos trabalhos parlamentares. Mas se a decisão do Palácio Ratton por si só já lhe mudava os planos, agora, com a desfeita da CNE, a tomada de posse do novo Executivo de António Costa só deverá acontecer no final de março ou início de abril.

Essa é a data mais provável, uma vez que, segundo a CNE, o apuramento dos votos será afixado dia 24 de março e dia 25 os resultados serão publicados, caso não haja mais processos contenciosos. Ainda assim, é um atraso de semanas em relação à data inicialmente avançada por Marcelo Rebelo de Sousa.

Conforme estipula a Constituição, depois de publicados os resultados eleitorais em Diário da República, a Assembleia da República reúne “por direito próprio no terceiro dia posterior ao apuramento dos resultados gerais das eleições”. Assim, o Parlamento terá de reunir dia 28 de março. A posse do Governo pode acontecer nos dias que se seguem, por decisão do Presidente da República. 

Neste calendário, segue-se a apresentação do programa de Governo, o que só pode acontecer 10 dias após a posse. E só quando houver programa de Governo legitimado na Assembleia da República é que o Governo entra em plenas funções e pode entregar o seu Orçamento para 2022. Dependendo se a investida de Costa é logo de seguida, com a repetição da proposta de orçamento que foi chumbada, ou se vai aproveitar este intervalo temporal para corrigir os erros que levou ao seu chumbo, todo este processo só deve arrancar em maio. Sendo que a discussão na AR leva pelo menos um mês, o Orçamento de Estado para 2022 só deverá entrar em vigor em julho. Até lá estamos em duodécimos.

Como chegamos até aqui? Mais de 80% dos votos dos emigrantes do círculo da Europa foram considerados nulos, na sequência de protestos do PSD após a maioria das mesas ter validado votos que não vinham acompanhados de cópia da identificação do eleitor, como exige a lei. De um total de 195 701 votos recebidos, apenas 36 191 foram validados, o que teria resultado na eleição de um deputado do PS e outro do PSD.

Só que uma guerra meteu-se pelo meio, por causa de um acordo de cavalheiros, que depois das eleições se tornou desacordo por causa do PSD. Dessa reunião entre todos os partidos saiu um consenso para permitir que todos os votos fossem contados – mesmo que sem a cópia da identificação do eleitor. Mais tarde, com base num parecer jurídico interno, os sociais-democratas decidiram recusar a contagem de votos sem todos os documentos.

Contudo, aconteceu o pior: na grande generalidade dos casos, os votos válidos (aqueles que eram acompanhados por cópia de cartão de cidadão) acabaram misturados em urna com os votos inválidos, o que acabou por determinar a ilegalidade de todos.

No acórdão divulgado, os juízes conselheiros do TC que avaliaram o caso não se pouparam nas críticas ao tal acordo de cavalheiros: “Qualquer ‘deliberação’ − ou, melhor dizendo, acordo informal − que tenha sido tomada pelos partidos políticos no sentido de se dispensar a junção da fotocópia do documento de identificação ao boletim de voto é grosseiramente ilegal – ultra vires –, não produzindo os efeitos jurídicos conformes ao respetivo conteúdo”.

Segundo argumentam, só uma alteração à lei poderia alterar as regras de votação e, em momento algum, os partidos podiam julgar-se na “faculdade de deliberar sobre os requisitos de validade dos votos”. “Seria manifestamente ilegal”, concluem.

Ao i, o politólogo José Adelino Maltez reconhece um certo “vazio de bom senso” aos partidos que protagonizaram aquilo que descreve como “uma verdadeira disputa futepolítica”, que irá trazer “enormes prejuízos para o país”.

Além disso, mostrou-se preocupado com a falta de esclarecimentos que são dados aos portugueses em todo este processo. “As pessoas que vivem fora de Portugal estão a uma distância informativa enorme. O MAI e a CNE estão de fora do universo comunicacional e a informação não chega lá”, aponta. “Gozaram com a democracia e faltaram aos portugueses deste círculo”, acusa. 

Já o constitucionalista Jorge Miranda considera “lamentável que se tenha criado esta situação”. “A entrada em funcionamento da Assembleia da República, o início da legislatura, a posse do novo Governo, o novo programa e a aprovação do novo Orçamento, tudo isso ficou dependente de um erro enorme”, critica em declarações ao i.