“Putin está muito desequilibrado. Vê-se até no botox que pôs na cara”

Há 82 anos abandonou Lwów, atual Lviv, para fugir aos alemães. Hoje, André Jordan ao ouvir o barulho das sirenes, diz que recuou à infância e conta-nos como foi a fuga até chegar a Portugal. E recorda que Putin durante seis anos foi o elemento do KGB que fiscalizou a STASI na Alemanha do Leste.

“Putin está muito desequilibrado. Vê-se até no botox que pôs na cara”

Recebeu-nos na sua casa no Belas Clube Campo, às portas de Lisboa, com a simpatia e humor habitual. Vestido impecavelmente, André Jordan fez uma viagem pela vida, que começou em Lwów, a Galícia da Polónia, atual Lviv, Ucrânia, de onde fugiu com os seus pais aquando da invasão alemã na II Grande Guerra Mundial. Recorda-se de com cinco anos se ter refugiado na cave do apartamento onde vivia, quando os aviões  alemães a sobrevoaram, e de como ainda tem presente essa memória. «Quando ouvi, na televisão, as sirenes a avisar as populações de mais um ataque russo recuei mais de 80 anos. O som é o mesmo de então». André Jordan foi um dos sete familiares diretos que conseguiu fugir ao Holocausto, perdendo praticamente toda a família mais direta nos campos de concentração nazi. Passou por Bucareste, Veneza, Roma e Paris até chegar a Lisboa, de onde partiriam para o Brasil, por a mãe estar convencida de que Hitler ia invadir a Península Ibérica. Apesar de estar há uma eternidade em Portugal, André Jordan nunca perdeu o sotaque do português do Brasil. E é por isso que na entrevista mantemos  os ‘brasileirismos’ e recuperámos algumas partes do seu livro de vida.

No seu livro de memórias, Uma Viagem pela Vida, conta o episódio da fuga da Polónia, nomeadamente da cidade onde nasceu Lwów, atual Lviv.

Sabe que a palavra Lwów ou Lvivi quer dizer lobo?  Sim, realmente neste processo agora tem havido uma experiência de recall, recordações incríveis. Ao ouvir, nas imagens que nos chegam da Ucrânia, os sons das sirenes consigo recuar mais de 80 anos. Lwów era uma cidade tradicionalmente polaca, apesar de ter tido sempre uma população ucraniana e judaica. O meu pai nasceu austríaco, porque a Áustria controlava aquela região nesse tempo, só passou a ser Polónia depois da I Grande Guerra. Os polacos sempre foram grandes patriotas, mas eu tinha uma grande convivência com os austríacos. Agora quando vejo imagens em que aparecem polacos a parar, por exemplo, na estação de comboios a quererem levar ucranianos para sua casa, revejo isso. Muitos ucranianos falam polaco e alguns polacos falam ucraniano, mas é mais comum, os ucranianos falarem polaco. Porque a Polónia foi o país dominante naquela zona específica. Quando vi essa cena na estação de comboios comecei a chorar, porque realmente me emocionou ao ver a solidariedade humana em ação, na prática.

Tem assistido muito à guerra?

Sempre fui um grande consumidor de informação, mas agora estou assistindo na televisão, estou vendo, estou sozinho no meu quarto. Ao ver essas cenas repetidas de solidariedade humana, revejo que fui criado assim com esse espírito.

Antes de deixarem a Polónia a sua família dedicava-se à exploração de petróleo, nomeadamente o seu pai.

O meu bisavó é que foi o pioneiro na família. Na Polónia, em geral, havia a proibição de os judeus serem donos de terras, só que na nossa zona era permitido pelos austríacos. E nós somos de uma cidade, Drohobycz, que foi o centro da zona de petróleo – foi o Texas da Europa – naquela altura. Então o meu bisavó tinha terras, era agricultor, quando no fim do século XIX, apareceu o petróleo. E ele tinha sete filhos, dividiu as terras pelos filhos, e cada um ficou com a sua parte. E o meu avó tinha uma das partes. Só que ele morreu quando o meu pai tinha 12 anos. Naquela altura, mandaram o meu avô  para o Egipto, que era um lugar que tinha sol e era quente. Só que não adiantou nada, ele morreu muito jovem de leucemia. E o meu pai foi criado pela mãe e pelo irmão mais velho. Só que quando na altura o meu pai ficou adulto a nossa parte do património da família tinha sido mais ou menos  consumido pelos outros parentes. A não ser a companhia das Águas – o irmão mais novo do meu pai era o gestor da companhia. Então, o meu pai começou de novo. Que é uma característica da família, sempre começar de novo. E só tinha trinta e dois anos, ele já era um homem de muito sucesso. Formou o consórcio de produtores independentes, e a Shell, que era uma das maiores produtoras naquela zona, resolveu vender a sua participação. Ele formou um conjunto de sócios independentes, como ele, que não eram grandes produtores e compraram a porção (parte) da Shell.

Por que a Shell vendeu a sua participação?

Porque sabia que a zona ia ser invadida pelos alemães. Aquando da fuga, parámos em Paris onde o meu pai tentou vender a sua parte, mas é claro que ninguém ligou à proposta. Mas ofereceram-lhe um lugar de diretor da Shell na Venezuela. O meu pai considerou um insulto (risos).

Nessa altura, oAndré teria 5, 6 anos e teve momentos em que se teve de refugiar nos abrigos porque os alemães…?

Estava a fazer os 6 anos. Os alemães, nas semanas antes da guerra, antes da invasão, sobrevoavam, faziam voos rasantes, com caças, aviões aéreos. Aquilo fazia um barulho enorme e tocavam as sirenes……OHHHH Ohhh e a gente descia. Morávamos num apartamento e quando tocavam as sirenes íamos para um abrigo no prédio (na cave). Agora, estou assistindo à transmissão e começam a tocar as sirenes e eu volto atrás 82 anos, de repente eu me sinto como senti naquele momento. Uma sensação estranhíssima, porque era aquilo que ficou comigo, nunca esqueci aquelas sirenes, sempre ficaram dentro de mim.

Quando decidem fugir?

A minha mãe estava na cave e ouviu um homem que disse: ‘Vim agora da fronteira alemã. Os tanques estão em massa do outro lado. Vão entrar. E a minha mãe que era uma mulher muito interessante, muito decidida, chegou em casa – e o meu pai vinha da rua, como os homens naquela altura eram, estavam sempre na rua – e disse-lhe: «Vamos embora amanhã». O meu pai disse não podemos ir, acabei de comprar a empresa… «não, não, amanhã vamos embora», respondeu a minha mãe. E assim foi, saímos com a roupa nas malas e mais nada. E fomos praticamente os únicos da nossa família que o fizemos – o meu pai de manhã ainda andou telefonando com os irmãos, com os primos mas ninguém quis ir. Disseram-lhe que a guerra iria passar num instante, pois os ingleses iriam correr com os alemães em seis semanas.

Da sua família só sobreviveram sete pessoas?

Sobreviventes próximos, seis pessoas, entre os  quais o meu primo-irmão Marian Spitzman, o Mariano, que nasceu em setembro, cinco dias antes de fugirmos de Lwów.  E foi escondido com outras crianças, no esgoto da cidade.

A Cavalariça polaca ainda resistiu seis dias, aos tanques alemães.

Sim, os alemães ainda levaram umas semanas a chegar à Galícia, contrariados na ocupação por uma grande resistência por parte da cavalaria polaca. Enfrentaram valentemente os tanques alemães, num gesto muito típico do heroísmo romântico da nação polaca. Depois deu-se a inesperada invasão soviética, no quadro do pacto secreto Alemanha-URSS. Este é um dos episódios mais cínicos e cruéis da II_Guerra Mundial. Em 23 de agosto de 1939, Hitler e Estaline anunciaram ao mundo a assinatura de um pacto de não agressão. O que foi anunciado era sensacional, não só para a maioria dos alemães, mas também para as potências ocidentais, porque a União Soviética era um dos alvos mais visados pela propaganda nazi. No seu discurso no Reichstag, Hitler não disse uma palavra sobre o que a Alemanha e a União Soviética assinaram de facto. O chamado Pacto Hitler-Estaline, ou Ribbentrop-Molotov, continha um protocolo adicional secreto que estabelecia a divisão da Polónia e da Finlândia e prometia à URSS os países bálticos e a Bessarábia

O André descreve no livro como foi a fuga. Sei que o seu pai levou dois motoristas, pegou em dois carros, não é assim?

O meu pai tinha um Packard e um segundo automóvel. Mobilizou o seu motorista de sempre e contratou outro, porque só um carro não chegava para nos acomodar a todos – os meus pais, eu  e a Mary e os nossos primos Anita e Arnold – mais as malas. Ainda nos acompanhou na viagem  um casal sem filhos. A senhora era secretária do meu pai e vim a saber do envolvimento romântico dos dois. Ele convenceu-a a sair da Polónia e a trazer o marido na bagagem. Quando já íamos a caminho da fronteira fomos mandados parar por uma patrulha do exército polaco. A nossa sorte é que o motorista virou-se para o meu pai e disse: ‘Meu coronel, este soldado quer ver  os seus documentos’.  O meu pai levava um revólver e empunhou-o discretamente, mas o soldado ouviu as palavras ‘meu coronel’ e deu ordens para seguirmos.

Mas esses carros depois chegaram a ser confiscados?

Sim, numa povoação fronteiriça do lado polaco  procurámos uma pensão. Estivemos ali uns poucos de dias, à espera de continuar viagem e os dois carros foram requisitados pelo Governo com o argumento de que eram necessários para a resistência aos invasores.

Há mais episódios que se lembre da fuga?

Sim, quando fomos de comboio para Bucareste. Perdi-me no comboio e a minha mãe ficou desesperada. Ainda por cima andava com a minha irmã ao colo à minha procura aos gritos. Até que ouvi a sua voz e nos reencontrámos.

Pelo aquilo que li, ficaram alguns dias na fronteira e o seu pai foi obrigado a cavar trincheiras.

Ele não estava muito virado para aí e ainda conseguiu ficar um tempo com outro hóspede da pensão a fumar e a conversar. Mas depois um padre, que liderava a mobilização civil, disse que tinham de ir cavar também. Obrigou os dois à patriótica e inútil tarefa de cavar trincheiras.

Depois acabaram por chegar a Lisboa?

Mas antes passámos por Veneza – ‘nunca pensei que houvesse tanta beleza’ foi o meu desabafo – e depois fomos para Roma. Um dia estava a cantar na rua e alguém atirou uma moeda da janela. Foi o primeiro dinheirinho que ganhei… O segundo episódio é mais marcante, à luz do que fiquei a saber quando a inocência da infância me abandonou. Passou um destacamento dos Balilla e Vanguardisti, crianças e adolescentes dos dois sexos que a partir dos quatro anos já vestiam farda de camisa negra e calção verde. Eram as juventudes fascistas._Marchavam alinhados e cantavam hinos inflamados, o que me deixou fascinado. Pensei que queria ser um deles. ‘Mãe, eu quero entrar nisto, arranja maneira de eu também fazer parte…’. Deixei-a inquieta e em estado de pânico. Levou-me dali o mais depressa que pôde.

Até que chegaram a Paris.

Devemos ter chegado em novembro e hospedámo-nos numa rua perto dos costureiros famosos. Em Paris encontrava-se o grosso dos exilados polacos de todas as origens partidárias e éticas, pelo menos de fachada, bem como o Governo polaco no exílio, uma larguíssima coligação nacionalista que se preparava para tentar a reconquista do poder e a libertação da Polónia. Havia mesmo um exército polaco no exílio, para o qual o meu pai foi recrutado, mas acabou por os convencer que seria mais útil nos EUA a recolher fundos junto dos americanos de origem polaca, para financiara a resistência. O meu pai nascera no período da administração austríaca e, apesar do antissemitismo que grassava na Polónia, sentia-se um patriota polaco. Tanto assim era que em nossa casa sempre se falou polaco e nunca aprendemos iídiche. Tudo isto se passava, como é claro, muito longe da minha vista e da minha imaginação. E das minhas emoções. A minha mãe ia passear connosco pelos caminhos de saibro, outrora aristocrático, e era outono. Aquele aroma muito forte, as folhas… colaram-se-me na memória e nunca me abandonaram. Muitos anos depois, estava em Paris, no Hotel InterContinental para uma conferência, atravessei a rua, embrenhei-me no jardim e o aroma lá estava, igual ao que era antes. Tudo o resto estava diferente, como é normal.

Da mesma forma que os barulhos das sirenes que agora revive?

Exatamente. Mas ainda tenho outra memória, não sei se conto isso no livro. Durante anos tive um sonho em que os aviões sobrevoavam sobra a casa e eu me escondia atrás das cortinas e paravam em frente à minha janela. E eu nunca associei isso ao fato dos aviões sobrevoarem durante a guerra. Só agora é que percebi que esse sonho estava relacionado com aqueles aviões que sobrevoaram Lwów. As minhas memórias, felizmente, são suaves. Há pessoas que têm memórias muito más, traumáticas.

Mas também diz no livro que foram ajudados por o seu pai ser maçon.

O meu pai, era um homem muito interessante, tinha uma capacidade de relacionamento extraordinária, ele não era uma pessoa alegre. Tinha uma personalidade muito forte e seduzia as pessoas, mas estou convencido que na fuga fomos muito ajudados por maçons…

Depois conseguiram o visto para Portugal.

Esse visto serviu para passarmos de Itália para França. Perante a ineficácia das cumplicidades maçónicas do meu pai, a minha mãe decidiu ir falar com o embaixador americano em Roma. Não o conhecia de lado nenhum, mas apresentou-se elegantemente vestida e com a minha irmã ao colo. Os vistos foram concedidos e ficaram amigos. Uns anos depois, após o fim da guerra, o diplomata ia, de vez em quando, à nossa casa em Nova Iorque tomar chá .

Por que não ficaram em Portugal?

A entrada em Portugal foi uma alegria, pela diferença. Vi um país tranquilo e organizado, sem a violência da miséria que se vivia na Espanha franquista que assistimos na viagem de comboio. Instalámo-nos no Rossio mas depressa fomos para o Estoril. O país era neutral e jogava nos dois tabuleiros, do eixo e dos aliados, apesar das simpatias fascistas de Salazar e de uma ala importante de ativistas do Estado Novo.Os judeus não eram ostracizados, mas os refugiados de origem semita não eram propriamente bem-vindos. Mas saímos de Portugal porque a minha mãe estava convencida que Hitler iria invadir a Península Ibérica. 

Apesar de serem judeus, converteram-se ao catolicismo?

Católicos por duas razões, digamos assim. O meu avó Samuel era um homem de grande distinção da comunidade judaica de Varsóvia. Ele era o maior importador de tecidos para roupa de homens. Como sabe não havia roupa feita. Tudo isso era alfaiatarias, centenas ou milhares de alfaiates judeus, nessas cidades. Mesmo assim, ele era um homem com o espírito muito aberto, e a educação dos colégios judaicos era muito tradicional e rígida, e ele mandou as filhas para um colégio católico, de freiras. Ele queria que as filhas tivessem um espírito mais aberto. A minha mãe acabou  por ficar seduzida pelos pensadores católicos. Ela adorava os filósofos franceses Simon Weil e Pirre Teilhard de Chardin.  Essa conversão ao catolicismo não foi muito bem vista por parte da restante família. Mas os meus pais não eram religiosos. Não praticavam. A minha mãe não me lembro de a ver ir à missa.

O André nunca seguiu muito o judaísmo? Foi sempre católico.

Não, tenho uma história interessante. Cheguei ao Brasil, e quando tinha sete anos, fui posto num colégio que era muito perto da casa, onde nós morámos, alugada, em Copacabana. Que era um colégio Católico, que tinha uma igreja. E eu, como sou muito de causas, me empolguei. Aos domingos ia para a porta da igreja vender o jornalzinho católico. O meu pai tinha mais amigos que tinham a mesma origem que ele. Emigrados, refugiados. Mas, basicamente na nossa vida não tinha muito a conotação religiosa.

Nos EUA fui para um colégio interno, com 13, 14 anos, que era da igreja altamente liberal. Liberal no sentido americano, muito moderno, era a igreja do Thomas Jefferson, para dar uma ideia. Teve muitas influências sobre mim. Mas focando no judaísmo, quando houve a Guerra dos Seis dias, eu estava em Buenos Aires, e estava numa sala de espera que tinha uma reunião lá. Havia um guichet com vidros e vários funcionários a trabalhar, e entra uma mulher e diz: A aviação egípcia está destruindo Telavive. E eu, que não pensava no assunto, comecei a chorar compulsivamente… foi de repente, foi compulsivo. E aí, comecei a reconciliar com a vida, não em termos religiosos, em termos de solidariedade humana. Nunca que preocupei muito com as regras.

O André nas voltas todas que deu na sua vida, só voltou uma vez à Polónia, e nunca foi a Lviv.

Isso tudo tem explicação. Os polacos, que são uma gente fantástica, solidária etc, têm uma característica, infelizmente que é histórica, que é o seu antissemitismo. E isso sempre me incomodou, porque sempre senti nos polacos,  naqueles que viviam no Brasil, esse sentimento. Como é seu nome? André Jordan. Jordan? Que nome é esse? Eu muitas vezes omiti o Spitzman por um monte de razões. Como comecei a escrever no jornal, o meu pai publicava também nos jornais, artigos sobre economia, política e assinava Spitzman, para me diferenciar assinei só André Jordan. Eles olhavam sempre para mim com desconfiança….. então eu nunca iria à Polónia por causa do antissemitismo’. Mas conheci o Lech Walesa no restaurante do Gigi. Eu ficava nas mesas de dentro, em frente à caixa, e o Gigi passou e disse-me: ‘Já viu quem está ali?’. Eu olhei para trás e vi, lá fora, o Lech Walesa com a secretária, a mulher e um guarda-costas. Fui lá falar com ele.

Em que língua?

Em polaco.

Saiu da Polónia com cinco anos.

Falava com os meus pais em polaco. Agora tenho um pouco de dificuldade porque o meu pai morreu há mais de 50 anos, a minha mãe há 30. Não falo com ninguém polaco. Sou capaz de falar mas tenho que parar para pensar. Então para manter uma conversa fluente não dá. Consigo dizer tudo mas tenho que pensar. Ele voltou-se para mim e disse ‘o senhor, o que faz aqui?’. Eu apontei para a Quinta do Lago e disse: ‘Eu fiz isto’. E ele diz ‘então tem muito dinheiro’ (Risos). Perguntou-me se já tinha voltado à Polónia e eu disse-lhe que nunca tinha ido, desde que saímos, nunca fui.

Mas ele na altura não era Presidente.

Não, foi muito depois. Ele tinha vindo, numa daquelas conferências do Estoril, e depois queria passar o fim de semana no Algarve e indicaram-lhe a Quinta do Lago e foi por isso que ele estava ali. Passado uns dias recebo um telefonema do embaixador  da Polónia em Lisboa, que por acaso era judeu – muito raro no serviço diplomático. Depois foi para os EUA, era curioso. Disse-me: ‘Lech Walesa esteve aqui e acha que o devíamos convidar para ir à Polónia.

Quando conheci o embaixador Bronislaw Misztakl, em Lisboa, acabei por ajudar numa homenagem aos heróis polacos durante a II Grande Guerra, com uma estátua,  nos jardins do Estoril, de Jan Karski, Jerzy Jan Lerski e Jan Nowak-Jezioranski – os três participaram ativamente na resistência contra a ocupação alemã da Polónia, trabalhando na clandestinidade para fazer chegar ao governo polaco no exílio e aos governantes aliados informações valiosas para o desenvolvimento do esforço de guerra contra os nazis. Três intelectuais polacos que entravam e saíam da Polónia e comunicaram ao mundo o Holocausto. E saíram sempre no Estoril. Esse embaixador estava apostado em fazer uma estátua. A Polónia tem muitas estátuas, a escultura é muito forte na Polónia. Não há um prédio que não tenha uma escultura. Ele queria fazer essa estátua no Estoril e eu acabei ajudando a financiar a estátua. Ali em frente à farmácia, é uma ótima estátua. A história da estátua ilustra outra característica dos polacos. E fomos à Polónia, fomos a Varsóvia, levei os meus filhos. A minha irmã veio do Brasil para vir connosco e fomos a Varsóvia e a Cracóvia mas naquela altura, havia muita dificuldade na fronteira, para entrar para a Ucrânia, levava horas. Ele e a mulher disseram que não valia a pena passar horas na fronteira por muitos poucos dias eu não fui.

Se tivesse ido lá encontraria a casa onde nasceu?

Encontrei a casa! Está no livro.

Como encontrou se nunca foi lá?

Porque houve um rapaz português de origem judaica que se dedicou a pesquisar essas coisas e nós encarregámo-lo de encontrar a casa e o prédio onde eu morava em Lwów. E ele encontrou. E a casa da minha avó também.

Onde vocês ficavam na cave?

Não, na cave ficávamos em Lwów. A casa da minha avó é em Drohobycz. O meu pai foi para Lwów por razões de negócios. Grandes empresas. Os polacos são um povo muito interessante.

Têm um lado muito antissemita e não só.

Eles são muito conflituosos.

Racistas?

Há muito nesses países todos, não é só na Polónia. Mesmo na Escandinávia e tudo. Acredito que sim, posso acreditar que são racistas. Mas além disso são muito conflituosos, estão sempre brigando. Estão sempre brigando com sócios, com amigos, estão sempre em conflito. São amigos até à morte mas daqui a pouco estão brigando. O Lech Walesa é vítima disso. 

Está numa situação financeira muito complicada. 

É uma vergonha porque é um homem que sozinho derrubou o império soviético. Sozinho. Quando foi a Primavera de Praga, Moscovo chamou o Alexander Dubcek e ele foi lá e entrou na ordem. Mas o Walesa não. Ele fez a greve e não aconteceu nada e ao não ter acontecido nada, todo esse movimento de libertação do leste europeu pegou fogo.

Com a ajuda do Papa.

Mas o Papa era uma força moral, não estava no terreno, estava em Roma. João Paulo II foi muito importante nisso, não há dúvida. Mas o Walesa é que deu a cara, o peito às balas.

Na situação atual, o Zelensky está a ter o mesmo papel?

É interessante, queria mesmo falar nisso. A minha mãe estudou na Universidade de Varsóvia, Filologia, especializada em francês. E ela me falava da vida intelectual. Uma coisa muito interessante é o seguinte: o teatro era muito importante politicamente, a crítica. Tinha mesmo importância política, a sátira e tudo isso. E também é assim na Ucrânia. Zelensky não era só um comediante de televisão, ele tinha esse tipo de papel. Ele fazia televisão mas de tipo crítico. É um pouco como o Ricardo Araújo Pereira hoje em Portugal. Ele não é um cómico propriamente, é um crítico. Um comentarista. Todos estes programas de comentário político ninguém consegue ser objetivo e normal. Todos falam como se fossem os donos da verdade. Da esquerda e da direita. Ele que é judeu representa um político independente. E por isso é que foi eleito contra a corrupção que era muito grande nesses países todos.

Quando Zelensky diz que não precisa de boleia para os EUA, precisa é de munições, acha que vai ter um papel mais importante ainda que o Walesa?

O Walesa foi extremamente importante para derrubar o império soviético. A diferença é que a União Soviética e a Cortina de Ferro eram um sistema. E o Putin é o Putin. É um megalómano que soube manipular o sistema com grande habilidade, mas ele não representa um sistema, não representa uma filosofia. Ele representa um interesse de um grupo de pessoas que receberam o império industrial soviético do Yeltsin – e de ele próprio – e está lá para representar essa gente, esses interesses. Não é ideológico, são interesses económicos. De modo que nessa medida, não sei se penso ou quero pensar que esse sistema vai entrar em colapso, não é sustentável.

O que não é sustentável?

Eles enfrentarem o mundo inteiro à força. O que eles estão fazendo os soviéticos nunca fizeram. Eles herdaram a Europa depois da guerra mas não andaram ocupando esses países todos. Os soviéticos nunca bombardearam nenhum dos países da Cortina de Ferro.

Mas invadiram a Checoslováquia.

O que ele está fazendo agora é uma espécie de desespero que penso também causado pelas pressões dos militares e da oposição crescente para mobilizar o apoio humanitário e da população numa suposta causa mas o rei vai nu. Onde está a causa? Qual é a razão? É terrível. Ninguém consegue entender porque estão bombardeando a Ucrânia. Porquê? O que é que a Ucrânia lhes fez? Eles estão bombardeando porque querem ficar donos daquilo, mais nada.

Porquê que o André diz que o mundo nunca mais será igual?

O mundo nunca mais será igual primeiro porque o colapso da economia russa vai causar estragos muito grandes. A relação de forças vai-se alterar. Ele conseguiu unir a Europa como a Europa nunca foi unida. Conseguiu que a Alemanha invista nas Forças Armadas em força, conseguiu que a Suíça tomasse uma posição nas questões financeiras, conseguiu reintroduzir por outro lado a Inglaterra, a Grã-Bretanha, num sistema político europeu. Talvez não no sistema económico mas ele conseguiu, em poucos dias, reorganizar a europa. Conseguiu que a China demonstrasse que afinal ele não pode contar com ela porque se absteve na condenação ao ataque. Não votou contra.

Absteve-se.

Isso são grandes mudanças que Putin está a provocar. Ele está muito desequilibrado. Primeiro, a cara toda lisa e com as bochechas, já mostra desequilíbrio. Ele fez uma plástica. E está com as bochechas inchadas, com botox, está completamente mudada. É sinal de desequilíbrio emocional sério. Ele tem necessidade de se afirmar em todas as frentes. E isso não dá para ninguém, ninguém consegue isso.

Acha que vai haver um colapso da Rússia?

Acho que a Rússia vai entrar em grandes convulsões internas. Ele tem medo que os militares deem o golpe, por isso é que ele lançou a guerra, para evitar que dessem um golpe nele. E também para mobilizar a opinião pública.

A opinião pública tem-se demonstrado contra ele.

Exatamente. Mas ele achou que ia puxar o patriotismo russo e o sonho imperial. Mas ele não tem sonho imperial nenhum, aquilo é um pretexto. Tem o sonho de poder puro e simples. Poder de dinheiro puro e simples, é o que ele tem. 

Ele poderá avançar para a Suécia ou para a Finlândia. 

Estou a pensar como responder a isso. Pensava que ele não ia avançar para a invasão. E agora penso que ele está completamente desequilibrado. Quando o povo russo começar a sentir as consequências económicas gravíssimas do bloqueio dos ocidentais, vai reagir. É a minha opinião.

Vai ser uma nova era que vai sair deste conflito.

Acho que sim.

Ele não vai invadir mais nenhum país?

Não sei. É muito difícil uma pessoa como eu, um cidadão comum, que não tem acesso a informação privilegiada, dizer que não vai invadir mais nenhum país. Achei que ele não ia invadir a Ucrânia, para dizer a verdade. 

Quantas horas perde, por dia, a ver este conflito na televisão?

Tenho visto informação e todo o dia estou a analisar o mundo. As economias, todo o dia. Sou um analista de informação amador. E muitas vezes consigo prever coisas porque faço a correlação de uma informação com outra. 

O que lhe despertam essas imagens? 

Acho que o mundo está numa fase que temos o problema do ambiente, o problema da inteligência artificial, temos relações que ameaçam a estrutura económica e social do mundo como nunca houve antes. Essa situação hoje veio, de certa maneira, contribuir para que nos preocupemos mais a fundo com os problemas todos que estamos a ver. Realmente tenho pena de pensar que os meus netos, que no momento estão bem e têm uma vida boa, mas que as gerações futuras não vão ter o nível de vida que a nossa sociedade alcançou até este ponto.

Por que acha isso?

Por causa do aquecimento global, da inteligência artificial que vai gerar muito desemprego, muita transformação social. E vai ter que se encontrar maneiras de se sustentar. 

Através da guerra, diminuindo a população.

Acho que o que vai haver é realmente um ajustamento económico que vai dar… A sociedade não vai poder viver com metade da população desempregada. 

O André já defendeu que os robots têm que começar a pagar imposto.

Eu digo que sim. Mas vejamos. Como há um acordo de não proliferação nuclear, o mesmo tem funcionado até agora, a não ser que o Putin quebre o acordo. Mas não lhe dou muitos dias de vida se ele fizer isso. Ele não vai fazer usar a bomba atómica  porque será eliminado rapidamente. Vai haver grandes ajustamentos. Acho que tem que haver um acordo mundial da limitação da inteligência artificial. Da mesma maneira que há um acordo de não proliferação nuclear. Quando se quer, pode-se fazer. Vamos ter problemas com a energia, mas não vamos voltar ao carvão’, mas na verdade esses problemas vão ter que ser encarados, só que as pessoas têm muita dificuldade em olhar para o futuro. Se é um problema imediato encaram.

Mas nesta coisa de transição energética não acha que foi dado um passo… há quem diga que se desaparecesse Portugal só diminuiria  0,1% da poluição mundial. Não acha que nos precipitámos a fechar as centrais de carvão e agora temos de importar essa energia a Espanha?

O problema é relacionar o que Portugal pode e o que Portugal não pode fazer em relação a isso, mas isso é um problema global. Todos têm de estar no mesmo lado e ver o que é que cada um pode contribuir. Não é pensar que não vale a pena porque Portugal não faz diferença. É claro que tudo faz, tudo soma. Todos temos de encarar o problema, desde a nossa casa até à indústria e até ao transporte. Tudo. 

No seu empreendimento de Belas, os campos de golfe ainda não regados com água residual?

Aqui não há água residual. No entanto, já trouxe que esta questão…

A Quinta do Lago e dos Salgados já são…

E Vilamoura também. 

Só se falam nesses dois…

Vilamoura também. Há poucos anos, o golfe de Belas foi declarado pelo National Geographic como um dos dez campos do mundo que tem o melhor sistema de conservação de água. A nossa contribuição não é conversa fiada. 

Mas está a pensar em equacionar esta ideia de águas residuais?

Não sei, porque neste momento não estou na gestão. Acho que aqui a água residual não basta. 

No seu dia-a-dia, além de ler ainda dá uma ajuda à empresa?

Só quando me pedem. Não quero dar palpites porque quando a gente não está dentro do problema não tem um julgamento tão objetivo. Acho que o mundo em geral e, Portugal em particular, não têm falta de palpiteiros. 

Como sendo um analista amador, como diz, e viciado em informação não sente falta de dar opiniões?

Claro que sim. Mas vou fazer 89 anos.

Vai fazer 89 anos, mas continua sempre a falar do futuro. Isto é a visão para a frente quando diz que temos que ter cuidado com a inteligência artificial… Olhando para a sua cabeça que sempre esteve um pouco à frente não sente falta de maior intervenção na sua empresa ou nas empresas que criou?

Saí da Quinta do Lago há muitos anos e este ano a Quinta do Lago faz 50 anos. Os atuais donos, gestores da Quinta do Lago, Denis O”Brien, que é o ou um dos homens mais ricos da Irlanda, entenderam que querem que haja um banquete jantar em homenagem ao fundador. E fiquei muito lisonjeado porque há uma tendência das novas administrações de fazerem melhor. Eles compram a empresa pelo que ela é, mas depois querem fazer diferente e isso acontece muito, mas depois passa o tempo e descobre-se porque razão para termos sucesso nestes empreendimentos muito grandes é porque vamos de maneira moderna promover os valores eternos: a família, a paz, a convivência, a igualdade relativa porque não é igual com todo o povo, mas é igualdade, no sentido de não haver aquela competição de que a minha casa é maior que a tua.

Quando comecei a Quinta do Lago, os ingleses que eram os turistas que havia e os residentes que havia no Algarve para jantarem num restaurante vestiam-se com gravata e casaco. Quando abri a Casa Velha, que foi de certa maneira pioneira numa restauração moderna em Portugal, não havia nada disso, a começar pela decoração e pelo próprio prédio que era um rústico elegante, comecei a ir, naquela altura estava na moda,  com umas camisas floridas, e um dia um senhor inglês aproximou-se da minha mesa com sapatinho e gravata e disse: ‘Mr Jordan, o senhor disse que quer fazer da Quinta do Lago um empreendimento líder e vem vestido dessa maneira?’. 

O que respondeu?

Respondi que temos que acompanhar os tempos. Isso é um episódio um pouco caricato, mas na verdade, as pessoas sentem nos nossos empreendimentos, o conforto dos valores tradicionais: da família, da amizade, da tranquilidade, de pouco barulho. Isso não é hiper moderno, nem tem estrelas Michelin, mas a verdade é que as pessoas se sentem muito bem nesses ambientes que, como digo, não são tradicionais, mas têm valores tradicionais.

Como não está na gestão, não sabe se o SWIFT não vai estragar nenhum negócio aqui de Belas. Isto é, russos que tenham comprado casas recentemente e que não possam transferir dinheiro para cá?

Não sei se temos russos aqui, mas acho que não. Mas por isso é que digo que a Rússia não aguenta tudo isso, nem aguenta causar ao mundo esses problemas. Chega aquele momento em que não dá. 

Mas quem é que vai dizer que não dá?

O mundo. Nesse momento, praticamente pode-se dizer que o mundo está unido contra ele. Mesmo a China que seria o aliado que ele quer, acabou por falar como como diria Jô Soares: ‘Não me comprometa’. 

Já disse que acha que Putin é um cowboy. Não acha que é mais do que isso?

Acho que é um homem muito inteligente que perdeu a noção da realidade, das limitações dele próprio. Mas é inteligente, é hábil e conseguiu, e não é brincadeira, sendo um rapaz, gerir ou cuidar de um escritório de espionagem (KGB) na Alemanha do Leste, esteve lá seis anos. Era um agente secreto russo na Alemanha. Eles não acreditam muito uns nos outros. Já se viu tantas vezes nos Governos, nas empresas, as pessoas perdem a noção do seu limite, perdem mesmo. Aquilo sobe à cabeça e acham que podem tudo. Olhe o Bolsonaro, o Trump.

Mas há quem diga que Trump tinha razão nos avisos sobre o Putin e que a Alemanha não devia ficar mas mãos de Putin, em relação ao gasoduto…

Sim, mas ele tem uma ligação com Putin bastante suspeita. Não digo mais porque não tenho provas. E é curioso que Bolsonaro e Trump ambos tentaram promover um golpe militar para se manterem no poder e fracassaram.