Eduardo Paz Ferreira: “Vivemos tempos hediondos como nunca pensei assistir”

Paz Ferreira admite que ‘temos a obrigação de tentar ser otimistas’ perante tudo o que está a acontecer, mas reconhece que é ‘muito difícil porque não se vê força moral, nem política para corrigir os grandes problemas com que nos confrontamos’. Faz ainda uma análise aos resultados políticos, elogia Costa Silva e garante que quase…

Eduardo Paz Ferreira: “Vivemos tempos hediondos como nunca pensei assistir”

 

Depois da pandemia, agora uma guerra. Vivemos momentos estranhos e difíceis…

Estranhos e difíceis é o menos que podemos encontrar para os qualificar. Vivemos tempos hediondos como nunca pensei assistir. Todas as pessoas que nasceram pós-guerra, como foi o meu caso, nasci em 1953, nunca pensaram que viriam a encontrar-se numa situação semelhante ao que se está a passar. O que se está a passar só me lembra o título de um livro que escrevi há uns anos: As crónicas de Anos de Chumbo, nessa altura, os anos de chumbo eram a troika, as medidas de austeridade, o desemprego, as dificuldades económicas. Nada disso foi corrigido e se, muitas dessas coisas tivessem sido corrigidas, talvez tudo teria sido melhor. Não teríamos tido a pandemia, ou pelo menos, nos termos em que tivemos. Seguimos com indiferença e com desinteresse em encarar os problemas reais e de os resolver, o que nos conduziu a isto.

Quase um precipício.

Parece um precipício. Não sei porquê mas, noutro dia, estava a pensar no que vai ser o futuro e parece-me evidente que os efeitos na economia vão ser terríveis. Muito provavelmente vai-se viver pior daqui por diante e as gerações que nos seguirem ainda vão viver pior. Lembrei-me de uma música muito antiga de Doris Day que se chamava Que Sera, Sera e era sobre uma criança que estava a falar com a mãe e perguntava-lhe o que iria acontecer quando crescesse, se ia ser bonita, se ia ser rica e a mãe responde: Que Sera, Sera, ou seja, o que for será. Estamos um pouco assim. Quando penso no futuro, a única coisa que tenho a certeza é que não vai ser nada de bom.

Com a evolução tecnológica e com o aumento da formação tudo indicava que as gerações futuras seriam mais favorecidas…

Essa ideia ruiu completamente. Temos a obrigação de tentar ser otimistas, de não nos deixarmos sucumbir, mas é muito difícil ser otimista nos nossos dias porque não se vê força moral, nem política para corrigir os grandes problemas com que nos confrontamos. A Europa nunca mais vai ser a mesma, o que quer que aconteça em torno da Ucrânia. Não sou capaz de fazer futurologia, mas tendo em conta a destruição que já foi provocada, mais a enorme tensão que existe naquela zona da Europa Central com os países a sentirem-se inseguros e a tentarem entrar para a União Europeia de qualquer forma. A União Europeia teve bastante culpa na forma precipitada e pouco cuidadosa como fez o alargamento a Leste. Claro que houve uma razão estratégica, mas com a queda do muro de Berlim, a União Europeia aceitou a entrada de países que não tinham condições mínimas para serem membros. Não tinham economicamente, mas sobretudo não tinham qualquer tradição democrática, nem qualquer respeito pelos direitos humanos. A única preocupação particularmente da Alemanha foi repor a sua grande zona de influência e tornar cada vez mais a Europa numa Europa alemã. Para usar a velha expressão de Thomas Mann, o problema da Alemanha era nunca saber se queria ser uma Alemanha europeia ou ser uma Europa alemã.

A Alemanha dita sempre as regras e viu-se agora no caso das sanções…

Em teoria, ao longo das décadas havia o eixo franco-alemão que mandava um pouco na União Europeia, mas era um pouco fictício. A França dava algum charme, mas nunca teve o poder que a Alemanha teve. Essa entrada muito precipitada desses países criou condições para o aparecimento de figuras como Orbán e todos aqueles presidentes de extrema-direita e, por outro lado, houve uma grande preocupação em ajudar a reconstrução económica da Rússia, da antiga União Soviética. Era compreensível só que foi feito de uma forma totalmente desastrosa. Essa tarefa foi totalmente entregue ao Fundo Monetário Internacional e foi criado um banco para apoiar o seu desenvolvimento, onde passaram alguns nomes de enorme qualidade, como o de João Cravinho, por exemplo. O Fundo Monetário fomentou uma forma de liberalismo extremo que conduziu ao aparecimento de todos estes oligarcas que estão agora um pouco mais incomodados, mas que fizeram fortunas à custa de privatizações em condições totalmente ruinosas para o património do Estado e com bancos a funcionarem em situações de ilegalidade, de operações de branqueamento. Instalou-se na Rússia toda a espécie de defeitos.

Houve um fechar de olhos perante todas essas situações?

Exatamente. Às vezes, e longe de mim ter qualquer simpatia pelo regime que lá estava, mas num certo sentido este ainda é pior. Do ponto de vista dos direitos humanos este não é muito melhor e do ponto de vista da preocupação dos direitos sociais não tem qualquer espécie de preocupação. Apesar de todos os seus defeitos, o regime comunista ainda se preocupava um pouco com os direitos dos trabalhadores. Hoje em dia, por exemplo, no seio da Europeia e nas organizações internacionais, a Rússia e os outros países dessa esfera votam sistematicamente contra tudo o que seja a proteção dos desfavorecidos, a redução das desigualdades e tornaram-se países verdadeiramente vorazes.

Aumentando o fosso entre os mais ricos e mais pobres.

Quando o Muro de Berlim caiu todos da minha geração ficámos felicíssimos com a ideia que vinha aí um mundo muito melhor. Tinha desaparecido a grande tensão, não haveria mais guerra fria. Afinal progressivamente as coisas foram correndo mal, em grande medida por causa da economia e pela forma como os Estados lidaram com a economia e como o poder político se deixou totalmente subalternizar ao poder económico. Tenho tendência para ilustrar este ponto de vista com o célebre Forum de Davos, onde primeiros-ministros, Presidentes da República e as mais altas autoridades políticas iam anualmente prestar um pouco de vassalagem aos donos do dinheiro e explicar o que estão a fazer para proteger a sua riqueza. Isso impressiona-me muito, ainda por cima, por grande ironia da história, já é a segunda vez que falo em Thomas Mann, mas é uma das minhas grandes referências e paixões, tem um livro fantástico que é a Montanha Mágica. A obra passa-se num sanatório da época que é hoje onde se realiza o Fórum de Davos. É extraordinário como se passou de um sanatório, onde havia uma discussão intelectual riquíssima, para finalmente chegar ao seu destino, ou seja, ao dinheiro.

Diz que a entrada dos países de Leste na União Europeia foi feita de uma forma atabalhoada. Vai acontecer o mesmo com a Ucrânia?

Tenho muitas dúvidas de que a União Europeia aceite a entrada da Ucrânia. É um país muito grande, com muitos habitantes, com muitos problemas e veremos como vai ficar depois disto. Além disso, depois virão imediatamente outros países, alguns deles já pediram a adesão, como a Moldávia, a Geórgia, que vão querer entrar na União Europeia. Simpatizo com uma União Europeia alargada, mas é complicado passar daquilo que eram as comunidades europeias saídas do Tratado de Roma – com seis membros fundadores, que eram os seis mais ricos da Europa, uma espécie de clube de ricos e de democratas – para de repente começarem a existir adesões como a portuguesa. Deixou de ser um clube de ricos e passou a ter um clube de remediados ou até menos do que isso. Durante algum tempo ainda se manteve como um clube de democratas, respeitadores dos direitos humanos, mas aos poucos isso desapareceu completamente. Está lá o Tratado de Lisboa ou os tratados que o antecederam, que têm uma grande afirmação sobre os direitos humanos, mas depois a indiferença é total. Quando há esse alargamento a Leste e entram os países ex-comunistas aí a entrada é precipitadíssima. Portugal teve nove anos de negociações para entrar na União Europeia e esses países foram aceites em meses.

E a Ucrânia quer em semanas…

A Ucrânia quer para a semana ter assento.

Isso obrigará a União Europeia a repensar no seu papel?

A União Europeia é na sua génese uma ideia totalmente sedutora, que tem antecedentes de séculos e séculos de defensores, de grandes intelectuais, como kant e o próprio Nietzsche. Há uma frase de Victor Hugo a dizer que no futuro viveremos com a Europa a estender os braços para os Estados Unidos que também estenderão para cá os braços, numa amizade transcontinental fabulosa. Isto não aconteceu. A União Europeia acabou por ser por razões geopolíticas um fator mais de divisão na Europa. O general de Gaulle que tinha uma visão um pouco peculiar da União Europeia tinha uma frase lindíssima que era uma Europa do Atlântico aos Urais, evidentemente isso nunca se concretizou. Gorbatchov tinha outra correspondente que era a casa comum da Europa, com a ideia de poder juntar todos esses países. Mas todas essas diferentes civilizações e inspirações, mais uma vez, nunca aconteceu. Será agora a altura depois desta história? Não acredito. Vão ser criados tantos ódios que será muito difícil que isso aconteça. Mas agora o fundamental é perceber o que se vai passar com a Rússia. Há quem tenha esperanças que isto acabe por encurralar Putin.

Já havia ameaças em relação a esta guerra. Foram minimizadas?

Assobiou tudo para o lado, pensou-se que só iam fazer exercícios ao pé da fronteira.

Como vê as sanções por parte da União Europeia? Defende que deviam ser menos ou mais pesadas?

Chegados aqui, o único caminho é mesmo avançar para o máximo de sanções possíveis, com a consciência que vão ter um efeito bastante negativo na economia europeia. O petróleo é um exemplo típico, mas também vai afetar muitos movimentos comerciais, para muitas áreas vai ser um prejuízo. A única coisa que agora se pode tentar é a asfixia económica. Por exemplo, quando ainda existia na África do Sul o Apartheid, a generalidade dos países ocidentais decidiu avançar com uma série de sanções económicas. Na altura, muitos diziam que só iria fazer mal aos sul-africanos porque que iriam viver pior, mas provavelmente essas sanções foram decisivas para pôr fim ao Apartheid. Olhando para os jornais, um pouco distraidamente, percebo o enorme incómodo dos oligarcas porque ficaram sem iates.

Ou sem clubes de futebol…

Excelente exemplo. Mas suspeito que os que foram apanhados e que estão a sofrer essas dificuldadezinhas não são os piores ou os mais ricos. Os outros têm mecanismos mais sofisticados de defenderem as suas fortunas e são mais difíceis de apanhar.

Têm dinheiro nas offshores?

Chegámos aí.

Os Estados Unidos anunciaram um embargo total às exportações total do petróleo. A Europa não pode fazer o mesmo devido à sua elevada dependência…

Exato, mas isso é o exemplo de como se trabalhou mal no passado. A Europa há muito tempo que devia ter construído uma independência energética diferente. Vai agora correr atrás do prejuízo. Mas ninguém, a não ser alguns portugueses, falam na possibilidade de utilização do Porto de Sines, por exemplo, para fazer a ligação à Argélia, à Nigéria e a outros sítios de onde pode vir o petróleo, gás natural, etc. O problema é que as coisas já estão muito divididas e instaladas, não há muita gente a pensar fora da caixa. E se Portugal disser: ‘Olhem ali o Porto de Sines’, pensam que estamos a defender estritamente os nossos interesses. Mas não estamos. Esta seria uma ótima solução, mas tudo isto leva muito tempo e é difícil de congregar. O lado positivo, se é que se pode ver alguma coisa positiva desta situação, é a reaproximação entre os Estados Unidos e a Europa. Andavam um bocado de candeias a avessas, coisas não muito evidentes e agora vão-se reaproximar. Ou seja, a aliança que venceu a Segunda Guerra Mundial vai voltar a estar junta, embora com esses tais ritmos diferentes, como é o caso do petróleo. Se na Segunda Guerra Mundial não existissem os Estados Unidos o que teríamos feito? Para onde nos virávamos? Quando vejo a Europa com a ideia que pode ser muito independente dos Estados Unidos fico sempre com muitas dúvidas. Isso não significa que seja um apoiante incondicional dos Estados Unidos, até porque, além de muitas coisas que estão para trás e que são profundamente erradas na história americana, a passagem recente de Trump pela Presidência da República deixou-nos um desconforto total.

Com Joe Biden a história é outra?

Mas as taxas de aprovação de Biden são desgraçadas. Praticamente nunca houve um presidente com uma taxa tão baixa de aprovação e, no entanto, fez coisas extraordinárias. O que fez no plano económico dentro do que o deixaram fazer é extraordinário, mas…

Mas não é valorizado?

Não é. Os Estados Unidos estão numa situação de guerra civil potencial interna. As coisas estão extremadíssimas.

Passámos de Obama para Trump e agora para Biden…

Quando Obama se candidatou pela primeira vez, muitos não esperavam a sua vitória. Fiquei totalmente entusiasmado com a sua campanha, com as suas ideias e passei praticamente um ano sem dormir porque com a diferença horária queria ver todos os comícios, todas as entrevistas. Foram dos dias mais felizes da minha vida quando foi eleito. Devo dizer que visto à distância, o mandato de Obama foi terrível, em vários planos, não corresponde nada à ideia de um Presidente progressista, tomou imensas medidas económicas de proteção total ao Wall Street, no sentido de proteger os banqueiros, os grandes financeiros e preocupou-se muito pouco com as questões sociais. Em matéria racial, o que é completamente paradoxal, foi dos piores presidentes dos últimos anos porque geria muito ao sabor das sondagens. Se tomava alguma medida de proteção aos afro-americanos, as sondagens indicavam que se tornava menos popular e mudava logo de posição. Há uma história espantosa que foi a de um professor universitário afro-americano que chegou a sua casa à meia-noite, estava a abrir a porta e caíram-lhe em cima não sei quantos polícias que pensavam que era um ladrão. Quando se pensaria que Obama fosse um crítico, o que fez foi convocá-la para uma cerveja nos jardins da Casa Branca para juntar com o polícia que o tinha agredido. Tinha uma estratégia de cobardia enorme.

O Obama Care também foi um fracasso…

Mas aí pode-se dizer que não conseguiu mais e que o equilíbrio de forças não lhe era favorável. Mas fechar Guantánamo que foi uma das suas grandes promessas depois nunca mais quis saber disso. Foi uma grande deceção para mim. Claro que não tem qualquer comparação com Trump.

Em relação a Portugal. Vamos ficar numa situação ainda mais fragilizada?

Essa é a grande questão. Com o adiamento da posse do novo Governo por causa das eleições ficou tudo um pouco parado e as pessoas não andam muito preocupadas em pensar no futuro. Acho que Portugal tem algumas possibilidades, tenho uma grande esperança em António Costa Silva que está a gerir as questões do PRR e acredito que fará uma utilização muito inteligente e muito ponderada da aplicação dos recursos que Portugal vai receber. É evidente que tudo vai ser mais difícil, a inflação ainda não é uma tragédia mas pode vir a ser e hoje já é bastante incómoda para a maioria das pessoas.

Os preços já estão a subir…

Exatamente. Já há rumores sobre escassez de produtos e agora esta trapalhada do petróleo. O Estado gastou imenso dinheiro na luta contra a covid e, muito bem, a atuação do Governo português foi excelente, mas agora precisava de alguma trégua para poder reconstruir e ainda vai ter de continuar a combater a covid. Ao contrário do que se esperava, a pandemia não se vai embora e é preciso olhar para esta questão essencial que é construir uma sociedade melhor. E para a construção de uma sociedade melhor não é possível pensar apenas a nível nacional, tem de ser a nível internacional. Cito várias vezes um editorial do Finantial Times que, em abril de 2020, pouco depois do início da covid dizia que era ‘preciso alterar tudo’. Mudar as políticas económicas, soluções até agora consideradas radicais e impraticáveis, como as taxações sobre os ricos, o fim da desigualdade, ou seja, medidas de partidos ou de intelectuais de extrema-esquerda que deveriam ser experimentados. Nada disso aconteceu. Foi positivo a União Europeia ter feito aquela operação que conduziu ao PRR, melhorou um pouco, mas não é suficiente. Mas o que é triste é que cada vez que há uma crise pensa-se sempre que vai ser decisiva para o futuro ser diferente. Kenneth Rogoff escreveu o livro This Time Is Different e diz que no final das crise todos pensam ‘agora vai ser tudo diferente’ e afinal fica tudo na mesma. Temos de nos preparar para outra possível covid. São tantas as frentes em que é preciso batalhar.

Em relação ao PRR há muitas associações empresariais a pedir uma nova alocação das verbas.

Os empresários portugueses são verdadeiramente insaciáveis, não há qualquer distribuição de dinheiro em que não achem que são prejudicados. Isso está muito longe de ser real. O PRR tinha feito uma distribuição muito equilibrada entre o setor público e o privado. Só que os empresários portugueses atuam considerando permanentemente o Estado como o lobo mau, em que só está preocupado em lhes fazer mal, esquecendo-se que foi o Estado que permitiu que os seus trabalhadores tivessem formação, que criou as infraestruturas que permitiu que as empresas funcionassem e que é por existir Estado que há Segurança Social, etc.

E mais recentemente foi o Estado que pagou o layoff…

Muito obrigado por me lembrar. Não têm qualquer interesse em agradecer ao Estado por isso. É muito importante a iniciativa privada, não se pode viver apenas com o Estado, mas é preciso encontrar um ponto de equilíbrio. Reabrir a questão com Bruxelas é arriscar atrasar tudo, adiar tudo e, às tantas, ainda acabamos por dividir com a Ucrânia o PRR se posso fazer uma graça sobre isso.

A distribuição da ‘bazuca’ não deveria estar mais dispersa, em vez de estar assente em apenas numa pessoa?

Tem uma estrutura muito grande. Costa Silva é uma espécie de coordenador. Não sei se é verdade ou não, mas diz-se que talvez vá para o Governo, mas talvez possa continuar a fazer isto sendo uma espécie de ministro virado para o PRR. Há várias soluções possíveis. As coisas funcionam razoavelmente, um pouco mais lentamente do que seria desejável.

É uma boa escolha para o Governo?

Tenho uma admiração tão grande por ele que acho que está bem em qualquer lado.

E por ainda estarmos a viver em duodécimos poderá comprometer a execução do PRR?

Não penso isso e apesar de tudo, o Estado tem conseguido cumprir as suas obrigações, mas está longe de ser a solução ideal. Viver em duodécimos de um Orçamento do ministro João Leão é uma coisa pesada.

A ideia de que iria haver um assalto aos fundos comunitários já passou?

Faz parte de um discurso político histérico.

O facto de o Governo ainda não ter tomado posse poderá comprometer a tomada de decisões? Ainda agora houve medidas para atenuar o impacto da subida dos combustíveis. Mas sente que está de pés e mãos atadas?

Está, mas curiosamente não tanto por não haver um novo Governo, mas por causa da União Europeia. As medidas mais importantes precisam do acordo com a União Europeia.

Como é o caso da redução do IVA?

Exato e em matéria fiscal há a regra de unanimidade, ou a União Europeia aprova ou não pode ser feito. Diria que dentro dessa margem de manobra parece-me que o Governo tomou medidas razoáveis, obviamente que nenhum automobilista se sente muito agradado.

Temos também um ministro das Finanças que segue o caminho de Mário Centeno, que gosta muito das contas certas…

Tenho dificuldade em compreender o que são contas certas. As contas certas estão nas regras orçamentais rígidas e não consigo ver grandes vantagens nisso. Os países da União Económica e Monetária têm tido ritmos de crescimento muito baixos. Portugal tem vivido com bastante dificuldade e as contas certas e as regras orçamentais são sempre apresentadas como grandes avanços económicos e tecnológicos como uma espécie de salazarismo retardado. Oliveira Salazar é que tinha frases do estilo ‘na base finanças sãs, etc.’, não é na base de finanças sãs é a economia sã. E essa economia sã não pode viver com descontrolo orçamental, mas pode viver com outra agilidade orçamental, com outra adequação e flexibilidade. Tudo isso faz-me muita impressão. O PS tem atuado muito obcecado por essa ideia porque a família política a que pertence a nível europeu está toda nessa linha.

Na última entrevista disse que as finanças públicas não podem ser geridas à luz de um mero taticismo político ou como mero instrumento de ação política de um partido ou de um grupo social. Com um Governo maioritário isso é fácil de gerir?

A maioria em si não penso que seja necessariamente uma coisa má. A maioria dá condições de estabilidade, facilita que se possa seguir um rumo sem ter de se fazer negociações, mas também pode levar a situações em que seja tentado por algum mau motivo. A gerigonça tinha integrado de alguma forma os protestos de rua no âmbito parlamentar, mas o seu fim da gerigonça vai levar a haver duas fontes de luta e de poder: o poder político legítimo na Assembleia, mas também a discussão na rua através dos sindicatos.

Isso foi visível pelo discurso do PCP logo a seguir à derrota nas eleições.

Nunca tive qualquer proximidade com o partido, mas não consigo perceber o seu raciocínio. Parece que é indiferente ganhar ou perder eleições. Acham que têm razão necessariamente e que a história os absolverá. Há pouco fiz o discurso sobre os empresários, agora é altura de falar sobre os sindicatos que são muito irrazoáveis. Hoje, muitos dos sindicatos não são de esquerda, são de direita, sobretudo aqueles de classe média. Se pensarmos numas Ordens profissionais que para aí andam, como os Enfermeiros ou os Médicos, vimos que são estruturas muito politizadas e com um estilo de reivindicação muito semelhante ao sindicato dos metalúrgicos. Por que não somos mais razoáveis nos dois lados?

Ficou surpreendido com os resultados das eleições? Vamos ter um Parlamento atípico.

Acho que vai ser um Parlamento muito mais fraco do que estávamos habituados. Além do meu total desgosto por esses deputados do Chega e da Iniciativa Liberal, porque são pessoas sem experiência política, sem qualquer qualidade que os habilita a serem bons parlamentares, independentemente das suas posições. Lembro-me que a 10 dias das eleições todos os meus amigos estavam deprimidíssimos. Não tenho partido, mas ando pela área socialista e dizia a todos: ‘O PS vai ganhar, não tenham dúvidas’ e perguntavam-me o que sabia. Dizia que não sabia de nada, mas era lógico. A esquerda ia ser muito castigada e merecia e a direita não era minimamente motivadora. Rui Rio fez disparates sobre disparates, então os últimos dias foram particularmente desastrosos.

O PSD tinha a ilusão de que ia acontecer o mesmo que aconteceu com a Câmara de Lisboa?

Exatamente, achavam que tinha sido o início da vida boa, mas a Câmara de Lisboa foi um acaso, explicado por algum excesso de otimismo do PS de achar que estava tão ganho que não era preciso uma grande mobilização. Depois houve o problema de Arroios que tradicionalmente era uma freguesia do PS e quase só por si explicou a derrota. A vitória do PS não foi muito surpreendente, a maioria absoluta sim. Não pensei que chegassem lá e é muito raro com uma votação de 41,7% conseguir ter maiorias absolutas. Já houve quem tivesse bastante mais e não conseguiu, como foi o caso de António Guterres que ficou com um sentimento de profunda injustiça do eleitorado. António Costa não se pode queixar de injustiças do eleitorado.

Um Governo de maioria pode impor medidas, apesar de António Costa ter dito que iria falar com os outros partidos.

Penso que tentará equilibrar, mas ainda não se sabe o que se vai passar com o PSD. Rui Rio está a demorar algum tempo a sair e essa demora não é nada boa para o partido que está muito paralisado. O PSD também não tem grandes candidatos e se pensarmos entre António Costa e Rui Rio a diferença cultural e intelectual entre eles era muito grande. Pode ser que o PSD encontre alguém. Por exemplo, Paulo Rangel era uma pessoa com formação cultural melhor do que a de Rui Rio, mas seria um péssimo candidato. Teria saído derrotado por ainda mais.

Há nomes em cima da mesa. Luís Montenegro, Miguel Pinto Luz…

Já ouvi que iriam buscar Carlos Moedas.

Sente que do lado do PSD ainda há algum saudosismo em relação a Pedro Passos Coelho?

Não sei se há saudosismo. Partimos sempre dessa ideia, mas o PSD nem de perto nem de longe se lembrou de o ir buscar ou, em qualquer momento, evocar a sua herança. Penso que é um capítulo fechado na vida política portuguesa. Mas fazer futurologia é sempre muito arriscado. Agora vão aparecer aí várias hipóteses e seria bom que houvesse um PSD de qualidade, que pudesse fazer uma boa oposição ao PS e que não deixasse isso para as franjas e para o radicalismo. Se o PSD vai conseguir, não sei.

Ao mesmo tempo assistimos à saída do CDS no Parlamento…

Mas isso já era uma morte anunciada. Já era o partido do táxi, agora nem de bicicleta é. Tinham alguns bons parlamentares e era um partido que estava muito ligado à história constitucional portuguesa. Tinham vivido estes anos todos em discussão com os outros partidos e faziam parte de uma certa solidez política, mesmo que não simpatizasse com as posições deles, ao contrário de muitos destes que vão agora entrar. Mas pode ser que cresçam e apareçam.

E o que pode esperar-se do Orçamento do Estado?  Com estas alterações vai ter de sofrer ajustes?

Penso que sim. Era lógica a posição do PS do ‘se eu ganhar é muito mais rápido porque já tenho aqui o Orçamento’ e fazia sentido, mas com tudo isto e com a necessidade de haver mais despesas para a defesa e com o prolongamento da epidemia provavelmente vai ser preciso ajustar. Creio que o essencial vão manter.

Tem sido um dos críticos da corrupção. Sente que estamos de costas voltadas a esse combate?

A corrupção é um problema em Portugal. Existe uma moldura legislativa muito sólida e muito complexa para lidar com a corrupção, como também há instituições adequadas para lidarem com isso. Mas também apareceu em Portugal um grupo de pessoas que resolveu ganhar a vida falando da corrupção. Há para aí uma série de pessoas que só intervêm para falar da corrupção, mas depois não são capazes de apontar um único caso. Só dizem que o Governo é corrupto, que as câmaras são corruptas. Então sobre as câmaras é uma verdadeiro vendaval de corrupção, infelizmente é capaz de existir. Por exemplo, Paulo Morais para mim é um fenómeno. Aquele homem não tem uma ideia na cabeça que não seja a de que Portugal é um país muito corrupto. E depois criam instituições que são levadas muito a sério e dizem que Portugal é o país mais corrupto da União Europeia ou o segundo ou o terceiro e depois não tem correspondência com os resultados das organizações internacionais. Mas é um discurso que pega muito nas pessoas. As pessoas em Portugal vivem mal, ganham muito pouco mas, por outro lado, temos uma Lisboa com prédios majestosos, em que a maior parte são dos proprietários são dos vistos gold, mas não só. Há muitos portugueses que também são proprietários, mas as pessoas vivem mal e aceitam com facilidade esse discurso da corrupção.

Da corrupção e dos subsídios…

Há uma história que passa permanentemente que é a dos Mercedes nos bairros sociais. Se calhar acontece uma vez ou outra, mas transformar isso no exemplo do que são os bairros sociais, por amor de Deus. Aquelas pessoas sofrem, vivem mal. É preciso perceber que é necessário alterar toda uma série de reformas para que haja menos corrupção, para que se viva melhor e seja menos atraente corromper.

Tem defendido a lei da revisão das finanças regionais…

Fiz o anteprojeto da primeira Lei. Foi em 1998 por encomenda de António Guterres e de Sousa Franco. Essa lei foi muito participada, muito discutida e conseguimos uma coisa excelente que foi ter sido aprovada por unanimidade na Assembleia da República. A partir daí, as coisas pioraram do ponto de vista das regiões autónomas. Houve a lei de 2010, outra em 2013 e outra em 2017 que alteraram a Lei inicial e foram sempre no sentido desfavorável às regiões autónomas. Percebo que no Continente haja questões ao facto de estamos a dar dinheiro aos Açores, mas há princípios que para mim são estruturantes, que é o da justiça para todos e que todos tenham o mesmo tratamento, o que implica que o Estado tenha de apoiar as ilhas. No outro dia contaram-me que uma professora na minha faculdade tinha dito uma coisa incrível que era como é que os Açores tinham três hospitais. Ter três hospitais para nove ilhas é o mínimo. Quando me contaram isso lembrei-me de uma história aparentemente na Segunda Guerra Mundial, em que havia um batalhão português estacionado na Terceira e a certa altura recebeu uma ordem para seguir para São Miguel, como não havia informação, o comandante perguntou que via devia seguir e responderam a normal. A normal era a via férrea.

Por ter nascido nos Açores tem outra sensibilidade…

Provavelmente. Conheço o que estou a falar e claro que o afeto existe.

Continua a existir muita pobreza nos Açores…

Há. A Madeira cresceu muito com modelos que se podem, às vezes, questionar, como a zona franca. Mas melhorou muito e independentemente de qualquer julgamento que se faça Alberto João Jardim fez uma obra extraordinária de combate à pobreza e de desenvolvimento da Madeira. Os Açores, devido à questão das ilhas, faz uma multiplicação de custos enormes e cria mercados que são muito pequenos. Praticamente, não há iniciativa privada nos Açores e a pública também já faliu. Em tom de brincadeira e devido à minha componente açoriana, costumo dizer que quem quer ter ilhas paga-as. Mas os Açores trazem muitas vantagens para Portugal, designadamente uma que neste momento é fundamental e tem a ver com o PRR, que é questão do mar e das águas marítimas. As águas marítimas portuguesas são enormes graças ao mar territorial dos Açores e da Madeira, mas sobretudo dos Açores e que fazem com que tenhamos a sétima área marítima do mundo. Tudo isto dá algumas vantagens, tradicionalmente também havia a vantagem estratégica, com a Base das Lajes, agora as coisas mudaram muito e já não passa por ali a guerra e perdeu o valor estratégico.

Na última entrevista disse que foi alvo de uma campanha absolutamente miserável. Ainda sente o mesmo?

Foi uma campanha miserável como disse, com tanta mentira, com coisas tão aldrabadas, mas que me magoaram profundamente e que me prejudicaram profissionalmente extremamente. No meu caso, a única coisa que posso dizer é que a passagem da minha mulher para o Governo me ia levando à falência. Há uma coisa extraordinária do jornal Expresso que não me esqueço, em que fazem uma notícia a propósito de um contrato qualquer que tinha feito com uma entidade pública, não me lembro qual era, mas não tinha nenhuma ligação com a Justiça. O título na capa dizia: ‘Paz Ferreira insiste em negociar com o Governo’. Para já, negociar é uma expressão que não se adequa a prestar serviços jurídicos; negociar é vender panelas, peço desculpa do elitismo. Mas essa era chamada de primeira página, no texto explicava mais ou menos sem grandes erros a situação, ou seja, que não havia nada de ilegal e até tinha um quadro ao lado a explicar que ganhava muito mais dinheiro no tempo do Governo do PSD do que no Governo PS. Colaborei com o Expresso muitos anos, escrevi a Balsemão e manifestei a minha profunda mágoa por aquilo que o Expresso se tinha transformado. É um jornal que não leio, porque não merece a minha consideração.

Disse que foi um dos responsáveis pela ida de sua mulher para o Governo. Está arrependido?

Não acho que isso seja muito importante, quando se tem o sentido de missão como tem a minha mulher e quando tem a sensação que se pode fazer coisas. Apoiei muito para que ela fosse, o meu filho que era bastante novo também apoiou. Estava a estudar no estrangeiro e até disse ‘Mãe se for preciso vou para Portugal para ajudar’, depois nunca apareceu. Acho que para ela foi pior do que para mim, evidentemente. Houve coisas verdadeiramente vergonhosas que foram feitas por pessoas que deviam ter vergonha na cara, como Rui Tavares e Poiares Maduro, que montaram aquela encenação da Procuradoria Europeia com base numa série de falsidades e sem um mínimo de escrúpulos.

Relacionado com o currículo do procurador José Guerra enviado para a União Europeia?

Vieram com a história que tinha falsificado currículos. Tudo completamente falso, já perderam em tribunal, mas continuaram a espalhar e a repetir. Não podia ir à Assembleia discutir uma prisão em Bragança que não viesse a história da Procuradoria Europeia. Para ela foi seguramente mais difícil do que para mim, mas acho que cumpriu com grande determinação e com grande qualidade o que tinha para fazer. Claro que sou suspeito. Agora vai sair.