Nunca tinha havido tantas idas às urgências nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde num mês de março: com dados fechados, foram ao todo 580 492 admissões, mostra a plataforma de monitorização do Ministério de Saúde, entre as quais 254 mil de doentes não urgentes. Já com o mês todo reportado pelos hospitais, os registos mostram que 28 484 pessoas acabaram por abandonar os hospitais a meio do atendimento, um número sem precedentes. E apesar de o Norte ter quase cobertura total de médicos de família, o número de atendimentos nas urgências supera o da região de Lisboa e Vale do Tejo, onde há 860 mil pessoas sem médico. Alexandre Lourenço, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH) e consultor da OMS-Europa para o fortalecimento dos sistemas de saúde, há vários anos a refletir publicamente sobre a necessidade de restruturar o SNS, retira uma conclusão:_“As pessoas em Lisboa já não acreditam no sistema público de saúde”, afirma, alertando que o SNS arrisca-se a perder o apoio de uma classe média trabalhadora com cada vez mais despesas de saúde diretas do seu bolso, enquanto oferece um serviço obsoleto para quem não tem alternativa. Expectativas para a nova legislatura? Os desafios são muitos e complexos mas acredita que isso dá uma oportunidade para o Governo fazer a diferença nestes quatro anos e meio e espera que haja “bom senso, sabedoria e vontade”.
Nunca tinha havido tantas idas às urgências num mês de março nem tantas pessoas a abandoná-las já depois de estarem lá dentro. Se isto acontece numa epidemia de gripe fora de época, é sinal para começar já a preparar o próximo inverno?
É preocupante mas a questão não é o inverno. Não se pode olhar para os problemas das urgências nestas alturas de maiores infeções respiratórias como algo pontual e depois quando a comunicação social começa a dar mais nota há uma ordem para alargar horários dos centros de saúde. É um problema mais estrutural do que sazonal. É por um lado uma questão de educação da população e, paralelamente, de se oferecer alternativas viáveis, que neste momento as pessoas sentem que não há. Com uma agravante: só pessoas que não têm meios financeiros para ir a outro lado qualquer é que vão para a urgência de um hospital esperar horas e horas.
Defendeu na semana passada que essa ausência de alternativas é o problema, recusando uma das propostas que tem sido feita de as admissões nas urgências passarem a ser autorizadas apenas a quem foi referenciado pelo INEM, SNS24 ou cuidados primários. O que está errado?
Não podemos continuar a ter um sistema que pede aos doentes para faltarem ao trabalho para ir ao médico de família ou para ir fazer uma vacina ou em que quando as pessoas chegam a casa às 6 da tarde e estão com os filhos já não conseguem ir ao centro de saúde porque já não atendem e vão-se espetar numa urgência. Às vezes nesta discussão parece que há a ideia de que as pessoas são estúpidas – “porque é que vão às urgências?”. Culpabiliza-se a população em vez de perceber porque é que existe este comportamento. Vemos que outras áreas de serviços se adaptaram à vida das pessoas. Os supermercados estão abertos até às 10, 11 da noite porque é conveniente. Não é porque as pessoas gostam de ir ao supermercado àquela hora, é o horário que têm disponível. Se queremos ter alternativas e cuidados primários de proximidade e proativos, temos de encontrar soluções que sirvam as pessoas.
Alargamento de horários o ano todo?
Podemos ter o funcionamento fora de horas mas além disso outras soluções que permitam, por exemplo, o relacionamento com os médicos e enfermeiros. Se tivermos serviços em que o contacto telefónico funcione estamos a aumentar a resposta e a confiança dos doentes no sistema. É diferente uma pessoa ligar para o centro de saúde e falar com uma administrativa que diz que só consegue consulta dali a uma semana ou um mês ou falar com o médico e expor o seu caso.
Isso esbarra logo no facto de ser difícil fazer um telefonema para o centro de saúde apesar das promessas durante a pandemia. Se há melhorias, não são muito visíveis…
Não são visíveis nem acontecem e por isso digo que temos um problema estrutural. Neste momento os cuidados primários não respondem às necessidades e deveriam ser reorganizados. As medidas estão identificadas e podemos sempre ver as experiências de outros países. A Suécia tinha um modelo como nosso e o que fizeram foi criar cooperativas de médicos que, ao ter de passar a competir pelos doentes, passaram a dar os números de telefone diretos às pessoas, funcionam fora de horas. Houve um incentivo para fazer diferente.
Em Portugal temos as Unidades de Saúde Familiar (USF), que partem da iniciativa e organização dos profissionais de saúde. Não era esse o objetivo da reforma dos cuidados de saúde primários?
O que está à vista é que não resolveram o problema porque vemos que no Norte, onde há grande cobertura de médico de família, as pessoas continuam a ir às urgências. É evidente que há médicos que respondem a emails e atendem o telefone, mas temos uma cultura muito administrativista e as pessoas não se sentem obrigadas a isso. Por isso digo que é preciso introduzir mecanismos de competição entre as unidades que obriguem a encontrar soluções.
Atualmente já existem incentivos e objetivos para o desempenho nas USF, que levam a bónus institucionais e salariais no caso das USF de modelo B. Está a falar de algo diferente? De uma nova reforma?
Os incentivos da USF modelo B hoje converteram-se em salário. As unidades cumprem os objetivos traçados, que se mantêm iguais desde 2009, aos 15 dias do mês. Todas já se adaptaram e por isso o modelo não está a criar incentivo nenhum. Não lhe chamaria uma nova reforma dos cuidados primários porque se alguma reforma começou em 2005/2006 foi essa. O que digo é que não vejo motivo nenhum para que não se estudem modelos mais competitivos e inovadores, inclusive olhando para as práticas de outros países em que os médicos sempre foram profissionais liberais, não são funcionários públicos. Não se trata de libertar os cuidados primários para o setor privado ou grandes grupos, mas de apoiar a criação de cooperativas de profissionais que prestam uma carta definida de serviços e que são remunerados em função dos doentes que atendem. E penso que esta mudança é importante até pelo que temos vistos nos últimos anos, em que um terço dos novos médicos de família recém-formados não querem ir para os centros de saúde ou para as USF.
Não se reveem no modelo?_
Será por vários motivos, por questões familiares, económicas e geracionais. Teria de se perguntar aos médicos, mas acredito que seria muito mais interessante um modelo de trabalho em que conseguem gerir horários, dar resposta às pessoas e que, em última instância, são avaliados pelos doentes e pelos resultados que têm e não se estão lá das 9h às 17h. As USF tornaram-se em organizações completamente burocráticas e as equipas não têm a liberdade que foi idealizada ao início. E perante isto o que vemos é uma parte significativa de recém-especialistas em Medicina Geral e Familiar a preferirem ir fazer urgências para os hospitais, trabalhar para o privado ou emigrar a irem ser funcionários públicos.
Como é que se implementaria uma mudança desse género?
Com a remuneração das equipas pelos serviços prestados sendo os doentes soberanos na escolha do sítio onde vão. E, por outro lado, fomentando e pensando serviços alternativos. Há muita gente hoje entre os 25 e os 35 anos que se calhar preferia ter cuidados online do que ter de ir para uma sala ficar à espera do médico uma ou duas horas. E se é verdade que as pessoas mais velhas se habituaram a isso, as pessoas mais novas não vão. E perdem-se oportunidades de intervenção nos cuidados primários de promoção de hábitos saudáveis e prevenção por exemplo, que só conseguiremos implementar se forem testados novos modelos. Se não o que vai acontecer é que quem tem meios financeiros vai ter esses serviços, que é o movimento que estamos a ver no privado na Europa e cá e por exemplo com a Amazon Care nos Estados Unidos. Quem não tem dinheiro vai continuar a ir para os serviços de urgência.
No Reino Unido, uma das soluções na última década foi criar centros de atendimento urgente fora das urgências para casos não emergentes. Fazia sentido de novo esta distinção com mais locais de atendimento permanente fora dos hospitais?
Têm os mesmos problemas que nós em muitos aspetos, o que fizeram foi criar modelos de escoamento de doentes mais eficientes. E aqui penso que devem colocar-se duas questões: por um lado a afluência, por outro, a resolução dos casos nas urgências. Temos um problema grave em Portugal na forma como escoamos os doentes da urgência para o internamento e do internamento para a comunidade. E isto é particularmente preocupante porque temos uma população envelhecida, que é maioritariamente quem vai às urgências – até referenciada pelo INEM –, mas depois não há camas para internar os doentes convenientemente porque estão ocupadas por pessoas que não deviam estar nos hospitais. Tem de haver um trabalho grande com o setor social porque a cada dia a mais que as pessoas estão internadas perdem autonomia e torna-se mais difícil para as famílias cuidarem delas. Temos falhas grandes a esse nível e tinha a expectativa de que neste Governo a Saúde e a Ação Social pudessem trabalhar lado a lado.
A expectativa numa fusão ministerial com a Segurança Social?
Não digo questões como as pensões, mas entre a Saúde e a Ação Social sim. E tinha por uma razão simples: o envelhecimento tem sido apontado como um dos desafios a nível nacional mas continuamos sem ver respostas. E aliás é o que outros países já estão a fazer: hoje no Reino Unido temos o Department of Health and Social Care e outros países desenvolveram-se nesta lógica de uma maior integração. Tinha a expectativa que em Portugal fosse feito esse caminho. Esta orgânica não impede que Saúde e Ação Social trabalhem em conjunto mas nos últimos anos o que temos visto é uma articulação esporádica. Houve trabalho conjunto na pandemia, mas foi algo que já tínhamos alertado várias vezes e alertámos em maio quando fizemos na APAH um novo barómetro dos internamentos sociais mas só houve mais resposta quando os hospitais realmente já estavam entupidos. Estamos sistematicamente a reagir e não a planear.
Que expectativas tem para esta legislatura na Saúde?
Tenho de ter um sentimento positivo. A Dra. Marta Temido e o Dr. Lacerda Sales são pessoas que conhecem o setor e têm sensibilidade. Esperamos que exista bom senso, sabedoria e a vontade de oferecer ao sistema de saúde a restruturação de que necessita. Não estamos a falar de questões isoladas e não são problemas simples, mas são pessoas que têm a obrigação de ser capazes de implementar medidas. Das duas uma: ou conseguimos realmente restruturar o SNS para se adaptar às necessidades da população, nomeadamente à classe média trabalhadora, ou cada vez mais vai ser um sistema para quem não tem outra alternativa e a classe média vai procurar outras respostas. E se defendemos um sistema com cobertura universal, esse não pode ser o caminho. Se a classe média abandona o SNS, vai ter cada vez menos sustentabilidade, porque está dependente do apoio dos contribuintes. A pior coisa para o SNS seria transformar-se no serviço de quem não tem alternativa.
É um alerta com vários anos, de que o SNS se arrisca a tornar numa resposta para os mais pobres com os privados a entrar pelas áreas mais diferenciadas. A que distância estamos disso?
Vai-se tornando real, quase de não retorno.
Nesse sentido, acredita que serão anos decisivos?
O Partido Socialista sempre foi um defensor do SNS e tem nas mãos para os próximos quatro anos e meio não diria a salvação, porque o SNS não vai deixar de desistir, mas a decisão de ter um SNS que responda às necessidades das pessoas e que consiga ser atraente para os profissionais de saúde, porque uma coisa depende da outra.
Vão ser anos de picos de aposentações. No caso da Medicina Geral e Familiar o Governo já não se compromete com médico de família para todos. Isso vai ser especialmente problemático?
Acho que também pode ser uma oportunidade. Há uma nova geração a entrar…
Se ficar no SNS.
Sim, claro, mas por outro lado a escassez de profissionais vai obrigar-nos a repensar os cuidados, a dar novos papéis às profissões, a incluir novos profissionais no setor e a estabelecer novas parcerias e penso que isso pode ser uma oportunidade para o SNS começar a redesenhar-se. Não é haver um choque, mas fazer mudanças graduais. Não podemos ter um SNS escrito na pedra em que temos hospitais, centros de saúde e unidades de cuidados continuados, vemos que não funciona e nada acontece. Um sistema de saúde é algo evolutivo e o SNS tem de conseguir mudar para responder à população.
Que exemplos interessantes vê neste momento de inovação até nos exemplos que acompanha lá fora?
Estão a acontecer várias reorganizações quer de serviços quer de integração de cuidados com os serviços sociais, que a meu ver é a única forma de respondermos ao envelhecimento. E depois há uma área em que Portugal poderia ser piloto a nível europeu, ou pelo menos estar a par, que é o digital, que não pode ser encarado apenas como digitalizar o sistema como ele existe. Às vezes parece que se olha para o digital como se estivesse apenas em causa substituir os telefones que usamos há 100 anos. Temos de pensar os serviços de saúde no digital. É como a questão que se coloca nos jornais, diminuiu a distribuição em papel e tiveram de procurar novas formas de negócio para chegar às pessoas.
Sob pena de as pessoas não chegarem ou chegarem mais tarde aos cuidados?
E de passarmos a ter esta realidade distópica em que quem tem mais meios anda com Apple Watchs a lembrar “coma bem, faça exercício”. E para quem não tem meios temos um sistema de saúde passivo à espera que as pessoas vão lá. Na Alemanha e em França já se estão a prescrever apps à população com comparticipação! Já está a acontecer.
Pode ficar a ideia de que não entrando por esse caminho e se quem pode paga, o SNS reduz a despesa.
Para mim isso é um certificado de incapacidade do SNS. O SNS não pode ser visto de uma forma distinta de qualquer outra entidade: a sustentabilidade depende dos utilizadores. E se queremos responder aos utilizadores temos de perceber as suas expectativas. Outra questão em que estamos atrasados é na gestão dos dados dos doentes, em que não se percebe sequer qual é a estratégia. Na Finlândia ou na Dinamarca os cidadãos têm um registo único que podem usar no setor público, social e privado. Os dados clínicos são dos doentes. Isto além de facilitar e reduzir desperdícios em exames, tem um potencial enorme de prever eventos, por exemplo o risco de hospitalização nos próximos seis meses.
Quando se fala em dados clínicos surgem sempre os receios ligados às seguradoras e a um abuso que penalize os mais frágeis.
Esses receios existem mas é uma questão de haver controlo. As pessoas antigamente tinham de andar com dinheiro vivo, iam a Paris e para não ir com o dinheiro nas botas levavam um cheque para ir levantar. A rede Visa, como em Portugal temos a Unicre, tem os dados mas não os cede a terceiros, não há partilha entre prestadores. Esse modelo permitiu que qualquer um de nós, em qualquer parte do mundo, possa levar um cartãozinho e usar o seu dinheiro. Quando vou ao retalho, ninguém sabe quanto dinheiro tenho na conta, sabem se tenho ou não. Porque é que em Portugal não se cria uma entidade nesta base que seja depositária de dados de saúde dos doentes? Falta-nos estratégia em várias frentes mas o ponto bom é que há tanta coisa para fazer que os governantes dos próximos quatro anos e meio têm uma oportunidade de fazer a diferença.
Chamou a atenção que mesmo no Norte havendo uma maior cobertura de médicos de família, as urgências continuam a ter uma enorme afluência. Como se explica até haver mais pessoas a ir às urgências do Norte do que em Lisboa quando há 58 mil utentes sem médico de família no Norte e 860 mil em Lisboa?
As pessoas já não contam com o serviço público de saúde em Lisboa. Mudaram para as alternativas. Não estou a dizer se são boas ou más, mas não se pode ignorar que existem.
Vamos ver um aumento das despesas da saúde do próprio bolso? Tem sido sistematicamente dos indicadores a nível europeu em que Portugal surge pior, com os portugueses a assumir já 30% dos encargos em saúde, quase o dobro da média europeia.
Sim. E não nos podemos esquecer que uma em cada dez famílias em Portugal tem aquilo a que se chama despesas catastróficas em saúde, quer dizer que na prática faz opções entre bens essenciais como alimentação ou água para pagar bens em saúde. É o que nos tem levado a defender a majoração da comparticipação dos medicamentos para os 20% mais pobres, a necessidade de responder efetivamente a questões como o aquecimento das casas e não vemos resposta nem para isso, muito menos para reduzir os elevados custos diretos por parte das famílias no geral. Tudo isto é conhecido. Temos dados públicos do INE que dizem que há 800 mil pessoas em Portugal que não têm dinheiro para comprar medicamentos, como há pessoas que não vão ao dentista, que nunca foram. E mesmo a classe a média tem de despender demasiado dinheiro do seu bolso, porque evidentemente não vai ficar dois anos à espera de uma consulta de oftalmologia. E a questão é sempre: porque é que não se reestrutura? Se faltam oftalmologistas no SNS, temos de pensar como o resolvemos e se a certa altura não fará sentido lentes de refração poderem ser prescritas por outros profissionais.
De onde sente que vem a inércia?
De um modelo de governação enquistado. Reage-se a questões agudas, pendentes, mas não se tem uma abordagem a médio prazo e isso afeta toda a gestão. E isso nos hospitais é paradigmático. Um presidente de um conselho de administração tem um orçamento para gerir por ano. Tem um bloco operatório parado porque falta um assistente operacional e com isso tem uma série de pessoas paradas e doentes à espera de ser operados. E não o consegue resolver. Vai ter de fazer um pedido ARS, que vai para a ACSS, para a Saúde e depois para as Finanças. E nisto espera nove meses por uma autorização. Um modelo assim não está interessado em responder aos problemas da população.
Está preocupado com o orçamento da Saúde este ano, tendo até em conta o aumento de custos fixos nos hospitais, seja em luz, combustíveis?
Estou preocupado com o modelo de gestão financeira do SNS. Em termos de orçamento, quando o SNS acaba o ano de 2021 com 1,1 mil milhões de défice está tudo dito. A pandemia em 2021 já não foi surpresa para ninguém. Há um problema de planeamento e um desajustamento dos orçamentos que me leva a pensar que é mais uma estratégia de restrição de tesouraria das entidades achando que isso vai contribuir para uma melhor gestão e contenção de custos, o que é mentira.
Tem o efeito contrário?
O único impacto que tem é um aumento dos preços cobrados às entidades do SNS porque, na incerteza do prazo pagamento, os fornecedores o que fazem é sobrevalorizar os custos dos seus produtos em 10%, 15%. A indústria farmacêutica hoje mal vende os medicamentos aos hospitais muitas vezes está a vender esse crédito ao setor financeiro e incorpora esses custos. A indústria farmacêutica não está a perder dinheiro de certeza absoluta. Portanto não estou mais preocupado com o orçamento deste ano do que de outros – toda a gente sabe que os orçamentos não são ajustados e não contribuem para mecanismos de gestão adequados, porque depois ninguém pode ser responsabilizado assim. O gestor mais penalizado acaba por ser o que tenta gerir bem, porque se aborrece, e o Ministério das Finanças aparece no fim para repor. O desajustamento entre o orçamento e a despesa é de tal ordem que não há qualquer incentivo para melhorar. Os hospitais já há alguns anos fazem dois orçamentos, o orçamento de caixa que é o que vem retratado na execução orçamental e o orçamento económico. Para as instituições, o orçamento económico é mais relevante, porque dá o que estão efetivamente a gastar. Mas para as Finanças o importante é o orçamento de caixa, que regista quando os pagamentos são feitos. Ou seja, quando dizemos que há um défice de 1,1 mil milhões de euros no SNS em 2021 é um défice de pagamentos, não se sabe qual é a despesa.
Como assim?
O que é contabilizado para efeitos orçamentais é o que foi pago, não é se a despesa foi realizada ou não. No limite, a gestão orçamental só vai contabilizar a despesa quando for paga. Ora isto não permite uma abordagem económica de racionalidade, porque fecham-se pagamentos até cumprir o défice e há bloqueios a fazer compromissos plurianuais, o que se traduz em preços mais elevados.
Os hospitais estão a concluir projetos de eficiência energética com financiamento comunitário e que permitiram instalar painéis solares, lâmpadas LED, isolamento térmico… Estivemos no Santa Maria e no Amadora-Sintra e dizem-nos que teria sido impossível de outra forma. Estes investimentos são os que vão ficando para último no dia a dia?
Sabemos que o parque hospitalar em Portugal está muito envelhecido. Nessa área, a nível europeu falamos há alguns anos dos “green hospitals”, a ideia de hospitais sustentáveis, e em Portugal antes destas iniciativas do POSEUR não tinha havido muitos avanços. E são projetos que tiveram atrasos porque era preciso autorização das Finanças para a comparticipação nacional e isso levou tempo. A questão acaba por ser sempre mesma: vê-se sempre o investimento no SNS numa lógica de despesa.