Quando alguém não é mais do que o seu rabo

Haver quem baseie toda a sua personalidade à volta do seu rabo ou das suas mamas é um desperdício de existência

Surge a todo o gás um novo género de pessoa que é a ‘boazona – ou bonzão – do Instagram’. No caso feminino, trata-se de raparigas cuja única característica a saber é o facto de serem bem feitas, achando-se o máximo por terem mais carne acumulada do que o resto dos seres humanos. Passeiam os seus rabos nos feeds do Instagram com o mesmo orgulho de quem passeia um Honda Civic nos picas de Valongo. Exibem-no nas redes sociais como se fosse o primeiro filho: de vários ângulos, com roupas diferentes, em distintos lugares do planeta (literalmente viajam-no). ‘Agora de lado, agora de frente. Agora na praia, agora no Burj Khalifa. Agora como se não quisesse mas por acaso até se nota porque as leggings são apertadas. Agora no Carnaval do Rio’. O meu rabo é a minha personalidade, e amo-o muito por isso *suspiros de felicidade*. 

O que fazes da vida, Tati? «Sou boa».

É, evidentemente, a única coisa que são: vivem para serem ‘boas’, esforçam-se para serem ‘boas’, matam-se diariamente no ginásio para serem ‘boas’. Tão ‘boas’ são que nada mais são. Lutar pelos direitos das mulheres? Nah. Ler uns versos de Florbela? Nah. Ouvir algo que não seja Wet Bed Gang? Nah. «Eu quero é ser a gaja mais boa do Eskada». Haver quem baseie toda a sua personalidade à volta do seu rabo ou das suas mamas é um desperdício de existência. É de uma tristeza atroz: a única coisa que são é o seu corpo. Toda a sua vida, toda a sua personalidade, todo o seu ser, se resumem a um conjunto de carnes penduradas. 

Note-se, o mesmo, para os Rubens desta vida – cujos abdominais são a materialização da sua alma. Tal como as Tatis e os seus rabos, os Rubens baseiam toda a sua personalidade nos seus músculos. O ginásio é o seu templo: quando não conseguem ir ficam frustrados, acabando por desgastar a sua testosterona nas namoradas (afinal, é tudo amor). Só pausam a música do Rick Ross para irem ao Instagram publicar fotografias descritas com ‘hustlin’ ou ‘no pain no gain’. Embora se desloquem maioritariamente por paragens nacionais, também têm a gentileza de oferecer viagens aos seus abdominais (as Tatis, normalmente, arranjam homens que paguem um bilhete de avião ao seu rabo, acabando as próprias por ir de arrasto).

O que fazes da vida, Rúben? «Sou musculado».

Os dois espécimes cruzam-se, normalmente, no Eskada ou no Mome. Identificam-se com facilidade: por norma são as pessoas mais mal vestidas, reconhecendo-se mutuamente por acharem que são as únicas tão bem vestidas como elas.

Lá, o gelo derrete como manteiga: foram feitos um para o outro. Ele honra-a reconhecendo-lhe o seu Sanctus Rabo, ela honra-o reconhecendo-lhe os seus Sanctus Bíceps. E quem, perante isto, se atreverá a negar a perfeição do Universo ou a existência Divina? «Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis os seus caminhos!».

Enfim, eis a sociedade hipersexualizada e acéfala a que o Capitalismo conduziu o velho Sapiens Sapiens. Somos todos muitíssimo felizes, mas todos muitíssimo estúpidos. É o Homem violado pelo primata: o tecido da alma preterido pelo do músculo, a importância do intelecto substituída pelo físico, o desígnio espiritual sufocado pelo sexual. Resta-nos lidar: enquanto houver ‘bumbuns’ para tonificar, a gente vai continuar.

Guimarães, 29 de março de 2022