Será isto ‘fazer Justiça’?

Uma juíza decidiu retirar uma menina de 3 anos à família com quem vive desde os cinco meses, com o argumento de que a criança deverá ter uma família adotiva ‘legal’.

A revista Sábado, agora dirigida por Sandra Felgueiras, publicou uma reportagem da jornalista Ana Leal sobre o caso de uma menina de três anos que o tribunal mandou institucionalizar.

A menina vive com uma família desde os cinco meses, a pedido da Segurança Social, depois de os pais a terem abandonado. Mas uma juíza de primeira instância do Tribunal de Oliveira do Bairro, chamada a apreciar o caso, considerou que a criança deverá ter uma família adotiva ‘legal’ – ordenando a sua institucionalização para se iniciar a seguir o processo normal de adoção.

Numa conversa telefónica sobre o assunto entre a juíza Helena Candeias e a magistrada do Ministério Público, Isabel Pinto, aquela afirmou: «Não vamos agora roubar-lhe a oportunidade de ter uma família. Digo eu. Pelo menos, se depender de mim, não vamos».

Esta conversa, que justifica a decisão judicial, é extraordinária. ‘Não vamos roubar-lhe a oportunidade de ter uma família’, disse a juíza. Mas a menina já tem uma família!

E uma família que, segundo tudo indica, a trata bem. Aliás, a mãe biológica da criança afirmou no processo que, para a menina, «o melhor» seria ficar «com a D. Conceição» (a senhora que a recolheu e com quem viveu nos últimos dois anos e meio). E uma assistente social que também depôs no processo relatou que a criança tem sido bem tratada, e aconselhou a sua permanência em casa desta família.

Apesar de tudo isto, a juíza decretou que a criança seja institucionalizada. Baseada na ideia de que o tribunal não pode aceitar situações ‘de facto’, determinou que se inicie um processo de adoção formal. E o Tribunal da Relação do Porto, num acórdão do juiz Neto de Moura, já confirmou a decisão.

Trata-se, evidentemente, de uma aberração.

Uma coisa é a lei, outra é a aplicação da lei. A lei deve guiar-se por ‘princípios gerais’, a aplicação da lei deve ir mais longe e ter em conta as ‘circunstâncias de cada situação’. E é por isso que são necessários juízes. Caso contrário, a lei seria aplicada cegamente, independentemente dos aspetos particulares de cada caso.

Ora, é óbvio que a lei tem de consignar que os processos de adoção se façam de forma legal e transparente. No interesse da criança e da sua proteção. Mas, perante uma adoção ad hoc que foi bem-sucedida, que sentido tem estragar o que está feito pela necessidade de impor a lei a todo o custo?

Se a criança já tem uma família, na qual está integrada, chamando ‘pai’ e ‘mãe’ aos que a receberam em casa e a têm criado, faz algum sentido ir agora impor-lhe outros ‘pais’? Tem alguma lógica que, aos três anos de idade, quando uma criança já tem perfeita consciência da realidade que a envolve, se lhe ‘troquem os pais’?

Lamento dizer, mas as pessoas que julgaram este caso não têm condições para ser juízes, pois são totalmente destituídas de sensatez e até de humanidade. Têm palas nos olhos. São uns burocratas formatados para só verem a lei e a aplicarem de forma automática. É triste que o Centro de Estudos Judiciários forme juízes como estes, que não percebem a sua função.

Ordenar a institucionalização de uma criança é uma decisão muito grave. Sabe-se como as instituições de acolhimento funcionam por vezes ao contrário do que seria desejável, lançando crianças na senda do crime – pela concentração no mesmo espaço de muitos jovens problemáticos. Assim, a institucionalização deve ser o último recurso para uma criança, só admissível em casos extremos. Ordenar a institucionalização de uma criança que vive numa família ‘normal’ é um crime. Se a decisão não for revertida pelo Supremo, está em risco o futuro de uma criança que tinha todas as condições para ser feliz.

Concluindo-se que a situação em que a menina se encontra não é regular, então regularize-se! O que não faz qualquer sentido é que, para fazer cumprir a lei à letra, uma criança seja atirada para uma posição muitíssimo pior do que aquela em que se encontra.

Estranho que um juiz não veja isto. Que, para ‘fazer Justiça’, decida arrancar uma menina de três anos à família com quem viveu desde que tem consciência.