O clube dos poetas mortos

Farão sentido as comemorações em democracia? Em relação a todos os acontecimentos devemos ter sentido crítico – e as comemorações são por natureza acríticas, laudatórias, propagandísticas.

Quando aceitei o convite para subdiretor do semanário Expresso, em Dezembro de 1982, o jornal publicou uma pequena notícia a dar conta do facto – na qual me apresentava, entre outras coisas, como autor de um documentário televisivo, transmitido pela RTP, «comemorativo do 28 de Maio».

Talvez o autor da notícia não se tenha apercebido disso, mas era uma tremenda gaffe. Como se sabe, o 28 de Maio de 1926 foi o movimento militar que pôs fim à Primeira República e abriu o caminho ao Estado Novo. Ora, falar numa ‘comemoração’ do 28 de Maio, ainda por cima menos de 10 anos depois do 25 de Abril, soava como uma enorme heresia. A palavra certa seria «evocativo». Ou seja, o programa destinava-se a ‘evocar’ o 28 de Maio e não a ‘comemorar’, a festejar o 28 de Maio.

Diga-se, porém, que, em relação a todos os acontecimentos passados, deveria ser essa a abordagem. Como me dizia por estes dias um familiar que esteve preso antes do 25 de Abril, «as comemorações em democracia não fazem sentido». E acrescentava: «Em democracia fazem sentido os estudos, as análises, as reflexões, não fazem grande sentido as comemorações». As comemorações são por natureza acríticas – e em relação a tudo devemos ter sentido critico. Só num estado totalitário não há o direito à crítica pública. Nas democracias há – e não devemos desperdiçá-lo.

O novo ministro da Cultura, Adão e Silva, ao ser-lhe perguntado há uns meses se as comemorações dos cinquenta anos do 25 de Abril incluíam o 25 de Novembro, disse qualquer coisa como: «As comemorações devem recordar o que une e não o que desune». Ou seja: devem ignorar o que foi mal feito para só recordar o que correu bem.

Talvez por isso Ramalho Eanes se tenha rapidamente escusado de presidir ao acontecimento: como símbolo do 25 de Novembro, ser-lhe-ia muito difícil comemorar o 25 de Abril sem falar dessa data.

Nos últimos anos, tenho-me dedicado a tempo inteiro à análise histórica, sobretudo da nossa História próxima, e a um historiador as celebrações repugnam. 

Os acontecimentos são para ser dissecados com seriedade e espírito livre, escalpelizados, e não glorificados. O 25 de Abril trouxe a liberdade, que foi a sua grande conquista, mas trouxe coisas menos boas. E muita coisa correu mal. 

As independências africanas correram pessimamente, dando lugar a guerras civis com muitos mais mortos do que os registados nas guerras coloniais. 

Houve o drama dos retornados. 

A nossa economia, que estava em franco progresso, a crescer como nunca, sofreu um fortíssimo abalo e não mais voltou à trajetória anterior. 

Os desmandos da Reforma Agrária. As nacionalizações dos bancos, onde se dissiparam volumes gigantescos de capital. O terrorismo urbano. O caos no ensino. E muito mais se poderia dizer para esfriar o entusiasmo dos que não gostam de enfrentar a realidade.

Vibrei com o 25 de Abril, emocionei-me com a revolução, ela permitiu que o meu pai regressasse à pátria, mas estas comemorações não me entusiasmam: cheiram-me a comida requentada, a déjà vu, a propaganda. Uns tentam apropriar-se da data, outros lamentam-na em silêncio, com medo de represálias, mas poucos são os que sobre ela procuram ter um pensamento sustentado, isento, imparcial, mais apoiado nos factos do que nas fantasias dos ‘poetas mortos’.

Mas independentemente de tudo isto, fujo das comemorações. Sejam do 25 de Abril ou do 25 de Novembro, do 1º de Maio ou do 28 de Maio, do 5 de Outubro ou do 1º de Dezembro. Fujo delas a sete pés.

O país é só um, a sua História é só uma, os cidadãos são feitos da mesma massa – somos todos latinos, com misturas várias -, todas as datas fazem parte da nossa História, todas tiveram lados bons e lados maus, luzes e sombras, não adianta nada estarmos a desenterrar fantasmas, seja em que sentido for.

No dia 25 de Abril de 1974 festejei a revolução, no dia 1º de Maio de 1974 participei na manifestação e no comício no Estádio 1º de Maio que celebrou o fim da ditadura – e chegou-me.

A partir daí, preferi estudar a História, perceber as nossas forças e fraquezas, os nossos defeitos e virtudes – enfim, aquilo que nos trouxe ao lugar que ocupamos hoje na Europa e no mundo. Que não é famoso.