Forças russas combatem nas profundezas de Azovstal, guiadas por um antigo eletricista que as tem orientado através da rede de túneis debaixo desta metalúrgica, anunciou Anton Gerashchenko, conselheiro de ministério do Interior ucraniano, no Facebook. Combate-se no escuro, temendo sufocar, enquanto a superfície do ultimo reduto ucraniano em Mariupol é varrida por artilharia, mísseis e bombardeamento aéreos russos.
Este assalto, negado pelo Kremlin, estará a decorrer quando as Nações Unidas ainda tentam resgatar uns duzentos civis presos em Azovstal, junto com umas duas mil tropas ucranianas, esta sexta-feira. «Combates pesados, sangrentos, estão a decorrer», contou num vídeo Sviatoslav Palamar, capitão do batalhão Azov. Este grupo neonazi, acusado de abusos contra a população russófona, foi integrado nas forças armadas ucranianas depois da guerra no Donbass, iniciada em 2014, e tinha Mariupol como seu quartel-general.
«Mais uma vez, os russos não mantiveram a promessa de um cessar-fogo», denunciou Palamar. Já a Câmara Municipal de Mariupol anunciou ter perdido contacto com os combatentes estacionados nas catacumbas de Azovstal, tentando travar a ofensiva subterrânea russa.
Se o Kremlin decidiu expor as suas forças a tais riscos, foi porque está ansioso por mostrar sucesso até 9 de maio, Dia da Vitória. Até já enviou para Mariupol um dos seus principais propagandistas, o apresentador de televisão Vladimir Solovyov. Entretanto, equipas compostas por habitantes locais têm sido obrigadas pelos invasores a limpar as ruas da sua cidade, a troco de mantimentos. Removendo destroços, carros abandonados, cadáveres e munições por rebentar. Enquanto se erguem estátuas patrióticas, em honra dos heróis da ‘Mãe Rússia’, acusaram as secretas ucranianas.
«Mariupol, de acordo com os planos russos, deverá tornar-se um dos centros das ‘celebrações’», apontou um comunicado das secretas de Kiev. À falta de avanços significativos no Donbass, são esperadas imagens de tanques russos a fazer paradas pelas ruas de Mariupol, no dia em que se celebra a vitória sobre da Alemanha nazi. Até as ruínas do teatro da cidade – que foi bombardeado pelos russos apesar de estar assinalado a palavra «crianças» escrita no chão e bandeiras brancas, tendo sido mortas quase 600 pessoas, sobretudo crianças, mulheres e idosos, segundo uma investigação da Associated Press – estão a ser limpas para a parada russa, recorrendo a bulldozers, avançou o Washington Post.
Trauma e orgulho russo
Há muito que o Dia da Vitória se tornou essencial para a identidade russa, ainda marcada pelo trauma da II Guerra Mundial. Afinal, as baixas soviéticas excederam largamente as de todos os restantes países aliados combinados, praticamente não havendo uma família russa que não tenha tido entes queridos na linha da frente. Não espanta que seja um dos feriados favoritos de Vladimir Putin, filho de sobreviventes da batalha de Leninegrado, hoje São Petersburgo. Foi um dos cercos mais longos e sangrentos da história, em que a mãe do futuro Presidente quase morreu de fome, enquanto o seu pai era gravemente ferido, incapacitando-o para o resto da vida.
Anualmente, a 9 de maio, cidades por toda a Rússia assistem ao avanço de tanques, tropas nos seus melhores trajes e camiões com mísseis, com aviões a sobrevoá-los, demonstrando a sua habilidade. É recorrente ver ruas russas cheias de bandeiras e de gente em festa, decorando carrinhos de bebé com papel machê, de maneira a que faça lembrar um tanque, ou escrevendo «para Berlim» nos vidros dos seus carros. Este ano, alguns têm um slogan novo, notou um repórter do Guardian. «Podemos fazê-lo de novo», dizem, aparente referência à promessa de Putin de «desnazificar» a Ucrânia.
Hoje, à medida que se vão encontrando valas comuns deixadas para trás pelas tropas russas a norte de Kiev, bem como cadáveres de ucranianos executados amarrados ou sobreviventes de tortura e violação, o regime de Putin é cada vez mais comparado ao de Hitler. O Kremlin é «herdeiro ideológico dos nazis», chegou a descrever Volodymyr Zelensky, mas na Rússia a retórica é inversa. E Mariupol, como quartel-general dos Azov, tem um papel central na propaganda russa. Daí que sejam esperadas paradas nesta cidade, como se a sua população, maioritariamente russófona, tivesse acabado de ser libertada, não bombardeada e sujeita a um cerco brutal.
«Uma campanha de propaganda a larga escala continua, durante a qual mostrarão aos russos histórias sobre a ‘alegria’ dos residentes locais por se reunirem com os invasores», avisaram as secretas ucranianas. Para esse esforço serão cruciais figuras como Solovyov, que foi a Mariupol preparar as celebrações do dia da Vitória. O apresentador de televisão foi fotografado à porta de uma metalúrgica na cidade, na terça-feira, vestido com um uniforme militar, de camuflado, com um capacete e colete à prova de bala, ao lado de Denis Pushilin, líder dos separatistas de Donetsk.
De regresso ao seu estúdio em Moscovo, Solovyov gabou-se de trazer um NLAW, um lança-mísseis antitanque britânico de última geração. Têm sido usados de forma devastadora pelos ucranianos contra as colunas de tanques russos. «Aqui está este pequeno brinquedo. Aqui está. Veem bem?», perguntou à audiência o apresentador, mais conhecido como «voz de Putin», erguendo o seu souvenir.
Solovyov, alvo de sanções ocidentais, tem sido instrumental na viragem da imprensa russa ao longo das últimas semanas. Passou a descrever a guerra não como uma breve «operação militar», mas como um conflito em que está em jogo a própria sobrevivência da nação, chegando a ameaçar com o uso de armas nucleares pelo Kremlin.
Ainda o mês passado uma das duas villas de Solovyov em Itália, à margem do Lago de Como, um dos destinos mais luxuosos da Europa, foi incendiada por ativistas anónimos, que encheram a piscina de tinta vermelha. Duas semanas depois, o Serviço Federal de Segurança da Rússia (FSB) anunciava ter impedido uma conspiração para assassinar o apresentador, amplamente desacreditada como sendo fabricada pelo Kremlin.
‘Caldeirão’ no Donbass
Putin bem precisa de uma vitória em Mariupol, porque a sua ofensiva no Donbass não está a correr nada bem. Até agora estão num impasse, não conseguiram capitalizar o terreno mais plano da região – ideal para as suas forças mecanizadas, sem tantas áreas urbanas ou florestais como o norte de Kiev, dificultando que tropas ucranianas emboscassem os invasores com mísseis de ombro – e o apoio que têm entre parte da população do Donbass.
As forças russas, concentradas nos arredores de Izyum, tentam seguir rumo a sul, procurando capturar Kramatorsk, o que cortaria o abastecimento das tropas ucranianas no Donbass. Tornaria a região numa enorme Mariupol, um «caldeirão», como se lê em alguns media pró-Kremlin.
Todos os dias os russos lançam ofensivas a partir de Izyum, mas avançam devagar e pagam caro por cada palmo de terra, avaliava um relatório do Instituto para o Estudo da Guerra, publicado na sexta-feira. Apontando que até esses parcos ganhos estão em risco, tendo os militares ucranianos anunciado uma ofensiva nos arredores de Kharkiv, a meio caminho entre as bases militares da Rússia e Izyum.
Os russos têm apostado sobretudo em varrer as posições ucranianas com artilharia. Algo que, segundo a doutrina militar da Rússia, deveria ser seguido de avanços rápidos de tanques e infantaria. Contudo, o Kremlin parece hesitar em expor demasiado as suas forças, após as perdas brutais que sofreram a norte de Kiev, apontam analistas.
Se a tática está a funcionar ou não, desgastando as forças ucranianas antes de um assalto final, é impossível dizer. Ouvimos falar muito das baixas russas, mas as perdas da Ucrânia são desconhecida. Seja como for, «a artilharia tornou-se avassaladoramente importante para os russos. É como têm conseguido efeito no campo de batalha», frisou Sam Cranny-Evans, investigador da RUSI, ao Financial Times. «Mas pela sua natureza é lento, porque dependes de logística da artilharia».