É preciso pensar ‘fora da caixa’?

O Professor Marcelo, com as referências negativas à constituição e à orgânica do governo, com a assertiva denúncia da inexistência de objetivos claros (o desenvolvimento, a descentralização e o reformismo) e com a preocupação (quase pânico) manifestada com um eventual desperdício dos fundos europeus, fez, em poucas horas, aquilo que a oposição (oposições?) não conseguiu…

Nos tempos conturbados que vivemos é difícil encontrar juízos, declarações ou comportamentos que não causem surpresa ou que inspirem confiança imediata.

Aparentemente a pandemia e, posteriormente, a invasão russa da Ucrânia, criaram um novo tipo de relacionamento entre as pessoas e as instituições e até uma verdadeira reformulação do quadro de valores e das regras da organização social dominante.

As redes sociais são um hoje um bom espelho desta realidade e um testemunho preocupante da evolução negativa a que a sociedade se encontra sujeita.

Há poucos dias, na sequência de uma das suas habituais audiências aos partidos, o Presidente da República  (PR) resolveu fazer ‘discretamente’ (?) a sua peculiar análise da situação política que, como era desejado, foi de imediata colocada no espaço público.

Essa análise não foi particularmente meiga, e o Professor Marcelo, com as referências negativas à constituição e à orgânica do governo, com a assertiva denúncia da inexistência de objetivos claros (o desenvolvimento, a descentralização e o reformismo) e com a preocupação (quase pânico) manifestada com um eventual desperdício dos fundos europeus, fez, em poucas horas, aquilo que a oposição (oposições?) não conseguiu fazer em anos.

Em resumo, o PR mostrou-se alarmado com Costa e preocupado com o futuro do país.

Seja qual for a apreciação que se faça deste veredicto, ninguém deve ignorar que se tratou de uma proclamação particularmente violenta.

Surpreendentemente ou talvez não, depois de uma primeira e leve reação bem localizada, a maioria da comunicação social ignorou este assunto, ou porque o considerou artificial e indevido ou porque não tem autonomia estratégica (independência), perante o poder dominante, para o analisar.

Nas duas hipóteses estaremos perante um cenário estranho pois, ou já poucos levam a sério o que o PR pensa, ou então estaremos perante um ‘quarto poder’ e/ou uma opinião pública que, pura e simplesmente, já nada pensam.

Poucos dias depois o Sr. Presidente da República voltou a surpreender-nos afirmando que Portugal, até pode ser um beneficiário líquido da guerra da Ucrânia, atraindo investimentos (?) mas, sobretudo fluxos turísticos que, em condições normais, seriam destinados aos países do Leste europeu.

É natural que assim seja ou possa vir a ser, como os dados divulgados, sobre o crescimento do PIB no primeiro trimestre deste ano parecem comprovar, mesmo que para esse crescimento estatístico tenha contribuído, essencialmente, a base baixa de que se partiu ou seja a evolução do primeiro trimestre do ano anterior.

Não é muito habitual que o PR se pronuncie, desta forma, sobre os estímulos conjunturais da economia nacional e não é muito tranquilizador que se estabeleça essa correlação, porque tal poderia significar a aceitação passiva de uma dependência de circunstâncias excecionais que, com certeza, não garantiriam um futuro risonho.

Também quanto a esta declaração presidencial, o escrutínio da comunicação social e da opinião pública (incluindo a partidária) foi insuficiente e claramente revelador de um desinteresse muito preocupante.

No plano europeu, e estimulados pela atual e complexa situação geoestratégica da UE, criada com a invasão da Ucrânia, também se assistiu a declarações e propostas inesperadas da responsabilidade do primeiro ministro italiano Mario Draghi e do Presidente francês Emmanuel Macron.

Mario Draghi, que só não será uma das grandes referências da futura liderança europeia se não quiser, depois de analisar os novos desafios que se colocam ao projeto europeu e a dificuldade em os superar, sugeriu a criação de uma espécie de federalismo pragmático, que permita reforçar a unidade europeia nas áreas que, atualmente, são mais problemáticas ainda que tal implique a alteração dos tratados em vigor.

Na mesma linha Emmanuel Macron, num discurso memorável feito em Strasbourg no Dia da Europa, admitiu que para ultrapassar algumas dificuldades de cooperação, em domínios sensíveis como a segurança ou a política de energia, possa ser criada uma confederação – Comunidade Política Europeia – que dê resposta a esses problemas e simultaneamente permita acolher parcialmente novos candidatos à integração.

O chanceler alemão Olaf Scholz considerou esta proposta «muito interessante» face aos desafios que se colocam atualmente à União.

É visível, até pela reação de alguns líderes europeus, que as propostas de Draghi e Macron, foram claramente feitas numa ótica que se poderá apelidar como sendo “fora de caixa” ou melhor fora do pensamento único europeu instituído.

Mas a questão essencial para a Europa, assegurada que esteja a legalidade e a democraticidade dos procedimentos tem, hoje, menos a ver com a pureza das soluções do que com o pragmatismo das decisões.

A regra da unanimidade, criada em circunstâncias politicamente datadas é agora um obstáculo, como se vê todos os dias com as ameaças da Hungria que se confundem com chantagem, para a adaptação da União Europeia a uma nova e mais exigente realidade.

Só que, como lembrava António Costa (como ameaça? ou como alternativa?) a alteração da regra da unanimidade… exige unanimidade.

Por isso é indispensável, em cada tempo histórico, encontrar as soluções e os consensos necessários para que o projeto e os valores europeus, que Ursula von der Leyen recordou também no dia 9 de maio, possam ser eternos.

Mesmo que para tal seja necessário fazer declarações e propostas verdadeiramente ‘fora da caixa’.

Terá sido também nisso que o Presidente da República de Portugal pensou?