Carlos Neto: “Somos o animal com a infância mais longa, para quê aprender tudo à pressa?”

Na última lição na FMH, pediu um novo contrato social para educação. E que as escolas libertem não só as crianças mas professores e investigadores.

Atirada para este ano por causa da pandemia, a última lição de Carlos Neto, o professor e investigador que pôs o direito a brincar das crianças na ordem do dia, aconteceu ontem num pavilhão cheio da Faculdade de Motricidade Humana, na Cruz Quebrada. Na hora da despedida, os reptos foram os que acompanham uma carreira de defesa do espaço e tempo para o “corpo em movimento”, mas também de perspetiva sobre a vida na universidade, desde os primórdios da sua entrada nas lides do desporto em 1970, na altura para fazer o curso de instrutor no Instituto Nacional de Educação Física – a escola que viria a ser, depois do 25 de Abril, o Instituto Superior de Educação Física de Lisboa e hoje é a FMH, integrada na Universidade de Lisboa.

Carlos Neto invocou os mestres – alguns que já partiram, e que abriram os caminhos nesta área em Portugal, como os pedagogos João dos Santos, Noronha Feio e António Paula Brito – e defendeu que a escola que construíram sempre inquietos não poderá ficar parada no tempo perante uma sociedade e tempos desconhecidos e imprevisíveis.

“A melhor brincadeira era jogar à pedrada” 

"Vim de um mundo diferente, de imaginação, de fantasia, de bem-estar, de busca de prazer, elevação, iluminação e transcendência que é o estado de espírito de uma criança”, começou Carlos Neto, lembrando o percurso que procurou fazer ao longo da carreira, tanto na observação como no ensino. E que partiu da sua própria vivência, recordou.

“Nasci num país pobre, em 1951, numa cidade que após o fim da Segunda Guerra vivia em pobreza, num regime ditatorial. O que eu tinha à minha mão como criança era o jornal O Século que o meu pai comprava todos os dias, um livro que havia em todas as casas que era a Bíblia e a emissora nacional. Tínhamos uma escola, uma escola que era uma igreja e ditatorial também, onde o ensino era replicativo e expositivo, como ainda hoje é. Tínhamos uma segunda escola, que era uma escola da aprendizagem da vida, a escola da rua, que está em vias da extinção. Hoje não vemos crianças na cidade. Infelizmente essa escola acabou”, disse, lembrando os amigos de rua e as partidas de futebol no Sport Clube Leiria e Marrazes, onde jogou.

“A melhor brincadeira que tinha era jogar à pedrada com os meus amigos e às lutas, porque isso ensinava-nos a ser mais fortalecidos, ter mais capacidade de compreender os outros e fairplay”.

Em 1970, entrou na escola de instrutores de Educação Física de Lisboa, em anos de inquietação, que o acompanhou sempre, lembrou o presidente da FMH, Luísa Sardinha, que o descreveu como um professor comprometido dentro e fora de aula e uma influência decisiva para o estudo científico da aventura de ser criança.

“Esta escola foi talvez aquela que mais influências teve do Maio de 68. Recordo-me de irmos a Paris só para comprar livros”, lembrou Carlos Neto. Os que mais o marcaram e seriam as novas bases de trabalho foram Fenomenologia da Percepção, de Merleau-Ponty, A Imagem do Corpo, de Paul Schilder, A Formação do Símbolo na Criança, de Jean Piaget e do Do Ato ao Pensamento, de Henri Wallon, recordou. “Nesta escola tínhamos ainda um corpo que era visto ainda apenas na perspetiva da ginástica sueca”.

Começou então a aventura de perceber a busca das crianças pela aventura e de juntar outras dimensões ao desenvolvimento motor, sem esquecer sentimentos e afetos, ao mesmo tempo que a escola e o saber se sistematizava. O primeiro passo foi a Educação Física e as Ciências do Desporto tornarem-se matéria universitária em pé de igualdade com outros saberes, com o instituto a ser reconhecida como instituição de ensino superior em 1975. “Antes do 25 de Abril éramos mal remunerados, não tínhamos lugar nos quadros das escolas, não tínhamos férias, mas éramos muito bem aceites nas escolas pelas crianças, éramos os confidentes, porque somos do movimento, homens do corpo, da aventura, e as crianças buscam isso”, disse, lamentando que a escola ainda não tenha interiorizado o significado dessa integração de cérebro e corpo. “É uma pena que a escola ainda não tenha compreendido que para aprender é preciso ter um corpo ativo e não estar calado, quieto e sentado, em muitos casos ouvindo professores cansados, velhos e chatos.”

À sala cheia, lembrou marcos de cinco décadas, com lembranças como, à falta de material didático, irem a um rio Jamor malcheiroso tirar pneus para servirem de obstáculos ou, ao início, ser preciso ter 1,85m de altura para se ser instrutor de educação física e voz de comando.

“Ser professor leva muito tempo”

“Tenho as mesmas dúvidas hoje nesta lição que tinha na primeira aula que dei (em 1972). Recuperar a espontaneidade e a autenticidade, as duas coisas essenciais para ser professor, leva muito tempo, para sermos capazes de nos compreender”, disse, lembrando que tudo o que aprendeu sobre essa arte teve lugar no externato a Torre, onde começou a dar aulas e nunca mais parou, depois do 25 de Abril uma cooperativa de ensino. “Hoje é uma escola extraordinária, que começou a trabalhar com as técnicas de Freinet ainda antes do 25 de Abril, democrática, ouvindo as crianças. Temos ainda hoje muitas crianças neste país que andam na escola e não são ouvidas, não se lhe dá a voz para dizerem o que pensam e o que sentem que devia ser a escola.”

O protocolo criado entre A Torre e a FHM é um dos legados de que se orgulha, com os estudantes universitário a contactarem com os pequenos alunos durante a sua formação, que defendeu que não se pode fazer apenas de forma “meramente teórica” mas envolvendo os interlocutores futuros.

Invocou ainda ideias que serviram de balizas, como esta de João dos Santos, de que a educação é sempre educação física. “Mesmo quando se está a aprender dinâmicas muito abstratas, como números e letras, estamos a usar o corpo”, disse, considerando obsoleta a linguagem das escolas que separa sala de aula de recreio. “Tem sido das maiores dificuldades, erradicar essa conceção cartesiana de corpo para um lado e cérebro para o outro. Não há corpo em movimento sem imaginação e fantasia. Se não percebermos sentimentos e emoções, não percebemos nada”, atirou, falando já no fim sobre a sua interpretação psicanalítica “mais ousada” sobre o fenómeno do movimento e do desporto, que não deixou de levantar sorrisos na sala, uma tese de que já tinha falado ao i em 2021, explicando a atração por bolas e  pela vertigem dos mais novos. “As crianças gostam de orifícios, de buracos. Deem orifícios as crianças para terem oportunidade de ter prazer. Por isso é que os homens gostam de desporto. E quando chegam ao fim da vida passam a vida a meter bolas com um taco num orifício. Provavelmente já não os têm lá em casa.”

Questões que o preocupam, temas dos livros que publicou nos últimos anos, foram reforçadas, como o tempo que as crianças passam na escola e o aumento, já no pós-pandemia, de situações de violência e bullying, que associa ao desinteresse das crianças por uma escola que não as cativa – “A escola está cheia de medo, a sociedade portuguesa está cheia de medo”, alertou.

Pediu ainda uma reflexão séria sobre as políticas de acesso ao ensino superior para libertar as escolas para as crianças viverem. “Temos 30 anos a estudar. Somos o animal com a infância mais longa, para que é preciso aprender tudo à pressa? Tudo em laboratório? Não tem sentido. Vamos voltar a ter espontaneidade para sermos mais felizes. Estamos cá pouco tempo”, disse. 

Mas o grito da última lição, em que pediu um “novo contrato social para a educação”, não foi apenas para libertar as crianças, mas também professores e investigadores, lembrando que perante um mundo incerto, em transição ecológica e digital, a universidade “não pode ficar parada no tempo”. As disciplinas estanques tendem a ignorar as fronteiras entre si, disse, deixando um desafio concreto: que cada professor passasse a estar filiado em dois departamentos diferentes. E que a investigação não seja aprisionada pelas hierarquias académicas: “Sempre fui considerado um orientador anárquico. Fi-lo sempre de forma consciente. Sempre quis dar ao meu estudante de licenciatura, mestrado ou doutoralmente liberdade. Não podemos viver uma universidade e sociedade que aparentemente democrática cria modelos subtis de criar no sujeito a sua auto exploração”.