O regresso de Cavaco

Sempre que Cavaco Silva reaparece, seja através de uma entrevista, de um artigo de jornal ou de uma simples frase, a esquerda entra em polvorosa.

Chama-lhe «velho», «múmia», «ressentido», etc.; mas isso só mostra a sua fúria.

Só se dá importância àquilo que se teme.

A esquerda teme Cavaco, porque sabe que ele é ouvido e respeitado.

É preciso dizer que Cavaco Silva foi, de longe, o melhor primeiro-ministro que Portugal teve depois do 25 de Abril.

Pode mesmo dizer-se que ‘reabilitou’ o 25 de Abril, numa altura em que os Governos começavam a ficar desacreditados e a desilusão se instalava.

Foi ele que lançou as bases do Portugal contemporâneo (como Salazar lançara as bases do Portugal moderno), privatizando a banca, os seguros e as grandes empresas nacionalizadas em 1975, lançando a TV privada e afastando o Estado da posse dos jornais, reformando os impostos, revendo a Constituição no sentido de possibilitar a adesão de Portugal à CEE.

Com a ajuda de Ferreira do Amaral (que esteve para o cavaquismo como Duarte Pacheco estivera para o salazarismo), concretizou um programa de obras públicas notável, alargando enormemente a rede de estradas e autoestradas (lançando várias IPs para o interior, concluindo a autoestrada Lisboa-Porto, que parecia enguiçada, fazendo de raiz a Via do Infante), construindo a Ponte Vasco da Gama e a ponte sobre o Guadiana, levantando o CCB, etc.

E os portugueses reconheceram o seu trabalho, dando-lhe não só duas maiorias absolutas mas duas maiorias absolutas com mais de 50% dos votos. Percentagens irrepetíveis.

Cavaco Silva não era um político, e se fosse nunca teria feito o que fez.

Os políticos gostam do poder pelo poder e fazem tudo para o conservar.

Veja-se António Costa, para quem o objetivo é ‘estar’.

Para Cavaco, o poder só interessava na medida em que lhe permitia ‘fazer’.

«Deixem-nos trabalhar!» – foi talvez a frase mais sentida que disse ao longo do seu consulado em S. Bento.

E saiu pelo seu pé.

O artigo de jornal foi, desde o início, a forma escolhida por Cavaco Silva para intervir publicamente.

Ele tem pudor de se mostrar (como o percebo!), de aparecer, e o artigo de jornal preserva-o.

No princípio dos anos 80 começou a publicar, a espaços, artigos em coautoria com Eurico de Melo, críticos para Balsemão, então líder do PSD e primeiro-ministro.

E percebeu-se logo que chegaria à presidência do partido.

Parecia escrito nas estrelas.

E assim aconteceu: em 1985 ganhou o congresso da Figueira da Foz, rompeu o bloco central e iniciou uma caminhada ascensional de 10 anos.

Depois teve outras intervenções marcantes, como o artigo da ‘boa e má moeda’ que fez cair Santana Lopes.

Sampaio confirmar-me-ia que o artigo de Cavaco foi determinante para a sua decisão de demitir o então chefe do Governo.

Estive no centro desse episódio, pois foi no casamento de Rui Ochoa (hoje fotógrafo oficial de Marcelo Rebelo de Sousa), que Cavaco me disse que estava a escrever um texto e se eu teria interesse em publicá-lo no Expresso. Disse-lhe naturalmente que sim. E dias depois chegou-me às mãos um estranhíssimo artigo sobre a Lei de Gresham e a boa e a má moeda, que eu não vi imediatamente onde queria chegar.

Só à segunda leitura lhe percebi o alcance – e decidi transformá-lo na manchete do Expresso dessa semana, descodificando-o.

O texto caiu como uma bomba – e o resto sabe-se.

Como Cavaco intervém pouco, as suas intervenções têm um grande impacto.

Porque sabe-se que são pensadas, têm objetivos precisos, não são palavras lançadas ao vento.

Neste texto – e na entrevista que o complementou, dada a Maria João Avillez –, Cavaco Silva fez várias afirmações certeiras, mas disse uma coisa errada.

Disse que Rui Rio caiu na «armadilha» do PS, que o empurrou para a direita, quando o PSD não pode ser de esquerda nem de direita – tem de ser simplesmente um espaço não socialista. E lembrou o seu caso, em que foi buscar votos à esquerda e à direita do PS.

Ora, o problema de Rui Rio foi exatamente o contrário: foi o não ter querido definir-se, jogando na ambiguidade e tentando pescar nas mesmas águas de António Costa.

Foi o não ter assumido sem tibiezas a liderança da direita.

É verdade que Cavaco nunca se disse de direita ou de esquerda.

Mas é igualmente verdade que Sá Carneiro ascendeu ao poder promovendo a ‘bipolarização’, separando bem as águas entre esquerda e direita, e depois assumindo-se como o líder desta área, reunida na Aliança Democrática.

Foi isto que o catapultou para o poder – e é isto que Montenegro tem de fazer.

O tempo não está para indefinições políticas.

Montenegro não pode ter medo de se assumir como liberal, de agarrar temas que são património da direita – como o nacionalismo, que a guerra da Ucrânia veio reabilitar, ou o combate ao politicamente correto –, não pode deixar ao Chega, à IL e ao CDS o campo aberto para a defesa desses valores.

Cavaco Silva nunca precisou de dizer que era de direita, porque o seu perfil autoritário e a rutura do bloco central, que promoveu mal chegou ao poder, fizeram com que a direita sempre visse nele o ‘seu homem’.

Mas talvez nunca, como nessa altura, a divisão entre esquerda e direita fosse tão nítida.

A prova disso é a aversão que ainda hoje a esquerda tem a Cavaco.